Saartjie Baartman rima com exploração sexual e a mais bárbara forma de racismo. De Vénus Hotentote torna-se num autêntico “freak show” e atracção de feira. O facto deste episódio ter ocorrido no início do século XIX pouco desculpa que os restos mortais desta mulher tenham sido uma atracção de museu até 1974.
O grande filme Vénus Negra (estreia dia 18) não é para todos. Desde logo porque nos coloca frente a frente com a observação científica, e por isso mesmo despudorada, das partes anatómicas da sul-africana que, em 1817, foi exibida na Academia Real de Medicina, em Paris, revelando à comunidade científica da altura, e também ao espectador, os seios e nádegas de dimensões inusitadas, bem como a genitália de características particulares que serviria para confirmar uma descendência directa dos símios. O que hoje choca, na altura admirou e celebrou. De tal forma que Saartjie Bartman (1789-1815), interpretada com uma entrega total pela estreante cubana Yahima Torres, tornou-se numa atracção circense consentida, para quem a multidão pagava para se sentir próximo e mesmo tocar as nádegas avantajadas desta Vénus hotentote. É aí que o espectador sentirá o inesperado desconforto da confortável poltrona do cinema. É aí que reside também o grande cinema de Kechiche. E se faz arte.
Mas quem foi Saartjie Baartman? Diz a sua biografia que é oriunda de uma família “khoisan” na África do Sul, ligada ao serviço de colonos holandeses perto da Cidade do Cabo. Aliás, em “afrikander” o seu nome significa “pequena Sarah”. Na mira de um lucro fácil, o irmão do patrão prometeu-lhe fortuna se consentisse ser exibida em Inglaterra. Baartman chegaria a Londres em 1810 mas acabaria vendida a um domador de animais francês que a explorou como escrava e prostituta até o ano 1815. A curiosidade chegaria mesmo à classe científica que acabaria por investigar o seu corpo medindo todos os órgãos para diversos museus e instituições zoológicas.
Após a morte de Saartjie Baartman, a 29 de Dezembro de 1815, vítima de uma doença inflamatória, o seu corpo foi doado ao Museu do Homem, em Paris, onde foi feito um molde de gesso do corpo e conservadas as partes anatómicas em formol para exibição no museu. Ao tornar-se presidente, Nelson Mandela exigiria à França o regresso desses restos mortais acendendo uma polémica e debates legais que durou até 2002, o ano em que a Assembleia Nacional francesa finalmente acedeu ao seu pedido.
Encontro com Abdellatif Kechiche
Foi um encontro feliz com o realizador francês de origem tunisina. E onde se percebe o talento de um dos mais promissores realizadores da actualidade. Com Kechiche, o ser humano é tratado na sua forma mais valiosa. Valiosa sim, mas não tanto como a jovem de 10 anos que posou para a capa da Vogue em poses provocantes ou o miúdo argentino, de 7 anos, contratado pelo Real Madrid.
Descobri esta personagem, um pouco por sorte, há já algum tempo, em leituras. Por sinal durante a leitura de um ensaio sobre Diderot, onde já se falava da Vénus Hotentote. Interessei-me por ela sobretudo depois do “apartheid” e a história da África do Sul, sobretudo quando a África do Sul exigiu à França a restituição dos seus restos mortais. Foi algo na altura divulgado na imprensa. Isso fez-me interessar mais na personagem. Foi então que comecei a ler todos os relatos históricos, numa pesquisa que durou cerca de dez anos. Achei a história apaixonante. Algo que me perturbou e me fez sentir a necessidade de contribuir para a sua divulgação.
Até que ponto as suas próprias origens o influenciaram a fazer este filme?
Chegou a sentir algum racismo ao longo da sua vida?
Eu cresci nos anos 60, em França, imediatamente após o fim do colonialismo. A Argélia tornou-se independente em 1963 e essa data é encarada como o final do colonialismo. Nessa altura, em França o racismo estava ainda muito presente. No entanto, nos anos 80, com a chegada de François Miterrand, o racismo diluiu-se. Foi aí que me fui sentido cada vez mais francês. Mesmo assim, uma dezena de anos depois deu-se um novo retrocesso agravando o extremismo e racismo. Muitas pessoas como eu sentiram esse racismo e de não nos sentirmos completamente como fazendo parte da sociedade.
Acha que existiu algum progresso desde a história da Saartjie?
Do ponto de vista estilístico, este é um filme muito diferente de «O Segredo de um Cuscus» e dos seus filmes precedentes, tanto em termos de língua, bem como em escala de produção. Era um algo que procurava fazer nesta altura?
O termo ‘hotentote’ é usado hoje sem a conotação racista. Tem a noção de onde é originário?
Num tempo em que se explorava o corpo de uma forma tão crua, como escolheu o que mostrar e não mostrar?
O que pensa da exploração do corpo feminino tal como é feita hoje em dia?
Este filme não teria sido possível se não tivesse a actriz certa. Como foi que a encontrou?