Miséria condena desenvolvimento de 10 milhões de crianças

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Além da alimentação insuficiente, o estresse vivido pelos pais podem afetar o desenvolvimento da criança (Foto: Marcelo Prates)
Pesquisa mostra que pobreza ameaça desenvolvimento físico e psíquico de 10 milhões de brasileiros de até 6 anos

Daniela Garcia*, do Hoje em Dia

Uma criança nasce na favela, fruto de gravidez não planejada. Os pais são adolescentes. Abandonam os estudos, alugam um barracão e, juntos, ganham o equivalente a meio salário mínimo. Para manter a casa, se submetem a longas jornadas de trabalho e passam poucas horas com o filho.

Esse cenário de vulnerabilidade se repete com milhões de pequenos brasileiros e põe em xeque os seis primeiros anos da vida deles, uma fase considerada essencial para o desenvolvimento, na avaliação de médicos, educadores e psicólogos. No país, cerca de 10 milhões de meninos e meninas até seis anos de idade estão abaixo da linha de pobreza, segundo dados do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (Ciespi). Vivem em famílias com renda per capita inferior a R$ 6,80 por dia, conforme valores de 2009.

Para especialistas, a chamada “primeira infância” é um período fundamental para o aprendizado. Mas tem sido comprometida pela miséria no Brasil. Por isso, o Ciespi enviou um relatório com esses números para o governo federal. No Plano Nacional pela Primeira Infância estão traçadas diretrizes gerais que o país deverá colocar em prática até 2023 para que crianças de até 6 anos de idade possam se desenvolver normalmente.

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Milhões de crianças sofrem com a falta de saneamento básico e com condições precárias de segurança e alimentação (Foto: Marcelo Prates)

A Secretaria de Defesa Social de Minas (Sedese) não informa se mantém projetos para menores nessas condições. O banco de dados do Ciespi não tem um levantamento específico sobre crianças de até 6 anos em cada estado, mas estima que 438.728 mineiros de até 15 anos vivem abaixo da linha da pobreza.

“É injusto e inaceitável que crianças dessa idade não recebam os estímulos necessários para que se desenvolvam tanto nas suas estruturas física e psíquica quanto nas habilidades sociais”, analisa a professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Ciespi, Irene Rizzini. Ela alerta que as experiências vividas nessa fase da vida influenciam, para sempre, a pessoa e sua relação com quem a rodeia.

O problema não está apenas no orçamento apertado. Condições precárias de segurança e de alimentação, falta de saneamento básico e até o estresse vivido pelos pais devido ao dinheiro curto podem afetar todos os aspectos do desenvolvimento dos filhos.

É o que acontece com a família de Maraline Mendes da Costa, de 26 anos, moradora da Vila Madre Gertrudes, na Região Oeste de Belo Horizonte. Mãe de duas crianças com 4 e 7 anos, ela afirma que a insegurança e o medo a acompanham por todo o dia.

Ao sair para trabalhar, de manhã, a faxineira fica temerosa por deixar a filha mais velha, Júlia, sozinha em casa. À tarde, enfrenta a ansiedade de buscar alternativas para aumentar a renda mensal de apenas R$ 320. À noite, diz que por vezes não consegue dormir, com medo dos usuários de crack que ocupam uma casa abandonada ao lado do barracão dela.

Mas o momento de maior aflição para a família é o período chuvoso. A casa de Maraline fica em uma área de risco, bem em frente ao Córrego Ferrugem. “Quando o rio começa a encher, pego as crianças, vou para a BR-040 e espero até a chuva passar”, conta. “Me sinto completamente incapaz por não poder dar um lugar melhor para meus filhos”.

Mesmo que os pais tentem poupar a prole, esse clima de insegurança acaba por afetar as crianças, avalia Irene. “A família é a primeira referência. Se os adultos ficam angustiados porque não têm dinheiro ou por conta do tiroteio no morro, é certo que as crianças vão sofrer com esse cotidiano de medo”.

