Mÿky: entre florestas, gado e queimadas

Matéria publicada no Brasil de Fato retrata o cotidiano da aldeia indígena Mÿky, no Mato Grosso. Segundo suas crenças, os seres humanos viviam dentro de uma enorme pedra até que um dia um urubu curioso espiou pela fresta e viu o que estava lá fora. Assim os Mÿki veem o novo mundo que surgiu ao seu redor: espiando as incertezas do futuro

Os caminhos que levam à aldeia Japuíra, região de Brasnorte, Mato Grosso, são tão novos para seus habitantes quanto aos visitantes de primeira viagem. Recém instalados, postes correm quilômetros de fios elétricos pela estrada de terra que se aprofunda na Amazônia matogrossense até a Terra Indígena Mÿky. Por entre os escombros de árvores derrubadas para a empreitada, macacos e demais bichos da floresta se precipitam no caminho e novamente, assustados, retornam para a mata. O hálito da selva é úmido e fresco.

Em outros trechos, fazendas de gado crescem em queimadas diárias e transformam a floresta em pasto – paradoxo à ação dos madeireiros que retiram de forma incessante carretas com toras de árvores. A estrada torna-se abafada e quente. Durante o trajeto aos Mÿky, porteiras, gado e fumaça acompanham quem segue ao Território Indígena, não incluído na demarcação ocorrida antes da Constituição de 1988.

Muito além de eletricidade, desliza pelos cabos de alta tensão ao centro do convívio social Mÿky uma avalanche de possibilidades de novas vivências decorrentes do pluralismo histórico, no qual as relações interculturais promovem transformações no modo de vida e cosmologia dos indígenas – inclusive com a assimilação de valores sistêmicos vistos na sociedade envolvente. Quarenta anos depois do contato, ocorrido entre junho e julho de 1971, os Mÿky discutem como adaptar as informações que vêm de fora da aldeia com a cultura tradicional.

Saídos da pedra

De acordo com a cosmologia Mÿky, todos os seres humanos saíram de uma enorme pedra. Viviam lá sem saber das belezas que compunham o mundo, mas conviviam em comunidade, dançavam e cantavam. Certa vez, um urubu decidiu espiar por uma fresta o que existia fora da pedra e apanhou uma flor. Com ela, convenceu os demais a saírem – apesar dos questionamentos feitos sobre as brigas e violência que possivelmente os esperavam. O encanto pela beleza prevaleceu, e com a ajuda dos animais que já viviam no mundo, conseguiram sair da pedra. Dizem que apenas um ancião ficou por lá: não queria sofrer com as violências e doenças.

Todos os povos indígenas que saíram foram viver embaixo de uma árvore. Os Mÿky foram para um pé de cambará. Os brancos também tiveram a sua árvore. No entanto, quando missionários indigenistas fizeram contato, em maio de 1971, os brancos não estavam mais contentes em ter sua própria árvore e há muito haviam passado a invadir a dos povos indígenas.

Desde o início do século 20, os Mÿky passaram a sofrer massacres e violências de seringueiros. “(…) Então um deles, para melhor trucidar os misérrimos foragidos (indígenas que fugiam dos ataques), resolveu trepar à coberta de um dos ranchos, praticar nela uma abertura e por esta, metendo o cano da carabina, foi visando e abatendo, uma após outra, as pessoas que lá estavam, sem distinguir sexos nem idades”, relatou o padre jesuíta Dornstauder nas páginas de seu diário, em novembro de 1948.

“Era pequeno, mas tenho na cabeça os mais velhos falando. Tudo se acabou com o branco e fazendeiro invade, destrói. Isso me preocupa”, diz o cacique Mÿky Janãxi. O contato teve como motivação os já seculares relatos dos atores de um desenvolvimento remoto que avançavam sobre os povos em liberdade, na ganância pelas riquezas dos territórios. Antes da chegada dos missionários jesuítas, durante o ano de 1971, já havia sido pedido para a Fundação Nacional do Índio (Funai) a demarcação das terras dos Mÿky do Escondido.

