CE – Até 4 mil famílias podem perder suas casas por obras da copa

Em entrevista, pesquisadora diz que obras não vão beneficiar a maioria da população. O Minidoc “Torcendo pelo time da casa” conta a história da comunidade Trilha do Senhor, ameaçada de desapropriação em Fortaleza

 

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A pesquisadora e geógrafa Mariana Fernandes Mendes tem observado e documentado a mudança por que passa Fortaleza para sediar a Copa do Mundo de 2014. Em “Intervenções Urbanas para a Copa do Mundo em 2014”, ela mostra como as obras do PAC seguem a lógica das “cidades modelo”, que tratam o espaço público como mercadoria, expulsam comunidades em benefício das zonas “ricas” e de obras que privilegiam o transporte privado.

Em entrevista ao Copa Pública, Mariana explica que grande parte da população sequer imagina quantas pessoas estão ameaçadas de remoções – apenas para as obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) de um ramal, está prevista a remoção de aproximadamente 2.700 famílias.

“Minha hipótese sobre a realização do evento em Fortaleza é que o legado prometido se restringirá ao espetáculo”. Leia a entrevista.

Copa Pública – Como os preparativos para a Copa estão interferindo na vida das pessoas em Fortaleza?

Mariana Fernandes Mendes – Embora faltem apenas 2 anos para a celebração da Copa em 2014, grande parte da população de Fortaleza não parece saber que desde 2009, quando foram anunciadas as cidades-sedes brasileiras pela Fifa, várias famílias vivem atormentadas com a possibilidade de perderem suas casas, seus empregos, seus amigos, seus espaços de convivência e seus laços de afetividade por causa das propostas de remoção.

Este estado de apatia perante a realidade social não é somente uma característica das classes dominantes, mas das classes populares também, que muitas vezes, contaminadas pela mídia corporativista, não se reconhecem como grupos sociais excluídos do processo de construção da cidade que habitam.

Várias comunidades são estigmatizadas pela violência urbana e retratadas na televisão de maneira pejorativa por programas sensacionalistas, que determinam os espaços que devem ser evitados e que não podem ser frequentados pelas “pessoas de bem” por que ali reside a criminalidade. Quando se divulga na mídia que estas comunidades estão com os dias contados, alguns moradores próximos vêem nisso uma possibilidade de ampliação dos negócios, valorização de sua propriedade, mas não se colocam no lugar daqueles que infortunadamente serão despejados. Fortaleza, desde as Políticas de Desfavelamento na década de 1980, tem um histórico de remoção traumático.

Na atual gestão da Prefeita Luizianne Lins (PT), foram feitas remoções de duas comunidades: a Lagoa da Zeza e Vila Cazumba, cuja população foi reassentada no Conjunto Maria Tomázia, considerada pelos moradores um verdadeiro campo de concentração, pois além de sofrer com o isolamento geográfico, o lugar carece de uma série de equipamentos urbanos necessários, como creches e escolas. E com a realização da Copa, haverá a construção de outros dois assentamentos para realocar a população removida por intervenções de obras majoritariamente viárias.

Quantas pessoas serão despejadas por conta de obras para a Copa?

Apesar da incerteza dos dados e da obscuridade das informações por parte do poder público, foi divulgado no Portal da Transparência que para as obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) ramal Parangaba-Mucuripe, estão previstas a remoção de aproximadamente 2.700 famílias, 1.800 já cadastradas. Entretanto, de acordo com o Movimento de Luta e Defesa da Moradia (MLDM), os 12,7 km de extensão do trilho do VLT atingirão em torno de 4 mil famílias situadas ao longo da via férrea cargueira já existente, que percorre 22 bairros e várias comunidades.  Dentre estas, estão a Trilha do Senhor, Dom Oscar Romero, São Vicente, Rio Pardo, Canos, Jangadeiros, João XXIII e Aldaci Barbosa que, juntas, formaram um movimento autônomo conhecido por “comunidade dos trilhos”. Este movimento têm resistido às desapropriações. Outras comunidades também serão atingidas pelo VLT como Lagamar e Serviluz e também as que lutam através do Comitê Popular da Copa, como a Lauro Vieira Chaves. Há ainda outras que não serão atingidas somente pelo VLT, como o complexo em torno do Castelão que poderá atingir as comunidades da Bela Vista e Barroso.

A construção do Aquário Oceânico ao lado da comunidade do Poço das Dragas, apesar de não apresentar nenhuma proposta de remoção da população que ali vive há mais de cem anos, tende a fomentar ainda mais a especulação em torno da área, visto que se localiza na Praia de Iracema, bairro boêmio e tradicional de Fortaleza, que concentra bares e festas noturnas e que atualmente passa por um processo de requalificação urbana e turistica. Contudo, a mobilização popular contrária ao processo de higienização urbana e faxina social em Fortaleza fez com que algumas destas obras fossem paralisadas como esta do Aquário, que teve as obras interditadas por 2 meses pelo Ministério Público. O MP foi acionado pelo Movimento “Quem dera ser um peixe” que alegou irregularidades na licença ambiental.

