Realizada em 2004, a reforma do Judiciário ainda não é suficiente, e esse poder continua fechado e “avesso a investigações e distante dos anseios e demandas populares”, analisa José Carlos Moreira da Silva Filho
Por: Márcia Junges
Para José Carlos, “de certo modo, nosso Judiciário ainda é aquele mesmo que compactuou com as leis draconianas e com os crimes da ditadura civil-militar, estimulando a tortura e o terrorismo de Estado”. Contudo, há muitos magistrados valorosos em nosso país, assegura, “verdadeiros defensores dos direitos humanos que vêm se esmerando para superar a herança autoritária e elitista do poder que representam”.
José Carlos Moreira da Silva Filho é bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – mestrado e doutorado – e graduação em Direito), conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – Idejust (http://idejust.wordpress.com). Confira a entrevista.
IHU On-Line – A justiça é a mesma para todos? Por quê?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Vivemos em uma sociedade desigual e um dos setores nos quais a desigualdade se mostra de forma mais gritante é justamente o do acesso à justiça. Isso se expressa de várias maneiras: falta de defensores públicos por todo o Brasil, sistema penitenciário precário e violento, excesso de cerimônias e solenidades que intimidam os mais humildes, tratamento mais benigno aos que têm condições de pagar bons advogados, simplificação excessiva dos juizados de pequenas causas, mentalidade elitista e conservadora de boa parte dos magistrados. Aliando-se a tudo isso está a tristonha e persistente atualidade da máxima: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Basta que se veja, por exemplo, o que acontece, ou melhor, o que não acontece com os policiais militares que cometem crimes bárbaros no exercício da sua função, ou com os assassinos de militantes de direitos humanos, ou ainda com os criminosos do colarinho branco. Veja-se também o que não aconteceu com os criminosos que implementaram e executaram a ditadura brasileira e promoveram políticas públicas de torturas e violações de direitos humanos. Por outro lado, os pequenos traficantes, ladrões, atravessadores e homicidas que vivem nas periferias, e que são em sua maioria pessoas com pouco poder e com parcos recursos, superlotam os presídios e masmorras brasileiras, alimentando a fornalha das organizações criminosas e da promiscuidade policial. Talvez um dos sintomas mais evidentes da desigualdade da justiça no Brasil seja a existência de uma justiça militar, destinada até hoje a apurar fatos e crimes que ocorrem na esfera civil, desde que praticados por algum militar ou policial militar, e que podem até mesmo julgar civis, como ocorreu copiosamente durante o período ditatorial.
IHU On-Line – O Judiciário é um poder autônomo que está acima dos demais em nosso país? Por quê?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Na verdade, a tradição política brasileira é de concentrar os poderes do Estado nas mãos do Executivo. Há uma obra clássica que ilustra isso, escrita por Ernest Hambloch e que se chama Sua Majestade, o Presidente do Brasil . A experiência brasileira de governos democráticos e próximos às demandas populares é ainda ínfima. Mesmo os governos de Lula e agora o da Dilma experimentam profundas contradições, reeditando em muitas situações o famoso pacto populista brasileiro de acalmar as massas fazendo-lhes algumas concessões toleráveis pelas elites e, ao mesmo tempo, garantindo a estas suas vantagens habituais. Nesse quadro, a atitude do Judiciário historicamente foi a de acompanhar a toada dos governos e funcionar como um eficiente fiador das elites. É interessante consultar nesse particular a obra de José Murilo de Carvalho sobre a constituição social do judiciário brasileiro no período imperial (A construção da ordem, a elite política imperial). A grande novidade que temos agora, e que já foi alardeada aos quatro ventos por inúmeros juristas, é que a Constituição de 1988 estabeleceu uma dinâmica e um equilíbrio diferente entre os três poderes, nascendo deste novo arranjo institucional, reflexo do efetivo esforço de democratização que representou a Constituinte, um espaço maior tanto para o Legislativo como para o Judiciário, que passa a ser provocado com maior constância para resolver os muitos impasses que vêm se avolumando tanto entre os outros dois poderes como entre estes e os diversos grupos organizados da sociedade civil na sua busca pela concretização de direitos.
