Magnólia Azevedo Said*
No dia 8 de dezembro, a coordenação da ASA, em reunião com o Ministério do Desenvolvimento Social em Brasília, foi surpreendida com a decisão do governo Dilma de que não interessa mais ao governo brasileiro, continuar apoiando os dois únicos projetos governamentais que vêm de fato, levando água de qualidade para famílias necessitadas do semi-árido, através da construção de Cisternas de Placas, o P1MC e o P1 + 2, respectivamente: Programa 1 milhão de Cisternas e Programa 1 Terra e 2 Águas. Este último, além das cisternas, fornece água para a produção de alimentos.
O motivo explicitado pelo representante do Ministério foi de que a estratégia do governo com o Programa “Água para Todos”, dar-se-á pela via dos Estados e Municípios. Isso significa que doravante, a decisão sobre quem terá acesso à água, estará a cargo de governos e prefeituras.
A construção de cisternas com o uso do cimento, é resultado de todo um processo de mobilização, organização comunitária, conscientização e capacitação para o acesso a um direito básico. Além de trazer consigo a articulação entre água e meio ambiente a partir do envolvimento de toda a família, é ainda fonte geradora de emprego. Agora, por uma decisão anti-democrática e desrespeitosa com um conjunto de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, essa tecnologia será substituída por Cisternas de Plástico-PVC. Acreditem! Cisternas de Plástico no semi-árido!
Isso significa que os aprendizados de milhares de famílias que precisam de cisternas serão deixados de lado. De tecnologia social, cisternas passarão a ser tecnologias privadas, pois o valor agregado que fica para as famílias com o trabalho realizado pelas organizações que hoje atuam com essa tecnologia, se desfaz. A partir de então, um problema coletivo será tratado de modo isolado. De parceiras, as famílias transformam-se em clientes.
Agora, para que cisternas cheguem ao semi-árido, a rotina será outra:
1- Os gestores públicos mandarão seus “cabos eleitorais” identificar os possíveis merecedores do “benefício”, pois que cisterna nunca foi concebida como direito;
2- Contratam uma empresa para fazer a cisterna, porém aquela que tem alguma ligação política com o governo e/ou prefeitura;
3- Essa empresa contrata outra empresa para montar a Cisterna e nunca mais volta à comunidade;
4- A família recebe a cisterna. Todavia o sol abrasador que certamente contribuirá para esquentar a água (a de cimento não aquece tanto) trará consequências para a saúde das famílias. Contribuirá também para danificar mais rapidamente o equipamento e como os membros das famílias não terão acompanhamento técnico, os problemas que ocorrerem, por exemplo, um vazamento, deixarão a cisterna inutilizável.
Mais sério ainda do que uma fissura na cisterna é a substância química que é gerada pelo plástico, quando ele é aquecido. Chama-se Bisfenol A. Estudos científicos já comprovaram que ele é um disruptor endócrino, ou seja, se comporta no organismo como se fossem nossos hormônios sexuais. Dentre outros efeitos, provoca a aceleração da puberdade e a redução do número de espermatozóides. Já é sabido que ele provoca a feminização do comportamento sexual de crocodilos. Tanto o governo do Canadá como a ANVISA, proibiram o uso da mamadeira de plástico, tendo em vista o costume das mães de aquecerem o leite na mamadeira. O fato é que, se o governo vai usar cisternas de plástico no semi-árido, que ele comprove que o plástico usado nas mesmas, não produz Bisferol A, tendo em vista as condições em que elas serão instaladas.
Na verdade, isso não é outra coisa senão o retorno da “indústria da seca”, agora batizada de “indústria do PVC”.
Enquanto isso, o governo do Estado do Ceará, concede ao 8º homem mais rico do mundo (Eike Batista), um desconto de 50% por 20 anos, a partir de 2012, na tarifa de abastecimento de água bruta para suas duas termelétricas a serem instaladas na região do porto do Pecém. Ora, um Estado que concentra 10% de toda a pobreza nacional, que ainda precisa fornecer água para o interior mediante o uso de carros pipa, não poderia nunca deixar de arrecadar pelo menos R$ 4,8 milhões por ano, concedendo esse desconto.
As Cisternas de PVC inauguram mais uma corrida de empresas pelo lucro. O Kit Cisternas “Água de Chuva” assim anunciado pela empresa Acqualimp, é oferecido a partir de R$3.650,00, para cisternas com capacidade de 5 a 10 mil litros. A Sansuy SA indústria de plásticos, propaga descaradamente que vai surfar na onda das instituições governamentais e não-governamentais, construindo uma cisterna para 8 mil litros, em parceria com a Braskem (multinacional do ramo da transgenia e de resinas termoplásticas – está produzindo o chamado “plástico verde”, não biodegradável, em parceria com a Odebrecht, cuja matéria-prima é a cana de açúcar). Seu Kit tem custo estimado de R$700,00.
Depois de 11 anos desenvolvendo o Programa 1 milhão de Cisternas o Esplar, com uma equipe de apenas 5 pessoas, já contribuiu para que muitas famílias da agricultura familiar tenham a percepção da água como um direito, viabilizando um total de 8.473 cisternas nos mais longínquos recantos. Será que a empresa que fabrica PVC vai ter “esse trabalho”? Será que vai ser dispendido recurso para a organização comunitária e o estabelecimento de relações de solidariedade? É óbvio que não. Somente com financiamento do MDS desde 2001, já foram construídas 400 mil cisternas no semi-árido. A ASA com outras parceiras, já construiu mais de 500 mil. Segundo essa Articulação, a cada mil cisternas construídas são injetados R$20 milhões no mercado local. Ao contrário, com as cisternas PVC, os recursos serão injetados diretamente nos bolsos dos empresários e, provavelmente, parte desse recurso será distribuído amigavelmente entre os políticos.
O “capitalismo mais humano”, nas palavras de um diretor do FMI, não chega a tanto. Mas certamente, muito dinheiro vai rolar pelos canos de PVC para aqueles que historicamente têm se locupletado à custa dos sentimentos e das crenças da população pobre.
É preciso ter claro que esse fato não pode ser visto de modo isolado. Ele é parte de uma estratégia de mercado que vem se fortalecendo a partir do governo Lula, que é de apropriação dos bens da natureza, transformando-os em commodities. Com o aval protetivo da Presidenta Dilma em termos de legislação, segurança jurídica e financiamento, empresas nacionais e internacionais vêm tomando para si, todas as experiências exitosas desenvolvidas há décadas por agricultores e agricultoras familiares, povos indígenas, quilombolas e quebradeiras de coco. Cobrindo-as com um véu manchado com o sangue das lutas de resistência, essas empresas as apresentam outra vez à sociedade, como frutos da responsabilidade social empresarial, do mercado verde, do “amigo da natureza” e da segurança hídrica.
Aonde foi parar a farsa midiática da transposição do rio São Francisco, que iria levar água para 12 milhões de nordestinos? “Não se fala mais nisso” porque o objetivo “humanista” do governo foi cumprido ou porque desvelar o que acontece realmente com a transposição nos Estados deixaria o governo mais uma vez em maus lençóis diante dos organismos internacionais de direitos humanos.
Ao fim e ao cabo, mais uma política literalmente SONRISAL.
Até quando?
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*Advogada.
Enviada por Cristiane Faustino.