Memória: Morte e vida desaparecida

Em 1971, Rubens Paiva saiu de casa para prestar esclarecimentos no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Nunca mais voltou. Um livro e uma exposição resgatam sua memória e a história da repressão 40 anos depois do desaparecimento que simboliza como nenhum outro os abusos da ditadura militar brasileira

POR TADEU BREDA | foto: arquivo pessoal

No início da madrugada do dia 22 de janeiro de 1971, o telefone tocou na cabeceira da cama do médico Amílcar Lobo. Do outro lado da linha, um oficial do Destacamento de Operações e Informações (DOI) do Primeiro Exército, no Rio de Janeiro, exigia sua presença imediatamente. A missão era bem simples: verificar as condições de saúde de um prisioneiro e dizer se o interrogatório poderia continuar sem que o procedimento acabasse em tragédia.

“Ele era uma equimose só, estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés”, afirmaria o dr. Lobo à revista Veja dezessete anos mais tarde. “Ele havia sido torturado e, quando fui examiná-lo, verifiquei que seu abdômen estava endurecido. Suspeitei que teria havido uma ruptura do fígado ou do baço, pois elas provocam uma brutal hemorragia interna.”

A orientação do médico foi clara: “É melhor dar uma parada”, alertou. “Se ele não for para o hospital, vai ter poucas horas de vida.” Os torturadores não ouviram, e o diagnóstico se confirmaria ao amanhecer. “No mesmo dia, quando voltei ao quartel, um oficial me falou: aquele cara morreu.”

Eis um pouco do pouco que se sabe sobre o caso mais emblemático de desaparecimento político durante a ditadura militar brasileira. O cara que morreu – e cujo corpo jamais foi encontrado – era Rubens Paiva, empresário, engenheiro e ex-deputado federal, casado e pai de cinco filhos, rico e influente, mas que, apesar de todos os pesares, saiu de casa acompanhado por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) no dia 20 de janeiro de 1971 para prestar alguns esclarecimentos, coisa rápida, no quartel da Terceira Zona Aérea. Nunca mais voltou.

Em 2011, quando sua morte completa 40 anos de incertezas, as injustiças cometidas pelo regime militar contra milhares de brasileiros voltam a ganhar espaço na memória coletiva. Por dois motivos.

O primeiro deles é o lançamento do livro Segredo de Estado – O Desaparecimento de Rubens Paiva, publicado pela Editora Objetiva, até agora o material mais completo de que se tem notícia sobre o trágico fim de seu protagonista. O autor da façanha é Jason Tércio, um jornalista carioca que não conhecia Rubens Paiva pessoalmente nem era amigo da família, mas que escreveu o livro “com o coração e as entranhas, porque a história de Rubens Paiva é a história de algo recorrente na humanidade: a luta pela liberdade”.

Não faltou motivação, portanto, para que Tércio se debruçasse sobre qualquer pedaço de papel que, perdido nos escassos arquivos disponíveis em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, pudesse oferecer alguma pista sobre seu personagem. Nos quatro anos e meio que dedicou ao livro, num trabalho diário de pesquisa e sistematização, o autor também entrevistou a mais de 50 pessoas. E, quando sentou para escrevê-lo, lançou mão de recursos literários para “exprimir todo o conteúdo humano” presente nesta vida e morte desaparecida.

“Meu objetivo é contar quem foi Rubens Paiva e como tudo aconteceu”, define Jason Tércio. “Há partes no livro que são invenções, mas não no sentido de mentira, e sim no de recriação da realidade. Todos os fatos relacionados à prisão, interrogatório e morte de Rubens Paiva estão rigorosamente baseados em documentação, depoimentos e outras fontes de informação. Trata-se de um romance de não-ficção.”

Apesar de haver trabalhado duro para lançar Segredo de Estado, e ter conseguido produzir uma obra elogiada pela família e amigos do desaparecido, Tércio faz questão de frisar que seu livro não deve ser encarado como a versão definitiva do caso Rubens Paiva. “Todo livro revela uma verdade provisória”, sublinha. “A história está sendo permanentemente reescrita na medida em que novos documentos são encontrados e reinterpretados.”

Além da “narrativa de fricção” escrita pelo jornalista carioca, há também uma exposição sobre Rubens percorrendo o circuito cultural brasileiro. Não tens epitáfio pois és bandeira pendurou nas paredes do Memorial da Resistência de São Paulo uma série de imagens, documentos e informações sobre a vida, os ideais e o sumiço do ex-deputado – sem esquecer da luta da família Paiva para conhecer seu paradeiro.

“Rubens Paiva foi o único deputado federal eleito pelo voto e cassado pelos militares que desaparece durante o regime. E não some no fundo da floresta, como aconteceu com os guerrilheiros que combateram no Araguaia. Era um sujeito com vida legal, com escritório de engenharia, nascido numa família de posses e que, de repente, foi sequestrado por agentes da Aeronáutica dentro de casa”, avalia Vladimir Sacchetta, curador da mostra. “O Rubens puxa uma fila de 184 nomes de desaparecidos políticos no Brasil, número que pode ser ainda maior. E o sentido da exposição, ao mostrar a história desse desaparecido emblemático, é exatamente evocar a memória de todas as pessoas que caíram fazendo resistência à ditadura.”

