Jornal Porantim
Caro professor, no início da década de 1950 o senhor se perguntou – com base nas visitas que fez, 20 anos antes, a comunidades indígenas dos sertões brasileiros: somos ainda humanos o bastante para compreendê-los? Desta questão, tua imaginação fértil, análise criteriosa de alguns povos e a revisão de parte de sua vida e produção intelectual produziram a obra Tristes Trópicos.
Sessenta anos se passaram e podemos dizer que hoje temos certeza de que não se trata apenas de compreensão, mas de garantir os direitos conquistados por estes povos no país e no mundo. Talvez a pergunta agora seja: somos humanos o bastante para fazer valer tais direitos, depois de séculos de espoliação e violência contra os povos indígenas?
Na forma em que o Estado está organizado, leis são detalhes para governos com interpretações particulares de democracia e produtos de grupos que dizem representar o povo e as reais necessidades da nação – muitos, com ideologias solventes ao contato com o processo histórico. Justamente por isso, cada governo é um, sendo todos forjados por interesses diluídos nas bolsas de valores, nos conchavos eleitorais e nos projetos sistêmicos.
O conceito hegemônico de humano instalado no Brasil, realidade emergente nesta carta, não pressupõe o olhar etnográfico sobre povos que insistentemente são ceifados em seus direitos. Por certo a etnografia pode ser uma forma de humanismo, porém mais do que humanismo se faz necessário que a violência instalada sobre os direitos indígenas se volte contra quem a pratica.
Tal prática é perpetrada pelo parlamento, que há anos tenta trazer para si e suas vicissitudes a autorização ou não de um dos direitos mais fundamentais para os povos tradicionais que é o território. Pelo governo, que esvazia os espaços institucionais de influência dos indígenas na vida estrutural do país. Pelo Judiciário, que garante direitos com uma mão e os toma com a outra.
Somos humanos o bastante para a rebelião contra um sistema autofágico, construtor de buracos no vácuo ao grito dos crucificados? Somos humanos a ponto de abdicarmos do caminho fácil de um projeto que atenta à lógica da destruição da natureza e das populações tradicionais como preço a se pagar pelo desenvolvimento nacional?
Não obstante, como refletir sobre o humano em interface com tais populações quando o Estado ainda não enxerga os indígenas dispostos secularmente sob formas próprias de organização social, política, cultural e cosmológica? Quando fomos humanos, posto que o projeto de colonização sempre atentou, com assombrosa violência, sobre o que a sociedade que ela erigiu finge não existir?
A medida do humano reside na capacidade crítica do indivíduo frente ao lugar comum imposto pelos consensos inventados da polícia palaciana. O humano está na resistência a qualquer projeto que sacrifique quem se nega a fazer parte de uma engrenagem, a se homogeneizar, a se coisificar na apatia de promessas pálidas, na cãibra de músculos usados para reproduzir a competição e na contínua exploração do homem pelo homem em troca do desenvolvimento coletivo.
Professor, desse modo, é possível dizer que avançamos com direitos e isso significa uma melhor compreensão com relação ao protagonismo dos povos originários. Por outro lado, está longe de ser o suficiente para que tais direitos sejam implementados e respeitados na integralidade. A Constituição Federal tornou-se o cemitério da liberdade e dos direitos.
Efetivamente não somos tão humanos quanto os indígenas, ou melhor, não nos reinventamos ao contato e, ao contrário, tentamos de toda forma os aniquilar tal como se estes povos fossem a medida de nossa desumanização e do quanto nosso modelo de sociedade está falido e fadado ao débâcle – enquanto eles resistem e traçam o próprio futuro.
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