As obras do VLT, que deveriam começar em dezembro de 2011, só tiveram inicio em abril deste ano por causa de problemas no processo licitatório e por pressão dos movimentos populares junto ao Ministério Público. Com o atraso da obra e a recusa do preenchimento dos cadastros da prefeitura pelos moradores, houve alterações no traçado oficial, reduzindo o número de famílias atingidas.

Os BRT’s (Bus Rapid Transit) que serão implementados nas Avenidas Alberto Craveiro, Paulino Rocha, Dedé Brasil e Raul Barbosa/ Via Expressa também estão em atraso – não por conta das mobilizações populares, mas porque a empresa Delta, responsável pela obra, teve seu contrato suspendido em decorrência da suspeita de envolvimento com o esquema de suborno liderado por Carlinhos Cachoeira em maio deste ano.

Vale ressaltar que além do VLT, BRT, Aquário e Reforma do Estádio Castelão, existem outras obras iniciadas antes da confirmação das cidades-sedes brasileiras em 2009 e incorporadas pelo PAC da Copa como é o caso do Metrofor (linha Norte/ Sul), já funcionando 15 km em fase experimental, que terá integração com o VLT e a revitalização do Rio Maranguapinho que acarretou em remoções no ano de 2008.  As demais obras em andamento não envolvem remoções, como a ampliação do aeroporto Pinto Martins e Porto Pecém.

Na sua pesquisa, você fala sobre a especulação imobiliária e sobre como as benfeitorias anunciadas se concentram em locais específicos para uma fatia específica da sociedade. Pode falar um pouco sobre isso?

As obras da Copa, sem dúvida alguma, são socialmente classistas e espacialmente seletivas por que se concentram no eixo Estádio-Aeroporto-Litoral-Porto. Minha hipótese sobre a realização do evento em Fortaleza é que o legado prometido se restringirá ao espetáculo, pois o georreferenciamento das obras ao fazer parte desta conexão, negligencia prioridades e delimita rotas, redirecionando os fluxos.

Com a vinda da Copa em 2014 para Fortaleza, o processo de especulação imobiliária tende a aumentar à medida que as obras concluídas imprimem valores que se materializam na forma de usar e ocupar o solo urbano de maneira seletiva. Portanto, a organização espacial do evento está voltada para atender aos turistas torcedores e não à população, visto que outros equipamentos, como saneamento básico e outros transportes de massa seriam bem mais úteis para o cotidiano da classe trabalhadora do que a espetacularização do VLT e seu pacote de remoções.

Segundo seu trabalho, os investimentos em mobilidade pública irão para o alargamento de rodovias e para facilitar a circulação de carros ao invés de melhorar o sistema de transporte público por exemplo…

Bem, outra hipótese que apresento é que os investimentos voltados para os projetos de mobilidade urbana através do melhoramento do sistema viário, além de acarretar remoções, suplantando o direito de moradia de várias pessoas com a duplicação de ruas e avenidas, não pressupõe um aprimoramento no setor de transportes coletivos, pois sua implementação poderá induzir o tráfego de veículos motorizados particulares na cidade, já que ampliará as formas de transitar.

Os meios de transportes são equipamentos coletivos que locomovem pessoas e as vias são infraestruturas que viabilizam a circulação material de capital. Ou seja, quando o sistema viário privilegia o transporte individual, como carros e bicicletas, não é considerado um meio de consumo coletivo, porém, quando sua estrutura atende o deslocamento da maioria da população torna-se um meio de uso coletivo e não apenas de circulação. Via de regra o aumento da capacidade rodoviária induz o tráfego de automóveis por que prioriza a logística corporativa das demandas produtivas a partir dos investimentos em infraestruturas que garantem a circulação de mercadorias em detrimento das necessidades de deslocamento da população.

Como funciona o conceito de “cidade empreendedora”? Tem a ver com o conceito de “cidade modelo”?

A “Cidade empreendedora”, na verdade, se trata de um modelo de cidade dinâmica e competitiva que está associada à expressão de “Cidade modelo”. No caso brasileiro, muitas cidades se destacam no atual momento como cidades empreendedoras, como Salvador, Recife e até Fortaleza que, mesmo fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo, conseguem sediar grandes eventos culturais, como carnavais, festas juninas, shows internacionais, etc. Estas cidades, na esteira de outros modelos de cidades empreendedoras, são geridas não só como uma mercadoria, mas são planejadas estrategicamente para tornarem-se um grande “negócio”, propiciando a construção de uma rede de “Cidades Modelos”, que são repletas de problemas sociais, cujo modelo padrão é o da segregação socioespacial.

