Dependência contínua

Tadeu Breda, Latitude Sul

No último dia 15 de agosto, a Universidade de São Paulo foi palco do lançamento do livro Padrão de Reprodução do Capital (Boitempo, 2012), organizado pelos historiadores brasileiros Carla Ferreira e Mathias Luce – e pelo teórico chileno Jaime Osorio, que me recebeu para uma conversa sobre dependência econômica, governos progressistas e imperialismo brasileiro.

“O governo Lula permitiu ao capital brasileiro estabelecer alianças, manter acordos e ganhar posições não apenas no plano internacional, mas também no plano local e regional, como poucos governos poderiam ter feito com tanta simpatia”, explica o intelectual. “Sob a figura de Lula e diante do nascimento de movimentos anti-imperialistas no Cone Sul, o subimperialismo brasileiro encontrou as melhores condições para investir, criar esferas de influência e assegurar novas fontes de energia.”

Jaime Osorio é um dos principais discípulos do intelectual brasileiro Ruy Mauro Marini, um dos pais da teoria marxista da dependência, corrente que foi decisiva para o pensamento político da esquerda latino-americana na segunda metade do século 20. Atualmente, Osorio é professor da Universidad Autónoma Metropolitana Xochimilco (UAM-X) e da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam).

Como explica Osorio na entrevista, a teoria da dependência se dedicou – e se dedica até hoje – a pensar as particularidades do capitalismo e da luta de classes na América latina, tentando desvendar as razões que levam a economia mundial a criar desenvolvimento e bem-estar em alguns países enquanto mantém outras nações na pobreza. É com esses óculos que Jaime Osorio analisa a atualidade latino-americana e comenta o processo de desindustrialização atravessado pela região, ao passo que as exportações de matéria-prima crescem vertiginosamente.

Para o professor da UAM-X e da Unam, os governos da chamada ‘esquerda latino-americana’ permanecerão com o modelo primário-exportador enquanto não encontrarem novas fontes de recursos para financiar seus projetos de transformação. Jaime Osorio critica, porém, a falta de iniciativa de nossos países em adotar novas formas de organização política, menos centralizadas.  “Na medida em que dermos poder de decisão ao povo, vão aflorar 50 mil propostas sobre o que fazer com a economia”, acredita.

A teoria da dependência foi elaborada nos anos 1960 e 1970. Ela segue vigente?

Claro que sim. A teoria da dependência foi uma formulação que apareceu nos anos 1960 e 1970, mas que pretende definir as características de um tipo particular de capitalismo: o capitalismo dependente, que nada mais é do que a outra face do capitalismo observado nos países desenvolvidos e imperialistas. Portanto, não se trata de uma teoria que surgiu apenas para explicar o que acontecia naqueles anos, mas para entender como o sistema mundial capitalista cria centros e periferias, porquê gera desenvolvimento e, ao mesmo tempo, subdesenvolvimento. Em alguns lugares do mundo, o capitalismo se traduz em desenvolvimento; em nosso mundo latino-americano, porém, ele trouxe subdesenvolvimento, atraso e dependência.

A teoria da independência analisa as décadas de 1960 e 1970 da mesma maneira que analisa o mundo de hoje?

Os parâmetros da dependência foram modificados, pois o próprio capitalismo foi modificado em nossos países. O capital evoluiu, e isso provocou modificações no seio da América Latina: a partir dos anos 1980, encerrou-se o processo de industrialização que havia começado em meados do século 20. Nos anos 1960, a industrialização transmitia a ideia de que teríamos um controle maior sobre nossas próprias economias, de que seríamos mais autônomos e menos atrasados tecnologicamente, de que iríamos melhorar nossa capacidade de inserção no mercado mundial, de que levaríamos maior desenvolvimento e progresso aos nossos povos.

No entanto, quando esse padrão de reprodução industrial caiu, foi substituído por um processo que volta a posicionar-se no mercado mundial como economias exportadoras. Nossa condição de fornecedores de produtos básicos, sejam eles agrícolas ou minerais, voltou a ser valorizada. A ideia da industrialização como um processo que nos havia dado maior autonomia e capacidade tecnológica foi por água abaixo. Hoje, a indústria não é nada mais do que meros segmentos dentro das cadeias globais de produção: o que ficou da industrialização é a produção de partes industriais. O atraso tecnológico é maior e a desigualdade social se multiplicou. Enfim, seria difícil dizer que, como região, estamos melhor do que nos anos 1950 e 1960.

Por que a economia se reprimarizou?

Porque o processo de industrialização chegou a um ponto em que as burguesias nacionais já não teriam que produzir apenas roupas, móveis e bens de consumo imediatos, mas sim equipamentos e máquinas. No longo prazo, essa nova etapa significaria a instalação de indústrias onde máquinas produzissem máquinas. Tudo isso requeria investimentos vultosos e um processo de acumulação extraordinariamente elevado, coisa que as burguesias nacionais não esteve disposta a fazer – até porque acabou se associando à burguesia imperialista num momento em que os Estados Unidos possuíam um excedente de máquinas, resultado do final da segunda guerra mundial.

