CE – Entidades solicitam divulgação de nomes e telefones de juízes e defensores públicos de plantão em feriados e fins de semana, para garantir direitos constitucionais

Tania Pacheco e Rodrigo de Medeiros Silva

“As sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e formas de organização, especial atenção ao uso e ocupação da terra. A razão é óbvia: todas as sociedades tiraram dela seu sustento. E entenda-se sustento tanto o pão de cada dia como ética refundidora da sociedade”.[1]

A frase acima, escrita por Carlos Frederico Marés no livro A função social da terra, abre um requerimento belamente redigido e enviado ao Presidente do Tribunal de Justiça do Ceará por quatro entidades: o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA), a  Associação 64/68- Anistia, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar e a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap). O requerimento solicita que passem a ser afixados em lugar visível a todas as pessoas, nas delegacias e cadeias, a relação dos juízes e defensores públicos que estiverem de plantão nos fins de semana e feriados, assim como seus telefones e outras formas de contatá-los. Versões específicas foram encaminhadas igualmente para a Defensora Pública-Geral, com cópia para a Ouvidora-Geral; para o Secretário de Segurança Pública e Defesa Social; e para a Secretária de Justiça e Cidadania, cada um dentro de sua respectiva competência.

A solicitação tem total respaldo na Constituição, que determina a garantia perene do acesso à justiça (art. 5º, XXXV e LXXIV), através de juízes de plantão (art. 93,  XII), e já é prática em outros estados, como Minas Gerais. No caso em questão, foi motivada por fatos envolvendo a prisão de cinco integrantes do MST, no dia 9 de dezembro de 2011, em Canto Escuro, Município de Uruburetama-CE, sob a acusação de furto de telhas de uma casa abandonada (que depois se mostraria totalmente falsa e indevida, inclusive).

Os acusados foram levados para a Delegacia Regional de Itapipoca. Deles, um senhor de idade e saúde frágil foi liberado em seguida, mas adolescente foi ilegalmente mantido preso numa cela com adultos, embora os policiais tanto tivessem clara a sua idade, que ameaçavam encaminhá-lo para a FEBEM. A chegada de sua mãe, com a certidão de nascimento, forçou a sua libertação com termo de custódia. Em relação aos outros três prisioneiros, entretanto, foi aberto inquérito policial, no mesmo dia, às 16:37, sob a acusação de furto qualificado.

O advogado dos presos foi a Itapipoca no sábado, dia 10 de dezembro de 2011, e tirou cópia do inquérito, mas não conseguiu saber quem era o juiz de plantão. No sítio eletrônico do próprio Tribunal de Justiça não foi possível encontrar a informação, e o delegado e o inspetor de polícia afirmaram que não sabiam quem era o juiz de plantão, acrescentando que só teriam condições de comunicar a prisão na segunda-feira, dia 12. Em consequência, o advogado viu-se inteiramente cerceado na sua capacidade de buscar as medidas legais para a garantir os direitos dos prisioneiros.

O requerimento afirma que esse episódio mostra claramente, também, a seletividade e “estigmatização dos presos, tendo em vista a sua origem simples e dificuldade de acessar de forma eficaz o sistema de justiça para o reto provimento jurisdicional”. Cita, a respeito, texto de Juarez Cirino Santos:

Em síntese, a Criminologia Crítica define o Direito Penal como sistema dinâmico desigual em todos os níveis de suas funções: a) ao nível da definição de crimes constitui proteção seletiva de bens jurídicos representativos das necessidades e interesses das classes hegemônicas nas relações de produção/circulação econômica e de poder político das sociedades capitalistas; b) ao nível da aplicação de penas constitui estigmatização seletiva de indivíduos excluídos das relações de produção e de poder político da formação social; c) ao nível da execução penal constitui repressão seletiva de marginalizados sociais do mercado de trabalho e, portanto, de sujeitos sem utilidade real nas relações de produção/ distribuição material, mas com utilidade simbólica no processo de reprodução das condições sociais desiguais e opressivas do capitalismo. (SANTOS, Juarez Cirino. Teoria da Pena- Fundamentos políticos e Aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p.35)

E continua, argumentando de forma politicamente incontestável em defesa da igualdade de direitos e do respeito à justiça plena – “Infelizmente, pela realidade social de nosso Estado e País, sabe-se que este não é um episódio isolado e nem será o último:

As graves injustiças sociais geradas pelo sistema econômico, político e jurídico, que preside as relações humanas no Brasil, têm como efeito, hoje, crescentes violações de direitos humanos fundamentais, de multidões de pessoas pobres. (Advocacia Popular- Caderno Especial- 1995-2005/ 10 anos. Caderno nº 6, março de 2005. RENAP, 2005, p.83)

Da mesma forma, nosso Estado Democrática de Direito, em seu esforço de concretização, deve criar mecanismos que evitem estas estigmatizações, como as que advém das forças democráticas de movimentos sociais, que propugnam por mudanças estruturais, no intuito de superar estas desigualdades e exclusões:

Os sem-terra, ao lutar por reforma agrária, são movidos por uma consciência de justiça social. A luta não é contra o Estado, e sim contra o governo, que na estratégia hobbesiana seria uma enfermidade contra o Estado. (BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resitência Constitucional. 2º ed. . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.309)

Há muito o Poder Judiciário concebeu entendimento que a luta do MST não é crime e sim pressão política para a realização da Constituição. Todavia, sabe-se que no mundo concreto certos entendimentos e o próprio ordenamento jurídico enfrenta uma cultura de preconceitos:

Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania[…]A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático. (CERNICCHIARO, 1996, Voto em Habeas Corpus STJ – 4.399/96).

Na mesma sentença, o eminente Ministro Vicente Cernicchiaro, ainda detalha as diferenças:

[…]  a  conduta  do  agente  do  esbulho  possessório  é  substancialmente  distinta  da conduta  da pessoa  com interesse  na  reforma  agrária.  No  esbulho  possessório, o agente, dolosamente, investe contra a propriedade alheia, a fim de usufruir um de causa […] Na ocupação pode haver do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação:  materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a perturbar,  por  perturbar,  a  propriedade.  Há  sentido,  finalidade  diferente.  Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da reforma agrária (CERNICCHIARO, 1996, Voto em Habeas Corpus STJ – 4.399/96).

Desta forma, que os poderes constituídos devem ao tratar da propriedade, observarem melhor a sua função social:

O que  o direito de propriedade sobre a terra garante de liberdade para um ou para alguns, pode reduzir ou até eliminar a possibilidade de vida digna, para milhares ou até milhões de outros. (ALFOSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003, p.211)”.

Os autores encerram o requerimento afirmando:

“Num Estado Democrático de Direito, as instituições  não podem ser adversárias de movimentos que lutam pela realização de direitos humanos fundamentais”.

Esperamos que o requerimento seja devidamente acolhido, e que o Ceará cumpra a Constituição também em relação a mais essa medida pela democratização do Sistema de Justiça.


[1] MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Anônio Fabris Editor, 2003, p.11.

 

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