Fase requer atenção especial

Nos seis primeiros anos de vida, as crianças são mais frágeis e precisam de uma proteção especial da família, explica Irene Rizzini, professora da PUC Rio e diretora do Ciespi. “É um tempo de vulnerabilidade pelo qual todos nós passamos. Uma etapa que demanda um ambiente seguro, acolhedor e propício ao desenvolvimento das nossas potencialidades”, diz.

Por isso, Irene defende que pais e gestores públicos assumam de fato o compromisso de proporcionar esse ambiente de estímulos na primeira infância. A professora afirma que o caminho para terminar com a desigualdade no país depende de como estão vivendo os menores nessa faixa etária. “A família pode ser pobre e dar o maior carinho para o filho. Mas não tem água limpinha para ele tomar banho. Como dá para crescer em um ambiente assim?”, questiona.

A diretora do Ciespi espera que a entrega do Plano Nacional da Primeira Infância à Presidência da República e a outras autoridades as leve a dedicar políticas mais eficazes a esses meninos e meninas. Nas próximas etapas do plano estão previstos o aperfeiçoamento das soluções pelo Poder Executivo e o encaminhamento das propostas ao Congresso.

Desnutrição, a maior ameaça

Na fase inicial da vida há dois momentos principais de desenvolvimento da criança, explica a Presidente do Comitê de Neurologia Infantil da Sociedade Mineira de Pediatria, Marli Marra de Andrade. Primeiro acontecem as transformações neuromotoras e da linguagem. Já na maturação, se desenvolvem os aspectos psicológico e emocional.

Para a médica, a desnutrição é o reflexo mais cruel da pobreza. “Nos primeiros anos, o cérebro ainda está sendo formado e a criança precisa de uma alimentação adequada. A falta disso pode atrapalhar a anatomia cerebral e a formação de milhares de células”. A situação pode se agravar se a mãe, durante a gravidez, não se alimentou direito ou usou álcool e drogas. “O bebê pode sofrer um retardo ou um transtorno mental”.

Situação é pior entre negros e pardos

A maioria das crianças com idade até 6 anos é negra ou parda, segundo dados do Ciespi. Elas representam 60% do total de brasileiros nessa faixa etária. Menores de pele escura também enfrentam índices mais elevados de pobreza (55%) em comparação com crianças brancas (32%). “A diferença deixa claro que investimentos públicos voltados para o desenvolvimento infantil devem priorizar negros e pardos”, afirma Irene Rizzini.

A pesquisa destaca ainda a questão da falta de saneamento básico. No Brasil, 46% da população infantil urbana vive sob essas condições e 95% da rural reside em domicílios onde o abastecimento de água e a coleta de esgoto não existem ou são precários – o que acarreta vários danos à saúde.

Dramas que a dona de casa Lucélia de Fátima Rosa Silva, de 23 anos, conhece bem. Mãe de quatro filhos com idade entre 6 meses e 9 anos, sobrevive com os R$ 150 que recebe do programa Bolsa Família, do Governo federal. O marido é servente de pedreiro mas, dependente químico, quase não coloca dinheiro em casa.

Eles moram em um barraco de dois cômodos às margens da linha férrea, na Vila Tiradentes, em Montes Claros. O telhado de amianto está quebrado e Lucélia não sabe o que fazer para cobrir o buraco antes das chuvas. A casa não tem piso de alvenaria e o banheiro está estragado. Sem cama, o filho mais velho dorme no chão, forrado apenas com um lençol.

A família passa por todo tipo de privação. Carne bovina, só há aos sábados. Nos outros dias, o cardápio tem arroz, feijão, verduras e macarrão, doados pelo Serviço Voluntário de Ação Social de Minas Gerais (Servas). O leite das crianças também é recebido por meio de um programa assistencial.

Sem estudo, a mulher que não consegue calcular sequer quanto ganha – “São três notas de R$ 50, o total eu não sei” – cursou apenas a 1ª série do Ensino Fundamental. Alega não poder voltar à sala de aula pois precisa cuidar dos filhos, e faz questão de ser protetora. Nem cogita a hipótese de perder a guarda das crianças.
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* Colaborou Girleno Alencar

http://www.hojeemdia.com.br/minas/miseria-condena-desenvolvimento-de-10-milh-es-de-criancas-1.322404

 

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