Francisco Bicudo, Correio da Cidadania
Quando a subida nas pesquisas do candidato defensor do consumidor já se anunciava como um fenômeno não passageiro na disputa pela prefeitura de São Paulo, registrei aqui algumas hipóteses para tentar compreender esse movimento.
Em minha leitura, há certamente uma parcela dessas intenções que se manifesta por conta do “recall”, da lembrança próxima, da visibilidade do postulante. Russomanno foi candidato a governador de São Paulo em 2010 – e alcançou votação representativa (terceiro colocado, mais de um milhão de votos), quase ajudando a levar a disputa a segundo turno. Até o final de junho, apresentava o quadro “Patrulha do Consumidor”, na TV Record, com audiência bastante razoável e cativa. Sabe usar os meios de comunicação. Coloquei à mesa também para reflexão o fato de São Paulo ser uma cidade historicamente conservadora, que passou por adhemarismo, janismo, malufismo e tucanismo-kassabismo, mas que já não mais suporta José Serra (42% de rejeição), fortemente identificado com o prefeito Gilberto Kassab (PSD), que é por sua vez pessimamente avaliado pela população (nota 4,4, de acordo com o Datafolha, numa escala de zero a dez). Assim, minha impressão é que uma boa parte desses votos conservadores estaria escorregando para a candidatura Russomanno, o “fato novo” a ser sustentado (são votos que não migrariam para o PT).
Some-se a isso o fato de o candidato aparecer como uma espécie de xerife, o garantidor da ordem e dos bons costumes paulistanos (discursinho que sempre funciona em São Paulo), além de ter respaldo e sustentação declarados da Igreja Universal do Reino de Deus e de outras correntes evangélicas, o que pode ajudar a explicar os índices significativos de votos conquistados até aqui nas periferias da cidade, em áreas historicamente fieis ao PT, como a zona leste paulistana.
Essa tentativa de compreender o fenômeno Russomanno passa obrigatoriamente pela fala da filósofa Marilena Chauí, no evento “A ascensão conservadora em São Paulo”, promovido pelo Coletivo dos Estudantes em Defesa da Educação Pública e realizado no final de agosto na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Não tive a oportunidade de participar do debate, infelizmente, mas resgatei o vídeo que circulou freneticamente pelas redes sociais e vi algumas vezes a intervenção de Marilena, que não tergiversou e foi na jugular: “São Paulo é uma cidade protofascista. Esse sentimento está interiorizado na sociedade paulistana. A gente nem percebe mais”, afirmou.
Com um misto de ironia e de indignação, ela recordou acontecimento emblemático dessa visão de mundo paulistana – retrógrada e egoísta. Num domingo recente, a professora precisava tirar dinheiro em caixa eletrônico em banco próximo da casa dela, mas as três vagas do estacionamento estavam ocupadas por um único veículo – um carro prateado gigantesco, com vidros escurecidos. Ela entrou no banco reclamando e dizendo que aquela atitude não estava correta. Segundos depois, foi abordada por uma mulher “naturalmente produzida” que, aos berros, perguntava para Marilena, sem constrangimento algum: “você não tem educação? Vai gritando com qualquer um, mesmo com quem não conhece? E você quer que eu estacione meu Mercedes em qualquer lugar?”.
Marilena confessou que foi tomada por uma onda de raiva quase incontrolável. E respondeu: “você é legítimo paradigma da classe média paulistana autoritária e violenta. Você é uma abominação política”. A senhorita, sem entender muita coisa, quase partiu para as vias de fato. Marilena replicou: “Você é uma abominação ética”. A toda-produzida e poderosa não se fez de rogada e, tal qual birra de criança, e então ajudada pelo namorado ou marido, fulminou: “a senhora é uma velha feia!”. Marilena fechou o cerco: “transformar minha velhice em xingamento é uma abominação cognitiva”. A dona do carrão continuou sem entender muita coisa.