O procedimento nunca foi feito e, nos dois anos posteriores ao contato, ataques de fazendeiros precipitaram-se sobre a aldeia Mÿky. “Então pude constatar que das malocas indígenas só havia restado um montão de destroços. O trator de esteiras trabalhava. Os índios haviam se retirado há dois dias, levando nas costas o que puderam. Foram enganados.”, declarou o jesuíta Thomaz de Aquino Lisboa. A denúncia do missionário garantiu a intervenção da Funai.

O menino que virou roça


Conta-se entre os Mÿky que a roça surgiu de um menino indígena perguntador e curioso. Sempre que o pai, chefe da aldeia, chegava da caça ou pesca o menino perguntava qual bicho o pai tinha caçado. Em resposta, o chefe assobiava ao filho. Dia após dia essa era a resposta do pai. Zangado, o menino chamou a mãe. No mato, ao avistar uma linda capoeira, cavou um buraco e disse para a mãe enterrá-lo, de modo que ficasse apenas com a cabeça de fora. Depois de algumas negativas e sob lágrimas, a mulher o cobriu de terra. Alguns dias depois, mãe e pai voltaram para ver como o filho estava.

O braço virou mandioca mansa. A cabeça virou cabaça. A unha virou amendoim. A costela virou feijão costela. O osso do peito virou feijão fava. O coração, cará branco. O fígado, cará preto. A perna virou mandioca brava. A tripa virou batata doce. O pênis, araruta. O joelho, uma cabacinha.

Pai e mãe recolheram todos esses alimentos que brotaram do menino. Com a mandioca ralada foi feito o beiju. As migalhas caídas foram levadas pelas formigas para outras malocas da aldeia e quando os demais indígenas as comeram, logo passaram a fazer o mesmo. Surgem assim as roças indígenas.

Com a invasão das terras Mÿky, as mortes e expulsões se ‘incorporaram’ ao mito. Dos corpos martirizados nasce o arroz, cultivo que se tornou uma especialidade Mÿky, a cana-de-açúcar, a banana, entre outros. Não comercializam o que produzem, apenas em momentos de troca. A roça, portanto, ganha significado cosmológico e religioso em todo seu ciclo, durante o ano. Cultivá-la significa não se desgarrar da cultura. Por ela perpassa a resistência e a construção do projeto de futuro Mÿky.

Na aldeia vivem hoje 121 indígenas: apenas cinco anciãos e 52 crianças; o restante, entre a juventude e a fase adulta. “Preocupa a bebida porque jovem não pensa muito. Só bebem. Gostam disso (sic)”, aponta Xinuxi Mÿky. Além do alcoolismo, o emprego assalariado e os atrativos de fora, como motos e automóveis, têm levado a debates entre os integrantes da comunidade. Assim a escola indígena acaba por ter papel central nesse contexto.

A língua Mÿky é preservada como elemento fundamental dentro de um contexto de transformações e ataques à sua cultura. Jaapátau Mÿky é professora e alfabetizou 24 crianças nos últimos dois anos. “Ensino com base no trabalho, nas práticas do povo. Caminhamos pela aldeia e vemos tudo que a envolve”, explica. A metodologia de ensino de Jaapátau está expressa no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola Mÿky.

Nele, os mitos de criação, a roça, o jeito de se fazer as moradias tradicionais, a culinária, as lutas de defesa do território, a história e tudo que envolve o povo fazem parte do PPP.

As casas feitas em tábuas de madeira com piso de cimento substituíram as malocas familiares, onde todos convivem num mesmo espaço comum. Motos cruzam o terreiro junto com bicicletas, crianças e animais. Sob o sol, o dia queima devagar as mudanças ligeiras e permanentes no cotidiano Mÿky. Os fios de alta tensão riscam os horizontes da aldeia e levam para as casas a possibilidade de se ter geladeira, televisão, microondas e demais utensílios eletroeletrônicos.