Começamos a ter verdadeiramente uma jurisdição constitucional. Até bem pouco tempo atrás a Constituição era vista como uma perfumaria jurídica, uma espécie de Chefe de Estado normativo, reservando à lei ordinária, especialmente aos Códigos, o papel de Chefe de Governo normativo. É preciso reconhecer que a atuação do Supremo Tribunal Federal e o seu crescente protagonismo tem contribuído substancialmente para alçar a interpretação da Constituição a um posto mais meritório na ordem jurídica brasileira. Mas, por outro lado, esta atuação também tem trazido sérios problemas democráticos, que para serem entendidos necessitam ancorar-se na própria história das instituições brasileiras, e que procurarei abordar mais adiante.
IHU On-Line – Por que razão surgiram tantas denúncias nos últimos anos contra o Judiciário?
José Carlos Moreira da Silva Filho – O Judiciário é, sem dúvida, o poder menos transparente da República. E é, ao mesmo tempo, avesso a investigações de toda ordem no seu interior, ainda mais quando promovidas por outros atores e órgãos que não sejam oriundos de si mesmo. Isso impediu historicamente que as inúmeras histórias de corrupção e favorecimento fossem conhecidas pelo grande público, passando-se uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral. Contudo, o fato de vivermos uma democracia formal e uma relativa liberdade de imprensa (digo relativa, pois os donos da imprensa brasileira, em sua grande maioria, buscam impor versões unilaterais travestidas de coberturas imparciais e plurais, e sem falar na péssima qualidade do jornalismo no Brasil) contribui para que muitos episódios venham à tona, o que antes não era possível. A própria atuação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ contribuiu para trazer alguns fatos à tona e promover algumas importantes investigações, mas ainda é muito pouco, sem falar que o controle continua sendo interno, pois quem preside o CNJ e o compõe em parte expressiva das cadeiras é o próprio Judiciário. Basta ver a gritaria que se está fazendo contra a juíza Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, que vem botando o dedo nesta ferida.
IHU On-Line – Quais são os impasses e limites do Judiciário no cumprimento dos direitos humanos no Brasil?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Antes de tudo, gostaria de dizer, até para que não me considerem um inimigo do Judiciário ou algo assim, que felizmente temos no Brasil muitos juízes e juízas valorosos que são verdadeiros defensores dos direitos humanos e que vêm se esmerando para superar a herança autoritária e elitista do poder que representam. Temos também um histórico de importantes movimentos internos de questionamento do próprio papel do poder Judiciário. Eu destacaria especialmente o movimento de juízes gaúchos que ficou conhecido no resto do país como o movimento do Direito Alternativo, com a participação de importantes magistrados como os hoje desembargadores Amilton Bueno de Carvalho e Rui Portanova. Vejo neste movimento o início decisivo de uma jurisdição constitucional no Brasil pós-ditadura, visto que esses juízes defendiam a necessidade de valorização dos princípios no processo de interpretação do Direito, ainda excessivamente apegada ao exegetismo mais rasteiro e alheio à interpretação constitucional. Também destaco o Movimento Juízes pela Democracia, sediado em São Paulo e que teve atuação tão destacada na já comentada ADPF 153 , na implementação da legislação penal sobre a tortura para agentes públicos de segurança e na efetivação do direito de voto aos presos brasileiros, entre outras realizações, conduzidas, em muitos casos, pela juíza Kenarik Felippe.
