Conglomerado chinês na África não cumpre promessas de investimento em infraestrutura e se envolve em negociações obscuras com governos repressivos. Difícil é descobrir onde começa a empresa privada e onde termina o Estado chinês
Por Beth Morrissey, Ojha Himanshu, Rena Laura Murray e Patrick Martin-Menard, para o Center for Public Integrity*
Durante séculos, investidores estrangeiros devassaram a África à procura dos lucros oferecidos pelas abundantes reservas de petróleo e de minerais preciosos. Muitos deixaram rastros de corrupção e não cumpriram promessas de compartilhar a riqueza com os africanos.
É por causa deste passado que um conglomerado tem chamando a atenção da opinião pública do continente, ocupando as manchetes de jornais em diferentes países da África.
A companhia China-Sonangol é parte de uma rede global de empresas que realiza desde extração de petróleo em Angola, exploração de do ouro no Zimbábue, construção de condomínios de luxo em Singapura e empreendimentos imobiliários em Manhattan.
Os altos executivos deste conglomerado reúnem-se quando querem com chefes de Estado africano, e já são vistos como ameaça pelas tradicionais petroleiras multinacionais e por gigantes da mineração que atuam no continente.
É por isso mesmo que os empreendimentos da China Sonangol têm atraído curiosidade, até mesmo do Departamento de Estado dos EUA, como mostraram documentos do WikiLeaks.
A China Sonangol parece ser inovadora e bem relacionada. Mas a companhia está sob investigação devido às promessas não cumpridas de realizar investimentos públicos e pelo envolvimento em negócios obscuros com líderes africanos como Robert Mugabe, no Zimbábue, e Eduardo dos Santos, em Angola.
Há também questões sobre a atuação da companhia na Guiné: uma investigação da ONU ligou a China Sonangol ao massacre de mais de 150 manifestantes em 2009, durante o regime militar encabeçado pelo capitão Moussa Dadis Camara.
A nova cara da disputa por recursos naturais
Repórteres do Stabile Center for Investigative, na Universidade de Columbia, passaram 11 meses investigando a complexa rede de holdings e de empreendimentos conectados à China Sonangol, além dos executivos chineses e de Hong Kong que estão por trás dela.
Descobriram uma rede transnacional que une mais de 60 empresas, incorporadas em Singapura, Hong Kong e em paraísos fiscais como Bermuda, Ilhas Virgens Britânicas e as Ilhas Cayman.
“Esta é a nova cara da competição por recursos naturais”, disse Judith Poultney, pesquisadora da Global Witness, organização internacional que monitora a corrupção. A ONG está de olho na China Sonangol e em outras companhias de extração mineral na África.
“As elites africanas estão usando estruturas complexas offshore para garantir uma fatia nos negócios junto com empresários asiáticos”, diz Poultney. “Como na antiga disputa pela África na época colonial, quem sai perdendo é o cidadão comum africano”.
Conheça a China Sonangol
A China Sonangol parece ser a face pública de um gigantesco empreendimento privado.
Registrada em Hong Kong como Fundo Internacional da China (FIC), saiu da obscuridade para se tornar líder no mercado de extração dos recursos minerais africanos, prometendo mais de 18 bilhões de dólares de investimentos em vários países do continente nos últimos seis anos.
Através da China Sonangol e de outras empresas afiliadas, o Fundo Internacional da China adquiriu ações de uma dúzia de campos de petróleo, além de uma mina de diamantes em Angola. E detém uma parte substancial de outras empresas com concessão para explorar o minério de ferro e os depósitos de bauxita na República da Guiné.
Em poucos anos, o FIC transformou sua atuação em Angola em um novo modelo de negócios para todo o continente africano. O ponto de partida são as parcerias com as autoridades angolanas e o uso dos bancos estatais e de empresas chinesas.
O FIC chinês convenceu governos de outras nações a dar como garantia seus recursos naturais em troca de promessas de investimento em infraestrutura. Assim, o financiamento de estradas e ferrovias viria em troca do acesso às minas e aos campos de petróleo em regiões politicamente instáveis e minados pela corrupção – como costumam ser os países africanos ricos em recursos naturais.
Foi assim que o Fundo e as suas empresas afiliadas conseguiram os direitos de exploração dos mais ricos recursos minerais da África.
Promessa feita, promessa descumprida
Só que, em muitos casos, a infraestrutura prometida jamais se concretizou: os lucros dessas transações foram investidos em locais fora do alcance da lei africana e do escrutínio dos seus cidadãos.
