Lançamento da Livraria Cultura – O lento e complexo processo de formação de instituições e de consolidação da identidade nacional ocorrido no Brasil ao longo do século xix privilegiou o tratamento dos indígenas que antecederam à colonização portuguesa como modelos éticos e estéticos de uma idade do ouro varrida pelo progresso. O destino deles, a um só tempo personagens trágicas e heróis românticos, seria tão somente o inexorável desaparecimento. Na região Nordeste do país, sobretudo de 1850 a 1870, os governos provinciais do Segundo Reinado, auxiliados pelo discurso propagado por diversos intelectuais, atestaram reiteradas vezes que, em lugar de índios propriamente ditos, haveria apenas remanescentes, cujas manifestações culturais poderiam ser estudadas como folclore. Índios bravos, qualificativo a justificar a posição de governo, seriam encontrados apenas no Amazonas e nas regiões mais remotas do território brasileiro, onde a marcha da colonização apenas se iniciava.
Tal entendimento histórico e antropológico, todavia, não só é incorreto, como tem ajudado a perpetuar argumentações infundadas, provenientes de concepções retrógradas e já desgastadas pelos sinais do tempo. A forma superficial e preconceituosa pela qual a existência dos indígenas no Nordeste ainda é abordada em prestigiados circuitos de produção de conhecimento e informação continua a disseminar, seja nos locais de formação e estudo, seja em instâncias legislativas e na opinião pública, estereótipos que dificultam e, muitas vezes, impedem o reconhecimento de direitos a esse segmento da população brasileira.
Este livro, portanto, decorre da preocupação em delimitar um amplo painel compreensivo da trajetória histórica dos indígenas do Nordeste, com base em extensas pesquisas realizadas por pesquisadores de reconhecida competência que compartilham, implicitamente, uma perspectiva crítica a essa forma predominante de entendê-los. O contexto mais direto a que se reporta é o da exposição Os primeiros brasileiros, inaugurada no Forte das Cinco Pontas, no Recife, em dezembro de 2006, por iniciativa do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e da Fundação Joaquim Nabuco. Reúne-se aqui parte do vastíssimo material que serviu de solo para as interpretações e concepções apresentadas na exposição, e que trazem à luz inúmeras evidências com que se pode refutar o suposto desaparecimento de tais indígenas. Entender os processos de submissão concretamente utilizados contra eles, o engendramento e a manutenção de representações sobre a sua inexistência, e sobretudo os caminhos pelos quais conseguiram escapar de sua condição de invisibilidade ou de caboclos, transformando-se “outra vez” em índios, é tarefa de que não se pode abrir mão na busca de uma sociedade brasileira mais democrática e, consequentemente, menos desigual.
Neste livro, o uso do termo “Nordeste” se refere não a uma noção de região no sentido geográfico, e sim a uma unidade virtual do ponto de vista da ação política dos indígenas. Embora as articulações mais comuns ocorram no âmbito de seus estados e envolvam políticas assistenciais (educação, saúde etc.), há importantes demandas e negociações que, de fato, se dão em Brasília e com organismos federais, passando pelo apoio e o assessoramento da organização indígena regional (apoinme). Além disso, esse uso decorre de outra razão, de natureza histórica: os povos indígenas aqui considerados foram aqueles que sofreram o primeiro impacto da colonização, de início na faixa atlântica (século xvi) e logo a seguir nos sertões interiores (xvii e xviii). Contrapunham-se ao açúcar e às tropas de gado, dois sistemas econômicos que funcionaram como fatores de desestruturação e geraram dependências, razão pela qual os modos futuros de organização, suas tradições específicas e seu modo de se autorrepresentarem não poderiam deixar de ser afetados.
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