Apesar dessas importantes ressalvas percebo que o Judiciário brasileiro pode, hoje, ser considerado um dos principais obstáculos para o cumprimento dos direitos humanos no Brasil. De certo modo, nosso judiciário ainda é aquele mesmo que compactuou com as leis draconianas e com os crimes da ditadura civil-militar, estimulando a tortura e o terrorismo de Estado. Salvo honrosas exceções, dentre as quais destaco Evandro Lins e Silva , Victor Nunes Leal e Hermes Lima , ministros do Supremo cassados pela ditadura, o Judiciário brasileiro embarcou completamente no terrorismo de Estado aqui instalado e judicializou a repressão política. A reforma do judiciário feita em 2004 ainda é muito pouco. Não se fez, assim como não se fez em muitas outras instâncias institucionais do Brasil, o necessário expurgo. Todos os militares, policiais, juízes, políticos e funcionários públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade e apoiaram a ditadura simplesmente continuaram nos seus cargos e muitos estão aí até hoje. As mudanças que o judiciário fez em sua estrutura são, para mim, meramente cosméticas. Continua sendo um poder elitizado, fechado, não democrático, avesso a investigações e distante dos anseios e demandas populares, muito mais propenso a aplicar conceitos abstratos e técnicos (que escondem rótulos e estigmatizações) do que a buscar conhecer de perto o caso concreto e buscar, com os instrumentos colocados à disposição pelo Direito, resolvê-lo e fazer justiça.
IHU On-Line – Quais são as relações que existem entre o Judiciário e o mundo da política?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Muitas. É ilusório e perigoso achar que por trás das decisões judiciais não existam interesses políticos, assim como é falacioso o discurso de que existam espaços não políticos ou não ideológicos de governo ou de participação. A afirmação mais carregada de ideologia é justamente aquela que se diz neutra. As fundamentações e raciocínios jurídicos possuem uma linguagem e uma lógica que lhes são próprias, mas isso não quer dizer que por trás delas não existam posicionamentos políticos. No Brasil temos um aspecto muito curioso nessa relação entre judiciário e política que é o que a professora Deisy Ventura batizou de “positivimo a la carte”, isto é, quando convém são invocados os raciocínios jurídicos mais rigorosos e aplicados os legalismos mais intransigentes, mas quando isso não convém encontram-se razões misteriosas ou quase esotéricas para praticamente afastar os aspectos mais técnicos. Um grande exemplo do que digo foi a decisão do STF na ADPF 153, ação que questionou a interpretação da Lei de Anistia de 1979. A decisão ignorou toda a legislação internacional ratificada e incorporada pelo Brasil, aplicou de modo inflexível e estreito, em uma visão totalmente calcada no direito penal interno (se é que se pode chamar de direito a legislação de segurança nacional e os atos institucionais da ditadura militar), o princípio da anterioridade da lei penal. Mas, por outro lado, deixou completamente de lado esta mesma dogmática penal ao tratar do tema da conexão criminal, não contemplada em nenhum aspecto pela ideia de que os atos considerados como crimes políticos pela ditadura poderiam ser conexos aos crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes públicos contra os que resistiram à ditadura.
Judicialização da política
Ainda no tema do Judiciário e da política está o problema da judicialização da política. Acima eu disse que a atuação mais marcante do STF está produzindo o desenvolvimento de uma jurisdição constitucional no Brasil, mas por outro lado também está minando o espaço decisório e participativo da política, incluindo-se aí principalmente o espaço das demandas de grupos civis organizados, avocando para si, e também sendo provocado para isto, a última palavra nas mais variadas temáticas. É como se estivéssemos dizendo que os 11 ministros e ministras do STF são a última instância no Brasil para que decidamos sobre temas como a efetivação dos direitos humanos. Nesse momento, muitas perguntas devem ser feitas: Quem são essas pessoas para assumirem tamanha incumbência? Qual a sua história de compromisso com as demandas sociais? Como são escolhidas? O que pensam? Qual o nível de conhecimento da realidade política, social, cultural e econômica do Brasil e do mundo? Por que “não podem” ser questionados em suas decisões? Qual é o controle democrático exercido sobre este órgão? Interessa à democratização da sociedade que suas questões centrais sejam terceirizadas para um grupo de notáveis, desconsiderando-se a participação dos setores envolvidos e da sociedade organizada?