A primeira incursão do Fundo Internacional da China na África foi em 2005. A base para o acordo entre companhia e governo foi um empréstimo no valor de 2,9 bilhões de dólares que seria usado para construir infraestrutura em Angola, recém saída de 30 anos de guerra civil.
A empresa tinha apenas um ano de idade e nenhuma experiência em obras de infraestrutura mas se comprometeu a realizar três projetos ferroviários, construir um novo aeroporto internacional e concluir mais de 200.000 unidades de moradia social.
Logo surgiram problemas. Em 27 de junho de 2007, a embaixadora dos EUA em Angola, Cynthia Efird, informou a Washington que o FIC teria cometido “erros de cálculo dos custos operacionais” e estaria “falida”, segundo um documento diplomático do WikiLeaks.
Efird descreveu que o FIC havia subcontratado uma estatal chinesa para reparar a estrada de ferro Luanda-Malange, mas os trabalhadores pararam de trabalhar no mesmo ano por falta de pagamento.
Um ano mais tarde, o embaixador Dan Mozena, que sucedeu Efird, escreveu que “as obras das três ferrovias estavam paradas [em 2007] e o projeto do aeroporto internacional não chegou a sair do papel”.
Na mesma comunicação, datada de 13 de julho de 2008, o embaixador informou que as obras ferroviárias foram retomadas depois, mas sem o financiamento do FIC, e sim de outra fonte, também chinesa.
O aeroporto, que estava projetado para ser o maior da África, permanece inacabado. O repórter angolano Rafael Marques de Morais que a obra não foi muito além dos alicerces.
Estrutura corporativa complexa
O FIC e a empresa China Sonangol fazem parte de um conglomerado que incorporou empresas de pelo menos sete países.
No topo desta rede está uma empresa de Hong Kong, a New Bright International, formada em julho de 2003.
Três meses depois, a empresa Beiya International Development foi formada: 70% dela pretence à New Bright e 30% ao grupo Beiya Industrial Group, uma empresa de construção de ferrovias com base na cidade de Harbin, na China. A Beiya, depois chamada de Dayuan International Development Corporation, detém 99% do FIC.
Quem procurar saber quem é a pessoa que representa o FIC vai deparar com a chinesa Lo Fong Hung, que dirige oficialmente mais de 60 empresas ligadas ao FIC no mundo todo.
Antes de entrar no Fundo, ela aparentemente tinha pouca experiência no mundo empresarial.
Em Hong Kong, costumava dizer aos amigos que já fora intérprete de Deng Xiaoping, o líder do Partido Comunista chinês que abriu a economia do país para os mercados.
Em 2004, ela apareceu em um programa de TV ao lado do presidente venezuelano Hugo Chavez, que se referiu a ela como filha de um general chinês.
Seu marido, Wang Xiangfei, já foi diretor da China Everbright Holdings Company Limited, parte de um conglomerado de investimento estatal chinês, o China Everbright Group.
O representante do FIC na África, Sam Pa, já foi diretor de uma empresa de Hong Kong que comercializava equipamentos com a China.
No final dos anos 90 e começo dos anos 2000, ele enfrentou diversas batalhas legais por causa de dívidas.
Sua esposa, Veronica Fung, está listada como dona de 70% da New Bright International, que por sua vez detém a maioria das ações do FIC. Além disso, ela dirige 23 outras empresas afiliadas ao FIC.
Fachada para o governo chinês?
As diversas conexões dos executivos do FIC e as constantes reuniões de alto escalão com governantes africanos sugerem que a empresa seria uma testa-de-ferro para o governo chinês.
Mas em 27 de janeiro de 2009, o embaixador americano em Angola afirmou que o enviado chinês para o país, Bolum Zhang, teria dito que o Fundo era uma companhia “privada”.
De acordo com o documento diplomático do WikiLeaks, Zhang também afirmara que o FIC “tinha problemas de gestão e pouca liderança em Angola, apesar da sua proximidade com a presidência angolana”.
Em outubro de 2009, o ministro chinês de Relações Exteriores declarou em um comunicado sobre o FIC que “o governo chinês não tem nada a ver com os seus negócios e não tem conhecimento de questões específicas”.
Procurado pela reportagem, o diretor do Fundo, Wang Xiangfei, não quis responder perguntas específicas sobre a empresa. “Outros países e empresas competidoras estão falando bobagens sobre o FIC porque Angola optou por negociar com a China”.
