Por Bianca Pyl
A resposta que Paulo* recebeu quando tomou coragem para cobrar o salário atrasado foi uma saraivada de tiros. As balas não o atingiram e ele conseguiu fugir da carvoaria em que trabalhava. Saiu em busca de providências para dar um basta ao cotidiano de sofrimento que compartilhava com outros colegas migrantes de Minas Gerais que enfrentavam as mesmas condições desumanas de trabalho e de vida na região Norte de Goiás.
Após escapar do atentado, ele seguiu à pé da fazenda até o posto da Polícia Civil de Santa Terezinha de Goiás (GO). Deparou-se, porém, com a recusa dos policiais em registrar o episódio na forma de boletim de ocorrência. “Eles me disseram que só registrariam a queixa se eu tivesse com ele [autor dos disparos] lá. Como eu poderia estar com ele lá? Ele é poderoso na cidade. Dá medo”, relatou Paulo* à Repórter Brasil.
Mesmo assim, ele não desistiu. Determinado, dormiu na rodoviária e teve até que vender uma das poucas peças de roupa que ainda tinha para juntar os recursos necessários para chagar até uma unidade do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e relatar o ocorrido. Cumprida a missão, Paulo* foi brindado com o abrigo oferecido por uma entidade civil.
A operação organizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO) a partir das indicações dele resultou na libertação de 69 pessoas de condições análogas à escravidão, incluindo cinco adolescentes entre 15 e 17 anos, que trabalhavam em 11 carvoarias.
“Trata-se de um dos maiores esquemas de exploração de trabalhadores já vistos em Goiás”, declarou Roberto Mendes, que coordenou a fiscalização. Os flagrantes ocorreram em julho último e foram acompanhados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Polícia Federal (PF).
Os empregados desmatavam a mata nativa do Cerrado, produziam carvão vegetal nos fornos e continuava até a entrega do produto em Minas Gerais. “Várias siderúrgicas compravam o carvão, mas não havia notas fiscais no local para apurarmos a cadeia produtiva”, adicionou Roberto.
Descartados
A exploração criminosa de trabalhadores envolvia um grupo familiar que vinha atuando há mais de seis anos na produção e comercialização de carvão vegetal na região, sempre de forma irregular. São ao menos sete os envolvidos, todos de uma mesma família: Francisco Braz Cavalcante, conhecido como “Paraíba”; Francisco Cezar Cavalcante (pai de “Paraíba”); Marli Pereira Cavalcante (esposa do Paraíba); Pedro Braz Cavalcante (irmão de “Paraíba”); Cícero Aguiar Pereira Cavalcante (filho de “Paraíba”), além de Ricardo e Eduardo Braz Cavalcante (ambos sobrinhos do mesmo “Paraíba”).
O acusado da tentativa de homicídio é Walter Lopes Cançado, que tem os apelidos “Nenzin” e “Nenzico”, que também foi considerado como co-autor do crime de trabalho escravo pela equipe de fiscalização.
As propriedades fiscalizadas foram as seguintes: Fazendas Santa Cruz e Óregon, em Santa Terezinha de Goiás (GO); Fazendas Areião, Alegre Córrego Jatobá, Crixazinho e Jatobá, em Crixás (GO); Fazenda Mutum ou São Francisco, em Pilar de Goiás (GO); Fazenda Many, povoado de Mandinópolis, em Guarinos (GO); Fazenda Xavier ou Sete Estrelas, em Uirapuru (GO); e Fazenda Tarumã, em Nova Crixás (GO). Os proprietários das áreas citadas também serão responsabilizados pela fiscalização trabalhista.
As vítimas foram aliciadas em Paracatu (MG) e Mirabela (MG) por “gatos”. O próprio “Nenzin” atuou como intermediário em alguns dos casos. “Eu estava em Minas [Gerais] procurando trabalho. Podia ser qualquer coisa – cana ou carvoaria. Aí o ´gato´ Nenzin me chamou e disse que o trabalho era bom, que eu ia ganhar até R$ 2 mil por mês. Fui, né?”, descreveu Paulo*. Ele relatou que vem atuando há cinco anos em carvoarias e alega que já está habituado a viajar por diferentes Estados do páis em busca de trabalho.