Acredito que ainda temos muito que caminhar na direção de uma democratização do poder Judiciário e de um amadurecimento político no Brasil. É possível também dizer que o protagonismo judicial existe na medida em que se abre um vácuo compreensível mas lamentável nas lideranças políticas e em suas orientações de luta, que em muitos casos acabam também contribuindo para este papel desmobilizador exercido pelo Judiciário, ao nele apostarem todas as fichas e ao não realizarem ampla e intensamente a crítica à sua atuação. Dentro dos próprios cursos de Direito no Brasil falta uma postura menos subserviente, quase idólatra, e mais crítica diante da atuação dos Tribunais Superiores. Como diz o professor Lênio Streck , precisamos fazer como Julia Roberts no filme O dossiê pelicano e ter coragem de dizer: “A Suprema Corte errou”.
IHU On-Line – De que forma a justiça lida com a “naturalização/classificação” das populações e indivíduos perigosos?
José Carlos Moreira da Silva Filho – É realmente impressionante a facilidade com a qual muitos juízes classificam réus como “elementos de alta periculosidade”, sem que se agregue a tais constatações nenhum estudo ou análise mais detalhada, movidos por puro preconceito e insensibilidade. Isso é recorrente na justiça penal brasileira. O filme Juízo, dirigido por Maria Ramos e lançado em 2007, é um retrato contundente desse quadro, e olha que ele se volta aos jovens infratores, crianças e adolescentes… A verdade é que não é só no Judiciário que se rotulam certos grupos e perfis como perigosos. Essa é uma característica presente na própria fundação dos Estados modernos, reforçada pelos nacionalismos, elevada à máxima potência pelos regimes totalitários do século XX, intensamente destacada durante a guerra fria ao encontrar na figura do subversivo seu mais visado representante, e passando hoje pelas declarações e deflagrações das guerras às drogas e ao terror. Trata-se de um olhar desumanizante, pois se esquiva da pluralidade e da complexidade inerentes à condição humana. Ao se estigmatizar todos os que se enquadrem dentro de um determinado grupo, ignorando-se todas as suas outras diversas características, qualificações e papéis, reduz-se a humanidade a algo que não lhe faz jus, promove-se a substituição do humano pelo desumano, justificam-se e ocultam-se as mais bárbaras violências, tudo em nome do combate ao inimigo.
O indivíduo perigoso é considerado um monstro, um inimigo, uma não pessoa, caindo nas cada vez mais amplas malhas das exceções. Tal naturalização é cada vez mais acompanhada pela sua legalização e “legitimação” por via das próprias democracias formais, não se fazendo mais necessária a proliferação de ditaduras. Creio que hoje resgata-se plenamente uma contradição de raiz presente no pensamento liberal: de um lado, defendem-se as liberdades e os direitos humanos; de outro, eles são violados para que sejam defendidos. A lei protege as pessoas do arbítrio, mas ao mesmo tempo o autoriza nas mais diferentes situações. É como Agamben plasticamente definiu: inclui-se excluindo-se. Uma vez apoiados pelo escudo legal, os perpetradores dessas violências se invisibilizam enquanto tais e atuam como braços impessoais das instituições. É um universo tortuoso e contraditório muito bem retratado pelas obras de Kafka .
IHU On-Line – Como podemos compreender o terrorismo de Estado no Brasil à luz do direito e da justiça?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Recentemente participei de um fórum internacional de direito penal e criminologia na cidade de Beijing, na China. Foi um encontro que reuniu pesquisadores do mundo todo para debater o tema do terrorismo. Apresentei um trabalho no qual defendi a ideia de que o pior terrorismo que se pode identificar é o terrorismo de Estado, e que os grupos sociais organizados que a ele se opõem não podem em nenhuma hipótese serem chamados de terroristas, visto que estão a exercer um direito que não é novo e está presente nas mais diversas tradições jurídicas: o direito de resistência. No caso do Brasil isso foi muito nítido. Antes do golpe civil-militar de 1964, o maior partido de esquerda do Brasil era o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, comandado por Luís Carlos Prestes. Era o único partido de esquerda que naquele contexto possuía uma efetiva e ampla penetração nas massas. Pois bem, a posição do PCB sobre a possível passagem do país ao comunismo era muito clara. Não cabia fazer uma revolução pelas armas, a estratégia adotada era primeiro a de apoiar a chamada burguesia nacionalista e anti-imperialista, promovendo importantes mudanças e estruturações econômicas que, no futuro, poderiam trazer as condições para o socialismo. Tal posição, inclusive, causou algumas cisões no interior do Partidão, sendo a criação do PCdoB a mais notória delas.
