Plano funerário sem regulamentação ilude população carente em Minas

Quando começou a pagar o plano, Maria Machado, moradora de Virgem da Lapa, desembolsava R$ 10. Hoje, cerca de três anos depois, a mensalidade é de R$ 17  (Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Quando começou a pagar o plano, Maria Machado, moradora de Virgem da Lapa, desembolsava R$ 10. Hoje, cerca de três anos depois, a mensalidade é de R$ 17
Empresa se aproveita da boa fé, da miséria e da falta de informação de moradores dos vales do Jequitinhonha e Mucuri para oferecer o serviço, sem assinatura ou contrato

Alessandra Mello e Marcelo da Fonseca

Araçuaí,  Itaobim, Ponto dos Volantes, Teófilo Otoni e Virgem da Lapa – Em duas das regiões mais pobres do país, o Vale do Mucuri e o Vale do Jequitinhonha, o negócio da morte é próspero. Uma empresa cobra dos mais pobres – de preferência analfabetos, mais velhos e sem qualquer tipo de informação – valores que variam entre R$ 10 e R$ 30, dependendo do município, a título de plano funerário. Não há contrato, apenas a confiança do miserável de que, ao morrer, vai receber um buraco de sete palmos, um caixão e em alguns casos uma galinha (viva), que será entregue à família como “merenda” para o velório.

A única garantia dos adeptos desse plano, disseminado em toda a zona rural da região, carente de água e de emprego, é um carnezinho azul cor do céu com nuvens brancas. Lá, aparece o nome do beneficiário e o da Funerária Teófilo Otoni, que também responde pelo nome fantasia de Serviços Sociais Teófilo Otoni. É a maior prestadora de serviços dessa natureza e já atua em 27 municípios do estado e dois no interior da Bahia. A captação de clientes é feita, muitas vezes, diretamente nos hospitais públicos.

Uma das adeptas desse plano é a trabalhadora rural Maria Machado, 64 anos. Ela conta que começou pagando R$ 10 há cerca de três anos, depois passou para R$ 15. Hoje já são R$ 17. Em valores absolutos, parece pouco, mas representa uma alta de 70%. Além disso, nesse período de contrato, ela desembolsou cerca de R$ 500. Um enterro completo na região fica em torno de R$ 800. A reportagem pediu para ver o contrato assinado por ela com a funerária . Dona Maria trouxe um carnê com seu nome inscrito a caneta e um número. Só. Nenhum papel a mais. “Só tenho isso”, conta dona Maria, que não sabe ao certo quais são seus direitos caso ela ou alguém da família venha a falecer. E pior: não existe nenhum documento por escrito de que suas filhas maiores também aderiram ao plano.

No povoado onde dona Maria mora, em Virgem da Lapa, todas as 30 famílias pagam pelo plano. O plano é para toda a família de dona Maria, mas só vale se todos morrerem juntos. Caso a titular faleça, outra pessoa tem de assumir o pagamento das mensalidades para que seus filhos e netos menores de idade tenham direito ao serviço.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Virgem da Lapa, José Dias de Carvalho, disse que esse serviço está disseminado em toda a zona rural da região. Na comunidade de Malhada Branca, onde mora, somente ele e o pai, Emídio Elias de Carvalho, 70 anos, não aderiram.

Mas essa não é uma realidade exclusiva da zona rural do Jequitinhonha e Mucuri. Os planos funerários têm crescido em todo o Brasil e já foram até alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados. O problema é que não existe no Brasil uma regulamentação para esse serviço, nem a definição sobre a responsabilidade pela sua fiscalização. Como acontece com os outros tipo de seguro, controlados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), uma autarquia do Ministério da Fazenda. O Congresso tem proposta para regular o setor, mas elas ainda estão no papel. Enquanto isso, muitos consumidores podem ser lesados em um dos momentos mais difíceis da vida: a morte.

Empresa funerária atua em 27 municípios

Maria Dolmezina: Decidi passar a pagar, porque a coisa certa que todo mundo sabe é que um dia vai morrer (Juarez Rodrigues/EM/D.A press)
Maria Dolmezina: Decidi passar a pagar, porque a coisa certa que todo mundo sabe é que um dia vai morrer

Procurados para explicar os detalhes dos compromissos assumidos com os clientes e como é feito o acordo com os habitantes dos municípios vizinhos, os donos da Funerária Teófilo Otoni não receberam a equipe de reportagem. Na sede da empresa, na cidade do mesmo nome, os funcionários contaram que a empresa chegou na região em 1998 e hoje já está presente em 27 municípios no Vale do Jequitinhonha e tem duas filiais no Sul da Bahia. Segundo eles, a funerária foi criada por dois irmãos, que dividiram entre si as áreas de atuação e passaram a oferecer serviços diferenciados em relação aos concorrentes, como por exemplo lanches melhores nos funerais.