(Breve nota – quem lida cotidianamente com a umbiguista terra de ninguém da entrada e saída de crianças em escolas particulares de São Paulo, com os carrões de última geração a mandar no espaço público e no trânsito, com cada motorista resolvendo o seu problema e dane-se o resto, identifica-se de imediato com a narrativa da professora).
Assim, o episódio com a dona do Mercedes no banco é simbólico do cenário político paulistano. “Convivemos com isso corriqueiramente. Viajo pelo Brasil. E não vejo algo que se aproxime de São Paulo, nesse sentido. É violência extrema. Está instalada historicamente e reforçada pela situação atual da cidade”, explica a filósofa. Para ela, em seu conjunto, a sociedade paulistana é autoritária, verticalizada, marcada pela presença das oligarquias, que naturalizam as desigualdades, operando com preconceitos de classe, religiosos, de sexo, profissional e racial. “É uma sociedade que não reconhece a humanidade do outro”, alerta. “Quando recebe impulso das políticas neoliberais, funciona como a mão e a luva – a cidade alarga os espaços privados, numa superexposição de intimidades, e estreita o espaço público. Pior: o privado é sempre superior, passa a ordenar e regular o público”, completa.
É nessa toada que funciona a sociedade paulistana, segundo Marilena, que traduz esse modus operandi em uma ideologia – a da ética. Aqui, ela faz um alerta: trata-se de uma ética desvirtuada, com viés empresarial, utilitarista, a estabelecer os padrões de conduta dos empregados, aquela que vai controlar e fiscalizar todos os comportamentos, numa espécie de entidade onipresente e repressora, e que acaba por transformar a cidade no espaço do “não pode, tudo é proibido, tudo deve ser denunciado, asséptico e limpo”. Segundo Marilena, os paulistanos ignoram a verdadeira ética, aquela que se relaciona intimamente com o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade.
Falando especificamente sobre a classe média paulistana, Marilena destaca que se trata de um segmento historicamente conservador. “Esteve na Marcha da Família, rezava terço contra o comunismo, sustentou o Comando de Caça aos Comunistas e apoiou a ditadura militar”, lembrou. Foi, portanto, sustentáculo ideológico fundamental do regime de terror instalado no Brasil em 1964. E foi recompensada, de acordo com a filósofa, com a massificação do ensino superior, para realizar “a aspiração máxima da classe média, que é o diploma, não o conhecimento, o saber”.
Marilena foi mais uma vez precisa: como não tem o poder político (nas mãos das elites), nem o poder econômico e social (que pertence aos trabalhadores), a classe média se apresenta como protagonista do exercício do poder ideológico. Nesse sentido, o núcleo de seu pensamento é o desejo de ordem e segurança, considerados imperativos fundamentais desse projeto. “Ela tem pesadelos com a simples possibilidade de se proletarizar, de cair de nível e de virar trabalhadora”. Por essa razão, Marilena diz que os programas sociais e de distribuição de renda viabilizados no Brasil nos últimos anos balançaram os alicerces da classe média paulistana, que está em pânico. “Sente que seu espaço foi invadido, vê-se completamente ameaçada. É como se o mundo dela estivesse desabando”.
A corrida para o candidato-gerente conservador e defensor dos bons costumes e da tradição passa a fazer sentido… Representaria um suspiro aliviado dos desesperados, sempre na direção da ordem e da segurança.
Por fim, no mesmo debate, as intervenções do filósofo Vladimir Safatle são também para lá de relevantes para esse esforço de compreensão e de análise política. Ele falou sobre as novas classes médias conservadoras, “filhas bastardas do lulismo”, e ressaltou o fato de terem sido forjadas a partir da referência do consumo, e não da cidadania. Engrossariam, assim, esse caldo de cultura conservadora, embora por outras motivações. Prometo postar aqui em breve o resumo da fala dele.
*Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação Social.
Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
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