Naquele momento histórico, não havia grupos armados na esquerda, muito menos guerrilhas em movimento. Como eu sempre digo, o único grupo armado que queria tomar o poder pelas armas no Brasil eram os militares. E o fizeram depondo um presidente eleito democraticamente pelo povo, rasgando a Constituição de 1946 e desrespeitando de modo maciço e ordenado inúmeros direitos fundamentais. Hoje temos em nossa Constituição, no Art. 5º, XLIV, uma norma que explicita o direito de resistência ao criminalizar o golpe de Estado. Ela diz que é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Contudo, mesmo que não houvesse tal previsão constitucional, entendo que estaria assegurado o patamar constitucional deste direito, visto que é um direito secundário, existente em função da necessária defesa da ordem democrática e constitucional estabelecida e dos direitos primários que ela assegura. Resistir à usurpação ilegítima do poder não é crime político, muito menos terrorismo. Como bem esclareceu Heleno Cláudio Fragoso em seu livro sobre o assunto (Terrorismo e criminalidade política), para haver um crime político pressupõe-se que o Estado seja democrático, pois atentar contra um Estado autoritário e um governo usurpador não pode ser considerado crime, mas sim o exercício do direito de resistência, e poderíamos até dizer: um verdadeiro dever de cidadania. Dever que no Brasil foi cumprido por corajosos e desprendidos militantes políticos que deram a sua vida para que hoje pudéssemos estar livres daquele regime espúrio, mas que infelizmente até hoje não são reconhecidos por isso. Tomara que a publicização de uma Comissão da Verdade possa reverter esse quadro.
Crime incestuoso
No plano internacional, o terrorismo de Estado já está suficientemente detectado na figura dos crimes contra a humanidade e do genocídio, pois ambos envolvem as práticas das mais variadas ações criminosas, como tortura, desaparecimentos forçados, assassinatos, invasões de domicílio, atentados à bomba, entre outros. Tais ações por si só não seriam suficientes para caracterizar o terrorismo de Estado; é preciso ainda que elas sejam praticadas no bojo de uma política sistemática de perseguição e eliminação de parte selecionada da população, sendo esta seleção ditada pelos mais variados estigmas, como o de ser de determinada etnia, ter determinado credo religioso, ter determinada convicção política, ou simplesmente encaixar-se nos perfis estabelecidos para ser considerado um terrorista ou um traficante de drogas.
O terrorismo praticado pelo Estado é o pior de todos, pois dele não se tem defesa. Contra qualquer grupo criminoso dentro do território nacional é possível, em tese, contar com a proteção e o auxílio das forças policiais, mas o que fazer quando o crime é praticado pelo próprio Estado, ou quando o violador é o próprio agente de segurança apoiado e legitimado pela política estatal? É um crime praticamente incestuoso.
Ainda sobre terrorismo de Estado, não podemos deixar de identificar mais uma vez as famosas inversões ocidentais, já comentadas acima. Ao se declarar guerra contra o terror, os Estados incluem na definição de terrorismo (sobre a qual até hoje não existe um consenso internacional) as mais variadas situações, desde que elas representem alguma ofensa aos seus interesses. Uma vez imposto o rótulo desumanizador, o Estado passa a praticar o terrorismo para combater o terrorismo. Chegamos hoje em um estágio muito perigoso, no qual há a possibilidade de uma ampla legalização internacional de um direito penal de exceção, que minimiza garantias, criminaliza atos preparatórios e convicções pessoais, elimina o direito à defesa, permite a detenção sem julgamento e por tempo indeterminado e legaliza a tortura. O que vem acontecendo nos Estados Unidos após a queda das Torres Gêmeas nos mostra isso com nitidez.
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