O cotidiano é o principal tema das canções que embalam a vida na comunidade Umarizal Centro, no município de Baião (PA). As músicas retratam lembranças e histórias de um tempo de lutas e dramas que a memória e corpo não esquecem, onde cantar era e continua sendo a melhor maneira de afastar a dor e o sofrimento. Cantar e dançar para seguir existindo.
Das 45 músicas cantadas por gerações que narram as desventuras, o trabalho no campo, passando por pequenas proezas, o respeito aos ancestrais, namoros e assuntos da rotina do povo quilombola, 16 podem ser encontradas no recém-lançado “Samba de Cacete: Recordação de Umarizal”. O disco é o resultado do projeto “Gestão e Sustentabilidade em Baião – Pará”, desenvolvido pela Rádio Margarida com patrocínio da Petrobras e Governo Federal, além do apoio da Prefeitura Municipal de Baião e da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo Umarizal Centro, Umarizal Beira, Boa Vista, Paritá Miri e Balieiro. Gravado no Midas Amazon Studio em Belém, o CD foi mixado e remasterizado por Jacinto Kahwage e Luiz Pardal. Ao todo foram feitas 1.500 cópias da produção, dos quais mil pertencem à comunidade, que ainda avalia o melhor destino para o produto.
“A gente pensa em vender pra comprar equipamento pro grupo, queremos ter microfones, porque a gente ensaia sem e fica complicado. A gente ensaia de um jeito e quando vai tocar é de outro”, diz Vivaldo Barradas Lisboa, 66, um dos músicos do grupo Recordação de Samba de Cacete do Umarizal. O grupo é o responsável por animar o dia a dia da comunidade e manter viva a tradição do ritmo. “É impressionante, são pessoas que nunca tiveram aula de canto na vida. Todos são muito afinados”, diz Osmar Pancera, coordenador do projeto. As mulheres, especialmente. Além, de dançarem devidamente arrumadas, com saias e blusas semelhantes às das dançarinas de carimbó.
TRADIÇÃO
Crônica musical de um tempo, o CD resgata e divulga uma cultura ancestral que se estabeleceu há quase 200 anos nesse recanto da Amazônia, quando homens e mulheres resolveram conquistar a própria liberdade e fugiram da escravidão. Não à toa, se afastaram do mundo para que essa condição jamais fosse arrancada. A comunidade de Umarizal fica às margens do Rio Tocantins, cujos moradores são remanescentes do quilombo Paxiubal. Para chegar à sede do município de Baião, cuja comunidade faz parte, é preciso cruzar a única rua que os unifica, o rio, numa viagem de barco de quase três horas. Mas o tempo de travessia varia dependendo do transporte.
É nesse espaço que se desenvolveu o samba de cacete. Num tempo antigo, o samba era tocado durante a novena da festa de Nossa Senhora do Rosário ou quando os quilombolas iam trabalhar na terra, numa outra tradição chamada de “cunvidado”, onde as famílias convidavam umas as outras, se reuniam para colheita e passavam a noite inteira entre danças e músicas até o nascer do sol e o começo do trabalho. A festa atravessa a noite sob doses de japecanga, uma bebida à base de gengibre e cachaça capaz de esquentar ainda mais os tambores.
O samba de cacete é gênero musical que nasce a partir das batidas de tambores de madeira, do toque dos cacetes, dos cantos, batuques e danças de homens e mulheres numa explosão irresistível de energia e alegria. “[A pessoa] dança no som do pau, não tem segredo”, resume o outro integrante do “Recordação do Umarizal”, Izauro Vieira, de 60 anos. “Em Novo Repartimento [município que o grupo já tocou] até a mulher do prefeito dançou”, lembra Joana Janete da Cruz Serrão, de 47 anos.
(Diário do Pará)
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