Na Junta Comercial de Minas Gerais (Jucemg) a empresa está registrada em nome de Carlos André Pereira Sandes, José Pereira Sandes e João Carlos Pereira Sandes. Uma das agenciadoras da funerária é a técnica em enfermagem do Hospital São Domingos, em Virgem da Lapa, no Jequitinhonha. Conhecida como Lainha, ela administra na cidade uma das filiais da empresa e ao mesmo tempo trabalha no Programa Saúde da Família.

Em uma das sedes em Araçuaí, Renato Costa Sandes, 22 anos, um dos filhos de um dos fundadores da empresa, explica que o crescimento se deu por causa de uma das novidades ofertadas pela funerária: o plano familiar, que atende mais de uma pessoa na mesma família. Sobre os acordos firmados nas regiões rurais do Vale do Jequitnhonha, Renato afirmou que fica a critério de cada sócio que administra suas filiais. “Aqui na cidade quase todo mundo paga e queremos levar nosso serviço em mais lugares da região. Os preços variam de R$ 10 a R$ 30, com diferença no tipo de caixão que o cliente terá direito”, explica Renato.

A reportagem tentou falar com o presidente do Sindicato das Empresas Funerárias de Minas Gerais (Sindinef), José Afonso Real, mas não conseguiu. Foi informada de que ele estava no interior, sem contato por celular.

Projeto tenta criar regras para o setor

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada pela Câmara dos Deputados para investigar planos de saúde passou perto dos funerários, depois do recebimento de denúncias de irregularidades nesse tipo de serviço, como falta de contratos e prestação de serviços médicos. Como quase toda CPI essa, concluída em 2003, deu em nada. No relatório final, os deputados sugeriram a regulamentação urgente do serviço, mas nada disso ocorreu. Projetos para regular o setor foram apresentados há mais de uma década e até hoje não viraram leis.

Ano passado começou a tramitar no Congresso Nacional um novo projeto de lei para regulamentar os planos funerários, uma reivindicação dos próprios empresários do setor. Relatado pelo deputado federal Eduardo Barbosa (PSDB-SP), o projeto propõe regras como a exigência de “contratos escritos que obriguem exclusivamente a prestação de serviços de assistência funerária”. Prevê também a constituição de reservas financeiras e de capital mínimo proporcional ao número de contratos e a realização de auditorias contábeis. O deputado disse que pretende apresentar seu relatório no mês que vem. Segundo ele, é preciso que existam regras bem claras dando garantias aos usuários desse serviço, que está se disseminando em todo país, sem nenhum tipo de fiscalização e controle.

Barbosa destaca que essa legislação é fundamental, pois a maioria absoluta de usuários desse serviço são pessoas de baixa renda, cuja família não tem como arcar com as despesas de enterro em caso de morte de alguma parente e acabam, muitas vezes, endividadas. A falta de contrato, como acontece nos casos relatados, segundo ele, é uma das principais preocupações.

Outros projetos pretendem proibir que agentes funerários sejam lotados na rede pública de saúde ou em hospitais que atendem pelo SUS ou trabalhem clandestinamente nesses locais em busca de clientes.

Funeral preocupa mais que a seca

Para Antônio Ribeiro, nem a seca preocupa mais do que deixar para os filhos as despesas com seu funeral  (Juarez Rodrigues/EM/D.A press)
Para Antônio Ribeiro, nem a seca preocupa mais do que deixar para os filhos as despesas com seu funeral

Maioria dos clientes dos planos funerários do Jequitinhonha e Mucuri mora na zona rural e paga pelo serviço mesmo sem poder. Na Câmara, projeto retoma tema, que foi alvo de CPI

Araçuaí, Itaobim, Ponto dos Volantes, Teófilo Otoni e Virgem da Lapa – A maior angústia do trabalhador rural Antônio Ribeiro dos Santos, 72 anos, não é com os cinco meses sem chuva na sua terra, Itaobim, município do Vale do Jequitinhonha, ou com as duas vacas que não param de emagrecer nos últimos meses. O que mais o preocupa é a possibilidade de deixar para os oito filhos as despesas com seu próprio enterro. Desde quando começou a perder a visão e as dores no corpo aumentaram, seis anos atrás, ele paga mensalmente R$ 18 para manter o plano funerário, mesmo sem saber como funciona o serviço contratado ou os motivos do aumento nas mensalidades. “Antes eram R$ 15, mas passaram a cobrar mais caro. Deve ser porque o salário mínimo aumentou”, diz.