A reportagem procurou em diversas ocasiões diretores do Fundo e seus advogados para entrevistas, sem sucesso.
Mas descobriu coisas estranhas: de acordo com documentos judiciais, o representante da empresa na África, Sam Pa, usou diversos nomes diferentes como Sam King e Ghiu Ka Leung.
A conexão em Angola
A companhia China Sonangol foi formada em 2004 em Hong Kong: 70% pertencia à empresa-mãe (o FIC) e 30% à Sonangol. Entre seus diretores estão Lo Fong Hung, Veronica Fung e o CEO da Sonangol, Manuel Vicente.
Entre 2005 e 2008, a China Sonangol vendeu pelo menos 15 milhões de barris de petróleo por ano para uma subsidiária da petroleira estatal chinesa, Sinopec, de acordo com documentos de Hong Kong.
Mas a China Sonangol teria “errado” ao calcular o preço do petróleo e perdido 20 dólares por barril com o negócio, segundo um documentos diplomático do WikiLeals enviado em 2007 pelo embaixador americano em Angola, Efird.
Mas obteve outro tipo de benefício: documentos imobiliários em Hong Kong relativos à China Sonangol mostram que esse contrato foi usado como garantia para obter um empréstimo de 2 bilhões de dólares de um consórcio financeiro.
Os documentos também mostram que em 2006 a Banco da China fez empréstimos para o FIC e outra empresa afiliada, cuja garantia foram os mesmos contratos de petróleo da China Sonangol.
Além disso, uma hipoteca de 2006 registrada em Hong Kong pela China Sonangol descreve a seguinte negociação: a Sonangol Sinopec International (SSI), uma joint venture com uma subsidiária de uma petroleira estatal chinês, recebeu em 2004 a concessão para a exploração de um campo de petróleo na costa angolana que antes pertencia à americana Shell.
A SSI ficou famosa dois anos atrás, quando deu um lance recorde num leilão por dois poços de petróleo em Angola.
De acordo com a revista Businessweek, a SSI ofereceu um lance de 2,2 bilhões de dólares, superando a Exxonmobile e a BP por centenas de milhões de dólares.
Um mapa feito em junho de 2011 sobre as reservas de petróleo mostram que, juntas, a SSI e a China Sonangol compraram os direitos de explorar oito campos em Angola.
Segundo a Economist, apenas em março, a China Sonangol comprou entre 10% e 15% das ações em quatro concessões diferentes para exploração de petróleo.
Expandindo na África – e apoiando regimes violentos
Mas a conexão angolana foi só a porta de entrada – facilitando a subsequente inserção do FIC na República da Guiné e depois em Madagascar e no Zimbábue.
Em 2008, militares dissidentes derrubaram o governo da República da Guiné. O novo regime estava diplomaticamente isolado e desesperado por dinheiro.
Mahmoud Thiam, então ministro de Mineração, conta que o FIC abordou a junta militar em março de 2009 apresentando-se como um “amigo especial” que traria um apoio financeiro de suma importância.
Thiam estava cético. Mas, duas semanas depois, o FIC enviou o CEO da Sonangol, Manuel Vicente, à capital guineana, para conversar com ele.
Em 10 de outubro daquele ano, o ministro assinou um acordo formal – chamado por ele de “contrato do século” – que envolvia entre 7 a 9 bilhões de dólares, como revelou em uma coletiva de imprensa.
O contrato em si não especificava nenhuma quantia particular; mas concedia ao FIC direitos de exploração de minério de três grandes áreas em troca da realização de projetos de infraestrutura escolhidos pelo governo.
O potencial do negócio chegava a bilhões de dólares, já que a Guiné tem as maiores reservas de bauxita do mundo, além de reservas inexploradas de minério de ferro.
A cerimônia de assinatura aconteceu 12 dias depois de um dos eventos mais sangrentos na história da Guiné.
Em 28 de setembro de 2009, militares guineanos abriram fogo contra um protesto pacífico em protesto ao regime militar, deixando mais de 150 mortos e mais de 1200 feridos. Centenas de mulheres foram estupradas.
Em resposta, a comunidade internacional impôs sanções.
Segundo Thiam, o Fundo chinês era o único investidor estrangeiro disposto a negociar com o país.
