Finalista em concurso de curtas, documentário aborda tema que ainda é tabu e mostra pesquisa de historiadores
O cenário era de fome, pobreza e anti-semitismo na Europa do Leste no final do século 19. Muitas das moças de famílias judias ansiavam por maridos e melhores condições de vida e as Américas surgiam como forma de construir uma nova vida longe da discriminação e da miséria. Jovens judias, analfabetas, muitas ainda virgens, recebiam propostas de casamento e promessas de uma vida melhor. Já no porto de Marselha, no sul da França, o sonho caiu por terra e antes mesmo de embarcar para o Novo Mundo, elas eram obrigadas por seus próprios maridos a se prostituírem.
E é assim que começou a história tabu de muitas “escravas brancas”, as prostitutas judias conhecidas como “polacas” que, sem alternativa, foram parar nos centros de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Nova York.
No Rio de Janeiro, as polacas viviam nos bordeis e cortiços na Praça XI, área central da capital fluminense, onde hoje se chama Cidade Nova e estão sediados prédios públicos. Quase não restou vestígio do passado das polacas que pelo Rio de Janeiro passaram. O assunto ainda tabu e, muitas vezes, esquecido, virou tema para o curta-documentário Aquelas Mulheres (20 min) de Verena Kael e Matilde Teles (veja o filme aqui).
O curta histórico narra a vinda das mulheres judias que foram trazidas de várias partes do Leste Europeu por cáftens (cafetões) ao Rio de Janeiro. Através de entrevistas com historiadores e escritores como Moacyr Scliar, e imagens de arquivo, o documentário revela um passado polêmico e pouco comentado.
“Fizemos uma vasta pesquisa no Arquivo Nacional, no Museu da Imagem e do Som e na Biblioteca Nacional. Tivemos dificuldade para encontrar pessoas que pudessem falar do tema. O assunto mexe com a prostituição e, em relação aos judeus tradicionais, mancha a história deles. Foram levas de polacas que vinham aliciadas por cafetões judeus para serem prostitutas nas Américas”, disse ao Opera Mundi Matilde Teles Santos, uma das realizadoras do documentário.
A realização do curta ocorreu em 2007, quando Matilde e Verena, colegas do curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá, estavam se formando. A diretora conta que tomou conhecimento do assunto ao ver uma entrevista com a escritora canadense Isabel Vincent sobre o livro ‘Bertha, Sophia e Raquel’, lançado na época e que tratava do assunto.
Rejeitadas pela sociedade judaica
“Fiquei curiosa para esclarecer um tema que nunca tinha sido tocado na mídia. Fiquei solidária a essas mulheres. Elas não eram reconhecidas pela própria sociedade judaica e, rejeitadas, tiveram a força de manter a sua religião apesar de tudo”, afirmou Matilde.
Foram três anos de realização do documentário. Para Verena Kael, as diretoras viraram “detetives” atrás de informações e depoimentos. “Encontramos portas fechadas. É proibido falar nesse assunto”, contou Verena.
Questionada sobre as do assunto ser tão polêmico, a jovem documentarista argumenta que, por ser um tema árido e hostil, ainda há uma vergonha de se revisitar o passado.
“O tema é hostil e delicado ainda principalmente para os mais velhos e conservadores. Já a geração jovem desconhece. O preconceito era geral, social e dentro da própria comunidade. Elas eram imigrantes, judias, analfabetas e ainda prostitutas”, discutiu.
Chamadas de ‘polacas’, elas vinham de países do leste europeu como Polônia, Hungria, Rússia, Letônia, Estônia e parte da Áustria.
“Eram os supostos maridos que faziam de suas esposas prostitutas. Elas vinham por casamento e já eram exploradas dentro do navio como prostitutas e, ao chegar aqui, eram enfiadas direto no bordel”, afirmou Verena.
Até hoje não se sabe quantas judias foram traficadas para as Américas, pois não havia registro de todas elas. O fluxo de exploração foi ainda maior com a fundação da Zwig Migdal, uma organização responsável pelo tráfico internacional de mulheres, que tinha ramificações em vários continentes.
Máfia de judeus prometia o sonho da América
Segundo a historiadora Fania Fridman, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a máfia dos judeus que aliciava as mulheres “prometia fazer a América”.