O termo empreendedorismo foi aplicado pela primeira vez pelo economista Joseph Schumpeter em 1950, e significa uma forma de qualificar ou especificar um indivíduo ou organização que se modifica e trabalha de maneira inovadora. O planejamento empreendedor, portanto é uma invenção americana das políticas keneysianas do Estado Social que visava recuperar as áreas centrais pelo processo de gentrificação. Ou seja, tornar os espaços de centralidade culturalmente apropriados para as camadas sociais de alto poder aquisitivo.

Os governos locais passaram a investir na melhoria da imagem de suas cidades, tornando-as atraentes e alterando substancialmente o papel da governança urbana que deixa de ser administrativa para tornar-se empreendedora.  Este processo priorizou as parcerias público-privadas em detrimento das políticas públicas estatais e substituiu o desenvolvimento racionalmente planejado pelo especulativo. Cidades americanas na década de 1970, como Baltimore, apesar de terem recebido vultosos investimentos infraestruturais voltados para o setor turístico, enfrentaram graves dificuldades financeiras ocasionadas pelo endividamento da população e dos cofres públicos, fazendo com que uma década mais tarde fosse considerada uma das cidades mais pobres e deterioradas dos EUA.

Como a Copa está relacionada a estes conceitos?

A Copa do Mundo de Futebol é  de um grande evento esportivo que existe desde 1930, mas só a partir de 1994 podemos considerá-la um megaevento esportivo que fomenta o empreendedorismo urbano e acirra a competição entre as economias locais.

Desde as Olimpíadas de Barcelona, em 1992, teve início um modelo de gestão urbana olímpica, baseado em um planejamento estratégico norte-americano que fez da capital da Catalunha uma cidade empresarial e cultural, associada ao city marketing e ao empreendedorismo urbano. O apelo estético passou a ser uma exigência do COI e da FIFA na escolha de países e cidades que têm como proposta pleitear a realização destes eventos em seus respectivos territórios.

Portanto, faz-se necessário que as políticas locais estejam alinhadas às perspectivas de mercado que dinamizam a circulação material e imaterial de mercadorias, através de investimentos no sistema informacional e no setor viário e de transportes, nas atividades turísticas e de serviços, na oferta de cursos de capacitação para adequação da força de trabalho às novas tecnologias, na instalação de equipamentos coletivos que viabilizam as forças produtivas, como os programas de habitação popular, etc. Todos estes elementos estão intrinsecamente ligados à produção de cidades empreendedoras, entretanto alguns destes itens são mais privilegiados do que outros nas agendas governamentais, gerando discrepâncias entre os lugares sedes. Portanto, alguns países conseguem resolver, ao menos parcialmente, seus problemas com os investimentos trazidos pela Copa, já outros países devido ao processo de urbanização periférica no qual foram submetidos historicamente e as políticas locais implementadas, ao invés de solucionarem suas dívidas sociais, criam saldos devedores financeiros insolváveis, pulverizando a segregação socioespacial.

O Copa Pública trouxe também o tema do emprego, mostrando que a África do Sul sofreu com a propaganda de geração de empregos que, na verdade, gerou empregos temporários e depois uma massa de desempregados. Você acha que isso vai acontecer aqui também?

A empregabilidade é sazonal porque a construção civil é um setor que se mantém aquecido enquanto houver obras.Quando estas terminam, somente o setor imobiliário se beneficia, uma vez que ele é especulativo e não produtivo.

O discurso do desenvolvimento local e da geração de emprego e renda propagada pelos gestores públicos e corporações financeiras não se sustenta quando os efeitos destas obras geram transtornos para a maioria da população e melhorias para uma parcela mínima formada por alguns segmentos sociais como os proprietários fundiários, os empresários da construção civil, os promotores imobiliários, as empreiteiras e as firmas terceirizadas – sem contar os agentes políticos e a mídia corporativista, cujo poder de publicização das marcas patrocinadoras da Copa e exibição dos jogos lhe confere cifras milionárias.

Na África do Sul, por exemplo, qualquer ato de manifestação contrário ao evento era severamente punido pela repressão policial, enquanto a imprensa disseminava a ideia de aceitação pela maioria do povo sul-africano. No Brasil, os índices de desemprego ocasionado pelos empregos temporários podem não ser tão alarmantes como na realidade africana, entretanto a violação dos direitos humanos, os despejos forçados e a censura à liberdade de expressão tendem a ser iguais, por que essas são medidas características do estado de exceção: a arbitrariedade legal que vem do abuso de poder que a FIFA exerce sobre os países e as cidades-sedes, negligenciando os interesses e as necessidades de seus habitantes, bem como desrespeitando suas leis internas em detrimento do lucro de seus investidores externos.

http://www.brasildefato.com.br/node/10560

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