O jornal sem patrão contra a ditadura

Livro resgata história do jornal Movimento. Em entrevista, autor fala sobre o periódico que enfrentou os militares

 

Vinicius Mansur , de Brasília

Nascido em julho de 1975, após a saída em massa dos jornalistas do Opinião, o jornal Movimento foi um dos mais importantes instrumentos que escreveram a história da redemocratização brasileira até novembro de 1981. Fruto da organização coletiva daqueles que apostaram no jornalismo sem patrão e com programa político explícito, o jornal Movimento forjou, em meio à ditadura militar, o concreto exercício da democracia.

Esta história sai agora do mundo efêmero do jornalismo, dos registros dispersos e das conversas esporádicas para o registro denso e rigoroso do livroJornal Movimentouma reportagem de Carlos Azevedo*, com reportagens de Marina Amaral e Natália Viana. Em entrevista, Azevedo resgata esta saga do jornalismo combativo (acima Xilografia de Rubem Grilo, de 1978, para o Jornal Movimento).

O que o motivou a escrever o livro?

Precisávamos registrar essa história, as pessoas já não lembravam mais. O jornal teve uma importância notável por ser independente, feito pelos próprios jornalistas, com recursos recolhidos por eles mesmos, sem ter um empresário-patrão, uma trajetória excepcional. O jornal foi uma janela aberta para o debate democrático e vale agora como uma proposta para fazer imprensa independente no país, tem muita gente pensando em fazer, em enfrentar o monopólio, mas não sinto que haja unidade suficiente para reunir essas forças, esses talentos, essa capacidade de trabalho. Mas, se foi possível sob uma ditadura fascista, por que não é possível agora? Então, disse uma vez para o Raimundo Pereira que o jornal merecia um livro. Decidimos fazer, conseguimos pela Lei Rouanet o incentivo fiscal suficiente e trabalhamos desde 2009 até junho desse ano.

Como você divide a história do jornal?

Ele nasceu sob censura prévia, desde o número zero, e assim viveu os três primeiros anos. Era uma luta insana, era preciso fazer dois ou três jornais para sair um, chegando a sair todo quebrado, não dava tempo direito de paginar o jornal. Ele nasceu como uma frente de várias tendências políticas que tinha um ponto de unidade: fazer um jornal político para a democratização. No decorrer surgem diferenças de opinião. Acontece um racha em abril de 1977 e parte da redação se retira, 38 membros vão fazer o jornal Em Tempo. Apesar disso, conseguiu se recuperar com apoio de forças políticas, sobretudo o PCdoB – que tinha representantes em todo o país – principalmente na parte de distribuição e venda. Mais adiante surgem novos partidos, o PT, o PMDB, enfim, há uma fragmentação. Ali, de certa maneira, a frente do Movimento se enfraquece e o jornal tem mais dificuldade. E aí ele já estava sendo muito combatido pelo terrorismo militar. A ditadura encerrou a censura prévia no jornal, mas começou a bombardear as bancas que o vendiam, os jornaleiros não quiseram mais distribuir jornais da imprensa alternativa e oMovimento era sustentado basicamente pela venda em banca.

Quais forças políticas construíram o jornal?

As forças que se opunham à ditadura. Os interesses populares, democráticos, os operários que estavam arrochados, os camponeses que não tinham terra, a Igreja – progressistas como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns e todos esses bispos. Mais especificamente havia representações de organizações como a AP, o PCdoB, dissidências do PCB – partido que depois se aproxima, o pessoal que foi fazer o MR8, o pessoal que participou da guerrilha urbana, cujas organizações foram estraçalhadas. Enfim, são coisas que vão se alterando com o tempo. Quando surge o PT muitos deixam de apoiar o jornal, mas nem todos, como é o caso notável do Perseu Abramo que foi editor sendo dirigente do PT.

Entre os jornais de oposição da época, é comum escutar que os mais expressivos foram Opinião, Pasquim e Movimento. O senhor concorda?

De fato. O Pasquim era um jornal de humor político, de crítica pelo humor, mas sem uma proposta do que fazer. O Opinião surge com uma proposta nacionalista do Fernando Gasparian, um grande empresário. Tinha um texto muito bom, muita qualidade, muita informação do exterior e acontece no período mais duro da ditadura, quando o governo do Médici estava exterminando a oposição. O Movimento surge de um racha do Opinião e avança em relação aos outros porque tinha um programa explícito: pela liberdade democrática, pela redemocratização do país, pelo fim das leis de exceção, pelos direitos dos trabalhadores, em defesa dos interesses nacionais contra os interesses estrangeiros espoliadores, pela Assembléia Nacional Constituinte e pela anistia. E as matérias sempre trabalhavam em cima dessas bandeiras.