“Eles chegavam nas pequenas cidades, prometiam que iam se casar e levá-las para a América para ter uma vida melhor. Elas se casavam para não morrer de fome. É uma história muito triste. E não tinham alternativa, pois não podiam voltar para a fome e o anti-semitismo”, disse ao Opera Mundi Fridman, uma das entrevistadas no curta.
Mesmo assim, as polacas “conseguiram manter-se judias” apesar de rejeitadas pela colônia judaica. Elas tinham a sua própria sinagoga. E como prostitutas, essas mulheres não tinham direito de ser enterradas.
“É uma história tabu. Na religião judaica, tanto uma prostituta quanto um suicida não podiam ser enterrados dentro dos muros do cemitério judaico. Hoje já se reconhece o tema e há pesquisadores que estudam sobre isso”, ressaltou a pesquisadora.
A “sinagoga das polacas”
A própria historiadora Fridman, de origem judaica, conta que seu pai quando criança vendia biscoitos nas festas na sinagoga criada por elas. “Elas tinham uma sinagoga própria e era onde meu pai vendia biscoitinhos que a minha avó fazia”, recorda a partir de relatos de seu pai.
Seus avós chegaram ao Brasil no início dos anos 20, no período do entre-guerras, quando o anti-semitismo já se delineava com força na Europa Oriental. Enquanto seu avô era alfaiate, a avó cozinhava biscoitos. “Meus avós eram muito pobres e meu pai vendia biscoitos nas festas. Meu pai ia a várias festas, entre elas, na sinagoga das putas. Ele se divertia e contava que eram animadíssimas”, acrescenta.
Em um de seus livros “Paisagem Estrangeira: memória de um bairro judeu no Rio de Janeiro” (Ed. Casa da Palavra), Fania Fridman dedica um dos capítulos para contar a história das polacas.
Como forma de resistência e sobrevivência para continuarem suas tradições, religião e cultura, as polacas judias criaram a sua própria associação, em 1906, chamada Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, com sede num terreno no Cemitério de Inhaúma. Há quem diga ser este o primeiro cemitério judaico no Rio de Janeiro, que hoje abriga cerca de 700 lápides de prostitutas e parentes.
O cemitério foi o único resquício do que sobrou da vida dessas mulheres, admite Fridman. “O cemitério é a única coisa que sobrou, além das histórias familiares, mas muitas das famílias não revelam. Algumas mulheres conseguiram se salvar porque se casaram e constituíram família. A história oral se perde porque elas já morreram”, conta a historiadora.
Exemplo de resistência
Para a documentarista Matilda Teles, as polacas foram exemplo de resistência e de movimento feminino. “Elas foram muito fortes e criaram um cemitério. A morte para os judeus é simbólica e elas queriam manter os rituais religiosos mesmo longe de sua terra natal”.
Matilde admite que o tema é novo para um documentário e que, muitas vezes, o público fica “espantado” por nunca ter ouvido esta história. “Tem muita coisa ainda para ser descoberta sobre a vinda das polacas. É um assunto ainda obscuro”, admitiu.
Fridman, por sua vez, considera uma ousadia das documentaristas enveredarem por este tema. “Achei corajoso, nenhuma das duas cineastas é judia. Elas tiveram dificuldades para conversar com pessoas, tirar fotos e ter documentos disponibilizados. Fizeram um filme independente e tem ganhado prêmios. É um filme bem feito e um registro histórico importante”, ressaltou.
Após ter sido exibido em mais de dez festivais, como a Mostra Campinas de Filmes Políticos e Independentes neste ano; a Mostra Curtas Argentina Brasil, em 2011; o Festival Internacional de Cortometrajes no Peru, também no mesmo ano; e ainda ter sido premiado no RECINE – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, em 2010; o curta agora está entre os dez mais votados pelo júri popular no Concurso Caixa de curtas latinoamericanos.
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http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/24248/judias+europeias+se+prostituiram+na+america+para+fugir+de+perseguicao+revela+filme.shtml.
Acho que a triste história dessas mulheres repete-se no final do século XX para o XXI. Com o fim da URSS tem aumentado o número de mulheres do leste europeu que vem para os EUA e países da Europa Ocidental, agora com a alegação de ser modelo.