Nesse sentido, as preocupações dos indígenas são de primeira ordem: o fim da casa coletiva gerou impactos no convívio. Com a televisão, como ficará? A partilha dos alimentos, marca dos Mÿky, sofrerá alguma alteração com a possibilidade de se acumular alimentos em geladeiras? Perguntas discutidas entre os Mÿky. Apenas uma casa coletiva foi mantida pelo povo. Ela é usada nas noites de canto da Jéta sagrada, ritual onde as mulheres não podem participar e por isso ficam dentro da casa coletiva com as crianças.

Os homens e jovens ficam fora, no terreiro, deitados em redes, ao redor de uma fogueira, contando histórias e tirando os mais lindos sons da Jéta. No entanto, tais encontros estão cada vez mais raros.

Anambu deu o algodão

O canto de uma nambu (espécie de ave) atraiu a atenção de uma mulher indígena que fazia corda para a confecção de redes. Quando a viu, prontamente começaram a conversar. Curiosa, a nambu perguntou o que a mulher estava fazendo. Ao saber, a nambu disse que era dona do algodão e que o daria para a indígena – que junto com o marido dominou o cultivo das roças de algodão. O mito representa a importância do cultivo do algodão entre os Mÿky. Mais do que isso, a importância que os seres da natureza representam para os indígenas.

“Os brancos usam máquinas para derrubar tudo e vender a madeira. Por isso brigamos por nossos direitos. Queremos a mata inteira para as antas e os animais terem o que comer e terem vida. Sem nossa existência fica difícil”, diz o cacique Janãxi. A consciência dos Mÿky quanto à natureza é profunda. Diminuíram algumas caças porque observaram a diminuição de algumas espécies com a ação de madeireiros e latifundiários criadores de gado.

Nos rios, a poluição também diminui, ano a ano, a quantidade de espécies de peixe para a pesca. A construção de uma usina hidrelétrica – a cerca de 8 km da aldeia – perto do rio Papagaio piorou a situação, pois gerou impactos na comunidade e em outros rios. “Na minha cabeça isso é motivo de grande preocupação. Os fazendeiros estão nos cercando feito galinhas num galinheiro, e nós estamos crescendo”, explica o cacique.

A comunidade agora reivindica que todo o Território Indígena, 186 mil hectares, entre na demarcação feita pela Funai antes da Constituição de 1988. É nessa área não demarcada que atuam os fazendeiros e madeireiros – inclusive dentro da área demarcada, motivo da criação de um grupo de fiscalização entre os Mÿky. O laudo antropológico da Funai levantou mais de 100 locais de interesse dos indígenas fora da atual demarcação, como cemitérios, áreas de reza, caça e pesca, de onde foram expulsos por fazendeiros invasores.

“Disseram que compraram nosso território. Fizeram mesmo foi nos expulsar”, conta Mãty’y Mÿky. Estradas são constantemente abertas para a passagem das carretas, a Funai não toma providências – se trata de uma área em processo de demarcação – e o Ibama diz que nada pode fazer pois está fora da área indígena. Segundo estimativas de representantes da prefeitura de Brasnorte, 200 mil metros cúbicos de madeira são retirados por mês do território. Para Warakuxi Mÿky, as mudanças nem sempre são ruins, mas é preciso garantir a cultura e o território: “A energia elétrica é boa, mas não podemos deixar nossos alimentos, nossas práticas, abandonar a roça. Agora é hora de intensificar isso tudo e ir lutar para que nosso território seja de fato nosso, para podermos proteger os animais e nosso futuro”. (Jornal Porantim)

Fonte: Brasil de Fato (Fotos: Renato Santana)

http://www.vermelho.org.br/mg/noticia.php?id_secao=10&id_noticia=172234

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.