“Havia algo seriamente errado”, disse Abdoulaye Yero Baldé, atual vice-presidente do Banco Central Guineano, então um político de oposição. “O governo tinha acabado de estuprar mulheres e matar civis inocentes, e todos investidores tinham ido embora. Mesmo assim este grupo ficou e assinou um novo contrato. É difícil saber que tipo de benefício essa negociação traria para a República da Guiné”.
Madagascar e Zimbábue
No final de 2010, Thiam voou diversas vezes para Madagascar com representantes do FIC para negociar com o governo que tomou o poder depois de um golpe em março de 2009.
Ele era amigo do ministro de Mineração de Madagascar e o FIC estava interessado no campo de petróleo de Tsimoro, com reservas estimadas de quase um bilhão de barris.
Em janeiro deste ano o ministro das Finanças anunciou a criação da Madagascar Development Corporation. Registrada em Cingapura, a joint venture entre o governo e o FIC foi criada para explorar de petróleo a minas.
Quando a China Sonangol e o FIC chegaram ao Zimbábue, seguiram o modelo de negócios oferecido em Angola e na República da Guiné: primeiro, prometeram ajuda na “renovação da infraestrutura do país”.
Como em qualquer lugar na África onde o Fundo e a China Sonangol firmaram negócios similares, poucos detalhes sobre o acordo do Zimbábue foram divulgados.
De acordo com uma estação de rádio estatal, o negócio supostamente incluiria investimentos em refinarias de ouro e platina, exploração de petróleo e gás, refinamento de combustíveis e financiamento de unidades habitacionais. É incerto o quanto foi prometido e o que o FIC terá de retorno.
Outra companhia, Sino Zim Development, tem concessões nos controversos campos Marange do Zimbábue, onde, de acordo com a Global Witness, “a elite política e militar do Zanu-PF tenta se apossar da riqueza do país em diamantes através de uma combinação de violência patrocinada pelo Estado e do uso legalmente questionável de joint ventures escusas”.
A Sino Zim Development foi registrada como uma joint venture em junho de 2009 em Cingapura.
Seus diretores incluem Lo Fong Hung – o mesmo do FIC – e o zimbabuano chamado Masima Ignatius Kamba.
Documentos de registro em Cingapura informam que a Sino-Zim é totalmente controlada por duas companhias registradas nas Ilhas Virgens Britânicas.
Outra companhia também chamada Sino-Zim Development foi registrada no Zimbábue. Lo e Veronica Fung estão entre seus diretores.
Um endereço em Wall Street
Recentemente apareceram fissuras na estrutura corporativa do FIC.
No ano passado um de seus diretores, Wu Yang, acionou diversas companhias exigindo acesso aos livros-caixa.
Em 2004, a Beiya Industrial Group de Harbin, na China, transferiu suas ações para Wu.
Em uma audiência em março, os advogados do FIC disseram que ele não poderia ver os livros-caixa porque ele era apenas um representante da companhia e não o dono real das ações.
Na República da Guiné, onde um novo governo eleito democraticamente está no poder há menos de um ano, o futuro do FIC parece incerto.
No mês passado, segundo a Reuters, o atual ministro de Minas teria dito que o contrato com o fundo seria revogado.
Por outro lado, em Angola, o presidente da China Sonangol, Manuel Vicente, é o nome mais forte para ser o próximo presidente.
No meio destas dúvidas, a China Sonangol alcançou o coração do mercado americano.
No final do século passado, o número 23 da rua Wall Street em Nova York era o endereço mais famoso do mundo das finanças nos Estados Unidos: ali ficava o quartel-general da primeira empresa bilionária do mundo, JP Morgan & Co.
Hoje, a China Sonangol está tentando transformar o prédio em um shopping luxuoso.
Através de uma companhia do estado do Delaware, CS Wall Street, a China Sonangol comprou o prédio em 2008.
O espaço comercial está sendo oferecido a empresas varejistas de elite.
Em fevereiro deste ano, prováveis compradores encontraram-se em coquetéis para conhecerem o prédio. Em julho, a Cushman & Wakefield Inc, uma empresa líder do ramo imobiliário, foi escolhida para procurar os novos inquilinos.
Mas três anos depois da China Sonangol comprar o imóvel, o prédio continua vazio.
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*Estudantes da Stabile Center for Investigative Reporting, da Escola de Pós-Graduação da Universidade de Columbia de Jornalismo
http://ponto.outraspalavras.net/2011/12/02/misteriosa-rede-empresarial-chinesa-avanca-sobre-recursos-naturais-africanos/