Os migrantes resgatados em Goiás deixaram suas comunidades sem que o empregador cumprisse a Instrução Normativa nº 76, do MTE, que prevê um requerimento junto à agência mais próxima do órgão para a emissão da Certidão Declaratória para Transporte de Trabalhador (CDTT).
O registro em carteira do trabalhador deve ser feito ainda no local de origem. “O descumprimento dessas obrigações caracteriza, em tese, os delitos previstos no art. 207 do Código Penal: crimes de aliciamento e de recrutamento de mão de obra”, explicou o auditor fiscal Roberto. Por muitas vezes, completa o agente público, “os trabalhadores vinham sobre as carrocerias dos caminhões que transportavam carvão para aquele Estado”.
No desenrolar das inspeções, foram encontrados oito trabalhadores que passavam fome em um hotel em Santa Terezinha de Goiás (GO). Os auditores fiscais pagaram a alimentação do grupo. “Nos dias seguintes, mais trabalhadores foram encontrados na mesma situação. Todos eles foram encaminhados para um hotel, onde receberam abrigo e alimentação por conta da União durante 13 dias”, contou o coordenador da fiscalização.
Com a conclusão de determinados serviços, alguns eram abandonados pelos empregadores, sem nenhum dinheiro. “Descartados, eles se hospedavam em alguma pequena pousada à espera de um ´gato´ que pudesse pagar as dívidas pendentes e levá-los para outra carvoaria”, disse Roberto.
Condições
Os empregadores não forneciam equipamentos de proteção individual (EPIs) aos empregados, que executavam diversas atividades, como corte, carregamento e transporte de madeira; colocação da madeira nos fornos; queima da madeira (carbonização); retirada do carvão dos fornos; ensacamento, transporte e carregamento do produto nos caminhões.
De chinelos ou com botinas furadas, eles não tinham luvas, máscaras, ou óculos. Além disso, ficavam expostos ao forte calor do Centro-Oeste. “A consequência disso não poderia ser outra: mãos calejadas, hematomas, dores na coluna e nos rins”, acrescentou o chefe de inspeção rural da SRTE/GO.
A água consumida pelos resgatados era a mesma usada na produção do carvão vegetal. O líquido não passava por nenhum tratamento e ficava armazenado em um caminhão pipa enferrujado. Nos alojamentos, a água era colocada em periogosos tambores de produtos químicos reutilizados.
Todos os 25 alojamentos inspecionados estavam em condições precárias. Alguns barracos eram de lona e piso de chão batido; outros, de madeira e tijolos. As camas eram improvisadas, feitas com tocos e pedaços de madeiras (foto acima). Alguns dormiam no chão. Não havia instalação sanitária nem nos alojamentos e nem nas frentes de trabalho. “A gente trabalhava o dia todo e na hora que precisava ir no banheiro era vergonha. Tinha que ir na mata mesmo. Não tinha jeito. Sem papel nem nada”, contou Paulo*.
O banho era tomado atrás do barraco, com um balde de água fria. Em alguns pontos, córregos eram utilizados para este fim. As refeições eram feitas sem que houvesse um local minimamente adequado. A exposição a riscos incluía ruídos altos e inúmeras substâncias presentes na fumaça e na fuligem resultantes da queima de madeira para produção de carvão.
“Ouvimos trabalhadores se queixando de problemas de saúde, como dores na coluna, falta de ar e pontadas no peito, além de ferimentos no corpo”, conta Roberto. “Se o carvoeiro adoecer no mato, basta esperar a morte. E o pior é que, se você se machuca, fica sem trabalhar e não recebe nada”, confirmou a vítima que foi ouvida pela Repórter Brasil.