A aplicação dos conhecimentos da guerra ao processo produtivo provocou uma renovação dos equipamentos na economia estadunidense e o país ofereceu à América latina novas tecnologias. A burguesia latino-americana, que até este momento havia aceitado a ideia de ser uma burguesia nacionalista, mostrou que estava mais regida pela lógica do lucro que pela lógica de um projeto de desenvolvimento autônomo: associou-se ao capital estrangeiro, já não teve que investir em conhecimento tecnológico e assim se acabou o mito de que a industrialização nos levaria a uma situação melhor.

Mas ainda se acredita muito na industrialização como o caminho a seguir pelos países da América latina, não?

Sim, há uma espécie de mistificação daquilo que foi a industrialização latino-americana no passado – e também uma mistificação do que foi a industrialização brasileira. No Brasil, a industrialização estava desnacionalizada desde o começo. Desde os anos 1960, era uma industrialização que dependia do capital estrangeiro e de fontes externas para abastecer-se de tecnologias e conhecimentos. Ou seja, já havia perdido seu caráter de dinamizador do desenvolvimento.

Apesar de tudo, porém, isso era melhor do que temos hoje. Pelo menos havia uma certa organicidade. Por exemplo, a indústria automobilística importava motores e máquinas, mas as demais peças e partes do automóvel se produzia no mercado nacional. Isso significava de alguma maneira desenvolver alguns setores industriais. Hoje, essa é uma realidade cada vez mais restrita. Diante do atraso tecnológico que é produzir soja em vez de veículos automotores, sim, efetivamente, houve um atraso. Mas esse atraso não pode nos fazer perder de vista que já experimentamos essa industrialização e que esse modelo não foi uma fonte de desenvolvimento, autonomia, tecnologia ou conhecimento.

Ou seja, a industrialização continua sendo algo desejável, mas sobre bases diferentes das que existiam nos anos 1960?

Sim, desejável, desde que seja conduzida pelas mãos de outra classe social que não as burguesias locais que temos na América latina.

Por que os ‘governos de esquerda’ na América latina seguiram o caminho da exportação de produtos primários?

Ao conduzir projetos que vão contra à lógica tradicional do capitalismo, os governos da América latina estão se enfrentando ao problema de obter recursos para financiá-los. Portanto, a exportação cobre, petróleo, trigo ou carne estará presente durante algum tempo nesse processo de desenvolvimento de uma nova economia. O xis da questão é saber o que está sendo feito com os recursos que se originam da venda de cobre ou petróleo. O que estamos fazendo com esse dinheiro? Como aplicá-lo para que brinde mais autonomia econômica a nossos países? Como orientá-lo à satisfação das necessidades básicas da população? Como fazer com que promova bem-estar ao conjunto da sociedade e não fique represado nas mãos de grupos econômicos ou de empresas transnacionais? Como traduzi-lo em desenvolvimento tecnológico?

O problema não é reprimarizar a economia. Aliás, ‘reprimarização’ é uma noção equivocada, porque a América latina sempre teve uma pauta de exportação baseada fortemente em produtos primários, mesmo durante a etapa industrial. O que aconteceu é que o setor primário ganhou novos impulsos. Os preços do mercado internacional foram às alturas e propiciaram uma concentração de renda ainda maior. A desigualdade social, que já era grande, hoje em dia é brutal, pois a inserção dos produtores de matéria-prima no mercado mundial em condições competitivas implicou numa queda dos salários, precarização dos empregos e exclusão das pessoas do consumo. Isso enquanto a classe exportadora está recebendo os maiores ganhos dos últimos 50 anos.

Portanto, é factível que algumas das atividades voltadas à exportação de produtos primários irão se manter, porque são uma fonte importante de recursos, embora impliquem em destruição ambiental e desrespeito aos direitos dos povos indígenas. São uma forma de financiar projetos numa direção distinta ao capital.

E você acredita que verdadeiramente esses projetos caminham a uma direção contrária ao capitalismo?

Gostaria de dizer que sim, mas, infelizmente, nem sempre temos clareza sobre qual caminho adotar. As fronteiras nacionais parecem ser estreitas demais para se construir um novo tipo de economia. Portanto, deveríamos ter um programa regional. Nesse sentido, temas como o Mercosul podem ser importantes, não pelo que o bloco expressa hoje em dia, mas pelas suas perspectivas de futuro.

Os países latino-americanos terão que pensar regionalmente a construção de um sistema distinto ao capitalismo. Será muito difícil que cada economia consiga, separadamente, criar as condições necessárias para sua autonomia. Outra coisa é estabelecer parcerias com um Brasil e uma Argentina que caminhem em direções não capitalistas. Assim, as economias da América latina poderão apoiar-se mutuamente e vislumbrar um horizonte de desenvolvimento e construção de uma vida comum baseada em outros modelos.