Sacchetta conta que não teve grandes dificuldades em acessar o vasto material fotográfico que compõe Não tens epitáfio pois és bandeira. Por exemplo, as imagens de Rubens em casa e nos momentos de lazer, que dominam boa parte da exposição, estavam devidamente encaixotadas e guardadas no armário de seus herdeiros. Porém, sem a menor organização. “Passei muitos dias abrindo pastas e vendo fotos. O material estava disperso entre a família, mas houve uma disposição muito grande em me dar acesso a tudo”, revela o curador.

“O Vladimir ficou horas em casa infernizando minha vida e a do meu gato, vasculhando caixas e escaneando imagens que nem a gente sabia que existia”, confessa o escritor Marcelo Rubens Paiva, único varão entre as filhas de Rubens. Entre os tesouros da exposição, Marcelo destaca um cartão postal enviado à sua mãe, Eunice, pelo líder da Revolução Vietnamita, Ho Chi Minh. “Só depois fui saber que eles tinham se conhecido em Moscou”, explica.

O curador da mostra também tem sua preferida: uma carta escrita por Rubens do exílio, no final de 1964, e endereçada à sua extensa prole. “O envelope é de Londres, e ele se refere a um passeio que fez até Liverpool e começa a falar dos Beatles para as crianças. Ali dá pra ver que era um pai de família, um sujeito carinhoso com os filhos.” Sacchetta argumenta que os fragmentos da vida pessoal de Rubens ajudam a construir o perfil do homem público que foi, mas acredita que as informações mais importantes sobre o caso ainda estão por vir. “O interessante mesmo vai ser encontrar os papéis da repressão.”

Neste ponto, nem Vladimir Sacchetta nem Jason Tércio colheram bons resultados. Praticamente não há documentação oficial sobre o sequestro, prisão, tortura, morte e desaparecimento de Rubens Paiva. Por exemplo, os documentos do CISA recentemente desclassificados pela Aeronáutica não trazem uma linha sequer a respeito de sua prisão. E sua ficha no Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS), que atualmente se encontra no Arquivo Público do Estado de São Paulo, está quase vazia.

“Achei um único documento, de uma folha, com informações de um agente infiltrado nas manifestações pela nacionalização do petróleo, em 1954 e 1955”, revela o pesquisador. “A gente sabe que os papéis sobre os desaparecidos políticos foram limpos e filtrados. Não só desapareceram com os restos mortais, como também desapareceram com os documentos da repressão.”

Busca e apreensão

O dia 20 de janeiro de 1971 amanheceu com sol no Rio de Janeiro. O calor combinava muito bem com o feriado em louvor a São Sebastião, padroeiro da cidade. Rubens Paiva não era afeito a missas e, depois de dormir até mais tarde e bater papo com alguns amigos, estava prestes a pegar uma praia com a família. Então os militares tocaram a campainha, e a inesperada visita interrompeu não apenas o programa vespertino, como também o projeto de toda uma vida.

O fio que levou a repressão até o sobrado dos Paiva, no Leblon, começou a ser puxado bem longe da capital carioca. A embaixada brasileira no Chile seguira os passos de duas mulheres que haviam ido a Santiago visitar um exilado chamado Luiz Rodolfo. Uma delas era sua mãe, Cecília, professora de francês no tradicional Colégio Sion, do Rio; a outra, Marília, sua cunhada, que cursava a faculdade de Ciências Sociais.

Ambas foram monitoradas quando subiram no avião para voltar ao Brasil. Quando o Boeing da Varig proveniente de Santiago aterrissou no Aeroporto do Galeão, na noite de 19 de janeiro de 1971, agentes do CISA já estavam à espreita. As duas mulheres foram detidas antes mesmo de desembarcar. Os órgãos de inteligência haviam sido previamente informados de que traziam algumas cartas do país vizinho – e não tiveram dificuldade em localizá-las junto ao corpo das prisioneiras. Eram correspondências entregues pelos exilados no Chile, com a incumbência de serem distribuídas a seus destinatários no Brasil. Uma delas tinha um número de telefone.

Os militares exigiram que Cecília ligasse e pedisse o endereço de quem respondesse do outro lado da linha, sob o pretexto de levar o envelope. Ela ligou – e Rubens Paiva atendeu, repassando prontamente as informações. No dia seguinte, seis homens armados entrariam em sua casa, na rua Delfim Moreira, e não encontrariam qualquer resistência para levá-lo à Terceira Zona Aérea. Rubens trocou a bermuda pelo terno, disse aos filhos que surgira um compromisso de última hora, coisas de trabalho, e desapareceu pela porta da frente. Literalmente.

“Quando um membro da família desaparece, a gente fica numa situação muito difícil. Se decretamos luto, estamos matando a pessoa sem ter certeza de que ela realmente morreu. É muito complicado”, explica Vera Paiva, filha de Rubens, que, aos 17 anos, estava estudando na Inglaterra quando o pai foi levado pelos militares.