Responsáveis por ensacar o carvão e carregar o caminhão para as entregas, os “chapas” arriscavam as suas vidas com frequencia. Sem espaço, eles viajavam em cima da cabine do caminhão. Por conta do cansaço, tinham medo de cair, pois chegavam até a cochilar durante o trajeto.
O pagamento era feito por produção: R$ 5 para encher um forno e R$ 10 para esvaziar. Contudo, Paulo* não recebeu nada pelo período trabalhado. “Dava em média R$ 30 por dia”. Sobre as dívidas, o trabalhador afirma que “sempre tem desconto”. “Por mais que o cabra não te fale quanto é a dormida e a comida, quando você recebe, já vem tudo descontado”.
A jornada começava à meia-noite e seguia até o início da noite seguinte. Havia uma pausa para almoçar e outra para dormir por algumas horas antes do retorno novamente à meia-noite. “Por vezes, eles dormiam ao relento nas carvoarias porque não dava tempo de retornar ao alojamento”, disse Roberto.
Não havia descanso semanal remunerado. “A gente ficava direto no mato. E se tivesse folga, ia fazer o quê? Não conhecemos ninguém na cidade. Não tem transporte da carvoaria para cidade”, emendou.
Cobranças
As verbas rescisórias cobradas totalizaram mais de R$ 680 mil. No entanto, os empregadores pagaram somente uma parcela do valor (R$ 205 mil). Os auditores fiscais do trabalho emitiram 68 guias de Seguro-Desemprego para Trabalhador Resgatado da condição análoga à escravidão. Cada um irá receber três parcelas de um salário mínimo (R$ 545).
O MPT também moveu ação civil pública contra os produtores de carvão e contra os proprietários das fazendas onde as carvoarias estavam instaladas. Em medida cautelar, o juiz da Vara do Trabalho de Uruaçu (GO) já decretou o bloqueio de bens de alguns dos envolvidos.
Reincidente (flagrado duas vezes em dois meses), Francisco Braz Cavalcante, o “Paraíba”, chegou a ser preso, no dia 12 de julho, pelo flagrante do crime de submeter alguém à condição análoga à escravidão. Porém, o acusado pagou fiança e foi liberado para responder o processo em liberdade
No dia seguinte, a fiscalização conduziu Walter Lopes Cançado até a Polícia Civil da Comarca de Crixás (GO). Ele é acusado da prática dos crimes de aliciamento, tentativa de homicídio e co-autoria no crime de trabalho escravo. Contudo, a prisão de Walter não efetivada porque a Polícia Civil se recusou a lavrar o auto de prisão em flagrante, alegando “não ter condições naquele momento”, de acordo com o auditor e coordenador Roberto. Já a Polícia Federal não efetuou a prisão em flagrante do “gato” acusado sob a alegação de que seria impossível de enviar um delegado até o local do crime.
“Como nossa equipe não podia se ausentar do local para conduzir o acusado até a sede da PF em Goiânia (GO), a única saída foi liberar o acusado”, lamentou Roberto. A operação verificou ainda outras irregularidades como produção de carvão sem autorização do órgão ambiental competente; transporte de carvão sem emissão de notas fiscais; desmatamento de espécies protegidas por lei e realização de queimadas sem autorização.
A reportagem tentou ouvir os acusados, mas os telefones estavam desligados. ARepórter Brasil enviou solicitação à Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás para saber os motivos pelos quais a Polícia Civil se recusou a registrar o boletim de ocorrência e efetuar a prisão do “gato”. Contudo, o pedido não foi atendido até o fechamento desta matéria.
A PF informou, por meio do Serviço de Comunicação Social da Superintendência em Goiás, que não foi possível enviar um delegado e um escrivão para que as prisões fossem efetuadas porque é preciso autorização para viagens com antecedência, por conta do depósito das diárias dos servidores. A PF disse também que está aguardando o relatório da SRTE/GO para tomar as medidas cabíveis em relação ao crime de trabalho escravo.
*nome fictício
http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1931