Os movimentos sociais latino-americanos falam muito na construção de um novo modelo de desenvolvimento que respeite o meio ambiente e os direitos dos povos originários. Como o sr. vê esse novo modelo?

Acredito que hoje em dia os problemas da América latina passam mais por elaborar novos modelos de organização política do que criar novos modelos de desenvolvimento econômico. Na medida em que existam novas forças políticas e sangue novo pensando os problemas da região, haverá melhores condições de idealizar novos modelos de desenvolvimento. Na atual ordem das coisas, regida pela necessidade do lucro capitalista, dificilmente iremos conseguir colocar em prática modelos alternativos.

E será possível romper a lógica capitalista no curto prazo? Os ‘governos de esquerda’ estão trabalhando nesse sentido?

Acredito que os ‘governos de esquerda’, partcularmente na Bolívia e Venezuela, representam a vontade dos povos da América latina em encontrar novos horizontes. Não diria que esses governos saibam como atingir esses novos horizontes, isso é outra coisa, mas tenho certeza de que expressam a existência de setores importantes da sociedade latino-americana querem algo diferente. Esses governos estão integrados ao espírito da mudança, mas não sabem exatamente o que devem fazer para colocá-lo em prática.

Para mim, as tarefas prioritárias são de ordem política: fazer com que as decisões importantes e substanciais à vida em comum estejam nas mãos da sociedade. Na medida em que isso aconteça, vão aflorar 50 mil propostas sobre o que fazer com a economia. Enquanto a política se reduzir à tomada de decisões de cima pra baixo, com a participação de um ou outro movimento social, é lógico que a capacidade criativa da população estará limitada. Esse é um problema dos ‘governos de esquerda’.

A ideia é construir governos mais descentralizados, menos caudilhistas, que dialoguem com a sociedade e os movimentos organizados?

A ideia é que sejam governos dos povos. É um problema do poder – e não de administração. Embora estejam hoje em dia nas mãos dos setores de esquerda, os aparatos de Estado não foram feitos para satisfazer a necessidade do conjunto da população: continuam voltado às necessidades das elites. Por isso é que as forças de esquerda acabam atolando ao tentar administrar os aparatos estatais. E por isso digo que a tarefa prioritária é política. Primeiro, reunimos forças em outra lógica, depois vemos como organizamos a economia – e não ao contrário.

O sr. disse que o fortalecimento da economia exportadora veio acompanhada de uma redução dos salários e do poder de consumo da população. Porém, nos últimos anos, ao menos no Brasil, vemos que amplos setores da sociedade adentraram no círculo do consumo, e inclusive receberam estímulos do governo para comprar mais e mais. O Brasil é uma exceção na América latina?

Não acredito que o Brasil seja uma exceção, pois processos semelhantes podem ser observados na Bolívia, Venezuela ou Argentina. É verdade que o poder de consumo de parcelas importantes da população tem se elevado, mas se elevou a partir da queda que havia experimentado anteriormente. Se comparamos a valorização dos salários com os ganhos financeiros que se produziram no Brasil durante esse período, veremos que é uma porcentagem ínfima.

Entendo essa valorização como  a iniciativa de alguns governos em diminuir a situação imperante de extrema desigualdade, e não como uma consequência natural do crescimento das exportações de matérias-primas. Não é uma dinâmica própria do processo que a desigualdade social vá decrescendo. Eis a estrutura que devemos atacar: primeiro, resolvemos os problemas políticos, depois a organização econômica, para não ter que ficar procurando governos protetores que analisem a melhor maneira de aliviar nossa pobreza. É isso que tem ocorrido.

O Brasil é um país imperialista dentro da América latina?

Mais que um país imperialista, o Brasil é um país subimperialista. O subimperialismo é a forma de imperialismo possível dentro das condições de dependência. Para a sorte da burguesia brasileira, nos últimos anos o subimperialismo do país teve a vantagem de contar com um personagem ‘de esquerda’ chamado Luiz Inácio Lula da Silva, que permitiu ao capital brasileiro estabelecer alianças, manter acordos e ganhar posições não apenas no plano internacional, mas também no plano local e regional, como poucos governos poderiam ter feito com tanta simpatia.

Nessa época, emergiram na América latina forças políticas progressistas que entraram em conflito direto com o imperialismo tradicional, sobretudo com os Estados Unidos. Então, que alternativa melhor do que associar-se com o Brasil, que também tinha um governo ‘progressista’? Assim, o subimperialismo brasileiro, sob a figura de Lula e diante do nascimento de movimentos anti-imperialistas no Cone Sul, encontrou as melhores condições para investir, criar esferas de influência e assegurar novas fontes de energia. O subimperialismo brasileiro se expandiu e fortaleceu nos últimos anos como poucas vezes havia conseguido, e em muito pouco tempo.

E nas mãos de um governo de esquerda…

Não nas mãos de um governo de esquerda: nas mãos de um governo de… er… de um governo de Lula.

http://www.latitudesul.org/2012/09/11/dependencia-continua/

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