Crime e castigo

“Conheci o Rubens Paiva num congresso da União Estadual dos Estudantes (UEE) de São Paulo. Ele militava no Centro Acadêmico Horácio Lanes, do Mackenzie, e eu no XI de Agosto, do Largo São Francisco. Aí nos fizemos irmãos: a identidade entre nós, tanto ideológica como humana, foi instantânea e absoluta. Depois, entramos juntos para o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e demos à nossa luta uma outra dimensão”, analisa o advogado Almino Affonso, companheiro de aventuras políticas e parlamentares.

Assim como outros amigos e correligionários, Almino tem poucas dúvidas sobre as razões que levaram o empresário aos porões do CISA e, depois, do DOI naquela quarta-feira ensolarada. “Acredito que o Rubens ficou marcado devido ao seu trabalho na CPI do IBAD ainda quando era deputado.”

A Comissão Parlamentar de Inquérito que em 1963 investigou as atividades do Instituto Brasileiro de Ação Democrática foi um dos trabalhos mais importantes desempenhados por Rubens na Câmara dos Deputados. Segundo a pesquisadora Christiane Jalles de Paula, da Fundação Getúlio Vargas, o IBAD “foi fundado em maio de 1959 com o objetivo de combater o comunismo no Brasil e influir nos rumos do debate econômico, político e social do país.”

Com a participação de Rubens Paiva, a CPI acabou desvelando um intrincado esquema ilegal de financiamento de campanhas políticas com tintes golpistas, que beneficiavam opositores do governo João Goulart. Parlamentares considerados comunistas também eram alvo da azeitada máquina propagandística do IBAD, que chegou até mesmo a alugar o jornal carioca A Noite para incrementar a desmoralização dos adversários perante a opinião pública.

Uma das grandes descobertas da CPI foi a revelação de que boa parte da documentação do IBAD havia sido queimada nada mais iniciarem as investigações. “Mesmo assim”, continua a pesquisadora da FGV, “foi possível reconstruir parte da história e demonstrar, com base em abundante documentação, que o dinheiro do instituto provinha de várias firmas estrangeiras, na maioria norte-americanas.”

“O IBAD dizia defender os valores democráticos, mas não era mais do que uma corporação internacional com interesses muito bem definidos”, complementa Almino Affonso, que também integrou a Comissão Parlamentar de Inquérito. “Naquela CPI, Rubens Paiva lutou sua luta mais importante. Infelizmente, coube a ele comer o pedaço mais amargo do pão.”

Democracia tardia

Duas iniciativas em tramitação no Congresso Nacional podem acabar com o mistério envolvendo o desaparecimento de Rubens Paiva e demais desaparecidos políticos durante a ditadura militar. Uma delas já está pronta para votação no plenário da Câmara: é o Projeto de Lei 219/2003, proposto pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que prevê o fim do sigilo eterno a documentos públicos de qualquer natureza.

Se aprovado, o texto garantirá que nenhum papel fique longe do público por mais de 50 anos. Haverá três níveis de secretismo: os arquivos “reservados” poderão ficar apenas cinco anos inacessíveis aos cidadãos; os “secretos”, 15 anos; e os “ultrassecretos”, 25 anos, com a possibilidade de prorrogação por igual período. Atualmente, os órgãos públicos podem renovar indefinidamente o sigilo de seus documentos.

A votação mais esperada e controvertida, no entanto, é a do Projeto de Lei 7376/2010, que cria a Comissão Nacional da Verdade para examinar e esclarecer as “graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1964 e 1985, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

“A base do governo tem maioria para aprovar o texto, mas sua formação é bastante heterogênea. Alguns setores governistas têm origens no antigo Arena e outros partidos que apoiaram o regime, e podem se opor ao projeto”, explica o deputado Domingos Dutra (PT-MA). “O clima é favorável. O governo tem interesse prioritário na votação e outros países da América do Sul, como Chile e Argentina, já realizaram suas comissões da verdade. Vai depender muito da pressão social.”

O presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, explica que o Estado brasileiro já reconheceu os abusos do regime militar ao publicar, em 2007, um livro chamado Direito à Memória e à Verdade, em que ratifica sua responsabilidade pelos assassinatos e as ocultações de cadáver. “São mais de 500 casos entre mortos e desaparecidos no país. Seguimos realizando buscas nos cemitérios de Vila Formosa e Perus, em São Paulo, e também no Rio de Janeiro.”

Para Rose Nogueira, presidente da seção paulista do Grupo Tortura Nunca Mais, ela mesma vitimada pela crueldade dos porões da ditadura, a questão é muito simples. “Quando se muda o sistema de governo, devemos promover uma Justiça de transição para apurar o que aconteceu no regime anterior”, opina. “Não podemos aceitar a auto-anistia. Com a lei que temos, fica uma enorme sensação de impunidade.”

Publicado na Revista Adusp

http://www.latitudesul.org/2011/07/14/morte-e-vida-desaparecida/

 

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