Antônio não sabe o que o benefício pago vai proporcionar quando morrer e nunca chegou a acionar a funerária Teófilo Otoni para ajudar no transporte ao médico, mas o pagamento mensal nunca falhou desde que foi convencido a quitar o carnê mensalmente. Retornando de uma consulta ao médico na quinta-feira passada, com dificuldades para caminhar no meio de um trajeto de 15 quilômetros entre sua roça e o hospital, o trabalhador explicou os motivos que o levam a sacrificar parte do orçamento que tira de sua terra. “Há um tempo, eles passaram lá em casa falando desse plano, que ia dar condição para meus filhos quando eu morresse. Sabia que ia ser muito difícil pagar as contribuições, mas nunca falhei no pagamento, sempre que eles passam lá em casa estou com o dinheiro guardado. A gente luta muito para ter saúde, mas como não tenho certeza, não admito colocar meus filhos em dificuldade e dar trabalho para eles”, explica.

Assim como Antônio Ribeiro, os casos das pessoas que pagam mensalmente os boletos de planos funerários sem assinar contratos ou receber os auxílios prometidos pelas empresas são comuns no Vale do Jequitinhonha. Com a promessa de buscar o corpo, garantir o caixão e um lanche no velório, as funerárias convencem centenas de clientes a pagar os boletos com preços variados. No entanto, não acompanham a rotina dos clientes para garantir os serviços básicos prometidos aos clientes na hora de assumir o compromisso, como por exemplo, levar e buscar nos hospitais para consultas médicas.

Certeza

Maria da Rocha Dolmezina, 69 anos, moradora de Ponto dos Volantes, é cliente da Funerária Teófilo Otoni há três anos e espera contar com o apoio do plano quando precisar, no entanto, ainda não solicitou a ajuda do empresa desde que começou a pagar o plano. “Quando eles vieram pela primeira vez oferecer o serviço meu filho mais velho não deixou a gente fazer. Mas depois que ele saiu de casa, decidi começar a pagar, porque a coisa certa que todo mundo sabe é que um dia vai morrer, então melhor garantir o mínimo, porque ninguém merece ficar sem ter um caixão pelo menos”, afirma.

A dona de casa também não sabe porque a mensalidade aumentou ou detalhes dos benefícios prometidos pela funerária, mas com receio de dar trabalho aos filhos, ela e o marido se esforçam para não atrasar as parcelas. “Comecei pagando R$ 10, mas depois passou para R$ 12. Muita gente chega a desistir, sem condições de pagar, mas aí acabam perdendo todo o dinheiro que já pagaram”, conta Dolmezina.

Dinheiro contado

A aposentada Maria Amélia dos Santos, 73 anos, é cliente da Funerária Salinas em Araçuaí, e aderiu ao plano de R$ 20 para ela e para o marido. Com renda de um salário mínimo mensal o casal precisa manter as despesas contadas e preferem não abrir mão do plano com a funerária. “Na verdade, não é um dinheiro que a gente pode gastar, já que todo mês fica tudo bem apertado e as vezes temos que cortar em algumas outras despesas para conseguir pagar a conta de luz e água. Não cheguei a ver o que podemos pedir para eles, mas o rapaz disse que temos, além do caixão e da merenda, descontos quando precisar comprar remédio”, diz.

Na sexta-feira, o marido de Maria Amélia, Aljunie Soares Coelho, 88 anos, teve de ir ao hospital, sentindo dificuldades de respirar, ainda se recuperando de uma pneumonia contraída há duas semanas, mas o casal não chegou a solicitar o apoio da funerária. “Ficamos sem saber quando é que podemos ou não pedir o apoio, mas estamos fazendo um sacrifício para continuar pagando e não perder os direitos nas horas que precisar”, conta Maria Amélia.

Palavra de especialista
Mercado não está ao deus-dará

Patrícia Monteiro Ramos, advogada especialista em direito funerário

“É necessária uma legislação própria para garantir o bom funcionamento desse serviço, que ainda não tem regulamentação específica. Apesar da falta de regras próprias, como acontece com outros tipos de seguro, o mercado dos planos funerários não está ao deus-dará. Ele é amparado pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, por isso a população deve ficar atenta e exigir seus direitos na hora de contratar esses serviços. Entre as garantias, é necessário ter um contrato com regras claras a respeito do serviço a ser prestado e também sobre o reajuste das parcelas e dos juros e multas em caso de atraso no pagamento. O documento também deve prever o que acontece em casos de desistência e o período de carência para que o consumidor saiba claramente o que está contratando.”

http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2011/08/21/interna_politica,246275/funeral-preocupa-mais-que-a-seca.shtml

Comments (1)

  1. nasci em virgem da lapa moro hoje em sertaozinho sp, mais sei que la foi sempre uma vida sofrida principalmente para quem nao tem nenhum conhecido na cidade, muitas das vezes o que vale é: voce conhece quem na cidade, voce é amigo de quem? se voce conhece tudo bem, se voce nao conhece; problema seu.

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