Como funcionava essa organização jornalística?

Era uma empresa com acionistas, mas do ponto de vista do funcionamento tinha instâncias, conselho de redação, chefia, editores e os outros profissionais. Funcionava a base de reuniões longas o tempo todo, não sei como aguentavam. Nunca vi um lugar na imprensa onde se debateu tanto.

E a qualidade do jornalismo?

Aquele grupo era muito talentoso e corajoso, tinha uma visão de jornalismo muito desenvolvida e alguns deles com grande experiência de jornalismo. Particularmente, o Raimundo Pereira, mas o Duarte Pereira era um pensador, o Tonico Ferreira, Marcos Gomes, o Perseu Abramo. Uma etapa nova do jornalismo brasileiro que trouxe uma maneira de trabalhar, um rigor na pesquisa. Tanto é que durante os seis anos e meio não houve um só processo contra o jornal por falsidade, por mentira, nada, mesmo com a ditadura procurando. Os caras tinham tudo documentado. Quando o dinheiro foi acabando, como fazer isso? A matéria vai ficando mais superficial e aí o leitor já não tem aquele interesse. A matéria para chegar tinha que vir num texto escrito num papel, na melhor das hipóteses num telex, tinha que ser datilografado na máquina. Por causa da pobreza de recursos, era um jornal simples, muitas vezes feio, não podia ser colorido, trabalhava com gráficas de qualidade menor, mas os leitores compravam mesmo quando ele vinha todo prejudicado. Comprar o jornal era contribuir, participar, como quem diz “só posso fazer isso, mas vou fazer”.

Qual era a circulação?

Ele começa censurado com 20 mil exemplares e, muito judiado pela censura, vai caindo. Quando a censura sai do jornal em junho de 1978, ele respira e cresce de novo, envolvido em grandes campanhas pela Assembléia Constituinte, pela Anistia e a campanha eleitoral de 1978, em que se apresentou um general de oposição, Euler Bentes Monteiro, contra o Figueiredo. O jornal deu muito apoio porque passou a ter, através dos autênticos do MDB, uma ligação com os militares de oposição, forçando a ditadura a recuar.

E por que acabou?

Isso é tema de grandes polêmicas até hoje. O Raimundo Pereira acha que o fundamental foi o bombardeio das bancas. Eu acho que o mais importante foi a reorganização partidária. A medida que a ditadura foi se retirando habilmente, a frente democrática foi se desmanchando em vários partidos e essa era a intenção óbvia e objetiva da ditadura: fazer uma Arena nova, com o pedaço do MDB mais conservador, isolar o MDB autêntico de um lado, criar um partido trabalhista com os ptbistas antigos com o Ivete Vargas, Brizola e tal. Aí se formou o PT. Como a ditadura se recusava absolutamente a reintegrar os partidos comunistas à vida nacional, parte da frente democrática foi organizar o PT. OMovimento não achava o PT uma solução satisfatória por não reunir toda a frente democrática e ficou mais ligado ao PMDB, porque os autênticos ficaram no PMDB. Mas manteve relações com os outros partidos. Ou seja, a frente que o jornal representava se dividiu e ele não tinha mais sustentação. A imprensa alternativa que tinha florescido, chegando a mais de 100 jornais em 1978, 1979, desaparece toda, não só o Movimento. Quase todos os jornais alternativos por todo país, em dois anos, desapareceram e surgiram os jornais de partido, o que mostra que é um fenômeno político e social. A sociedade e aqueles grupos foram fazer outra coisa, organizar seus partidos, seus jornais.

Quem é: Carlos Alberto de Azevedo, 71, paulista, ex-militante da AP e do PCdoB. Jornalista desde 1960, com passagens pelos jornais A Hora, Estadão, Folha, Jornal do Brasil, revistas O Cruzeiro, Quatro Rodas Realidade.

 

Serviço:

Livro: “Jornal Movimento, uma reportagem”
Autor: Carlos Azevedo
Preço: R$ 59 ou baixado gratuitamente no sitewww.oficinainforma.com.br/movimento/

 

 

http://www.brasildefato.com.br/node/7256#.Tl0lwQTsTVE.



Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.