“Quando falamos em assentamentos, temos que pensar não somente na produção agrícola, mas também na infraestrutura, na habitação, na escola e no lazer, na necessidade de políticas públicas integradas e mais amplas”. É nesse contexto que Milton Fornazieri, o Rascunho, presidente da Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária no Brasil (Concrab), coloca os desafios para a produção dos agricultores. Na entrevista, ele fala da necessidade e dificuldades das cooperativas, dos avanços e exemplos bem-sucedidos de comercialização de leite, arroz e agrocombustível. Mas destaca: a tarefa dos assentamentos é a produção de alimentos, e deve ser garantida a diversidade.
Quais as políticas públicas voltadas para a produção dos assentamentos?
Existe uma série de políticas públicas ou ações governamentais destinadas ao desenvolvimento dos assentamentos. Porém, existe uma dificuldade por parte do Estado na sua operacionalização. Quando falamos em assentamentos, temos que pensar não somente na produção agrícola, mas também na infraestrutura, na habitação, na escola e no lazer. Pois se alguns destes aspectos falharem, a família não vive como deveria ser. Fica num eterno improviso. Destacamos como as políticas públicas mais importantes para os assentamentos hoje o programa de assistência técnica; a comercialização; educação e formação; infraestrutura e políticas de crédito.
Em que sentido se deve pressionar o poder público?
Creio que hoje não existe um programa no governo que vise ao desenvolvimento dos assentamentos como um todo. Na maioria das vezes, se trabalha com ações isoladas, que têm pouco impacto na realidade dos assentamentos. Diante disso, devemos realizar uma ação forte, junto à assistência técnica. Houve um avanço com a nova lei de Ater, porém a sua operacionalidade é muito fraca. Depois de um ano e meio da assinatura da nova lei, ainda temos vários estados sem assistência técnica. Em alguns, como o Mato Grosso, são vários anos sem assistência. Concordamos que a assistência técnica tem que ser universal, ou seja, que todas as famílias assentadas possam ter acompanhamento técnico adequado e sem interrupção. Para garantir que o acompanhamento seja adequado, precisamos agir no sentido de disputar também o modelo de formação exigido para quem vem atuar junto aos assentamentos da Reforma Agrária. Os quadros técnicos que saem hoje das universidades foram formados dentro do pacote da chamada revolução verde. Em relação ao crédito, parece que ficou claro para setores dentro do governo que o Pronaf não é adequado à
realidade dos assentamentos. Pode ser que para a Agricultura Familiar ele consiga responder às necessidades das famílias. Mas precisamos construir um programa de crédito que seja adequado à realidade da família que é assentada, bem diferente do pequeno agricultor que depositou na sua pequena parcela de terra o trabalho de até 30 anos.
Quais as linhas para as cooperativas ligadas aos assentamentos?
Durante vários anos, tivemos muitas dificuldades para avançar na cooperação agrícola e consequentemente no cooperativismo. Foi um período longo, principalmente na segunda metade da década de 1990 até a metade da década passada. Neste período, tivemos várias cooperativas que acabaram parando suas atividades, por uma série de problemas, como a dificuldade de gestão, o problema da descapitalização, a falta de suporte por parte do governo em enfrentar as sucessivas crises econômicas e principalmente em querer copiar aquilo que as cooperativas ligadas ao agronegócio faziam. Este foi um erro estratégico: querer desenvolver a cooperação buscando competir com grandes empresas ou cooperativas capitalistas, em vez de fortalecer os cooperados e cooperadas. Creio que aprendemos com os erros e estamos retomando a cooperação, é claro, com muitas dificuldades, buscando construir cooperativas menores, porém mais sólidas, com linhas de produção bem definidas dentro dos assentamentos.
Como são essas linhas de produção?
Hoje, dentro dos assentamentos, consolidamos algumas linhas de produção que estão se expandindo. Destaco a produção de arroz orgânico no Rio Grande do Sul, que, em pouco mais de uma década, saiu de uma experiência de dois para mais de 3.500 hectares plantados nesta última safra, em que as famílias organizadas em grupos de produção e em cooperativas ajudam no controle da certificação.
O importante neste caso é que os assentados controlam todo o processo de produção, desde o plantio, passando pela colheita, armazenagem, beneficiamento e a comercialização. Outra linha de produção já consolidada nos assentamentos é a produção de leite, comum em quase todos os assentamentos, de norte a sul do Brasil. Dentro desta linha de produção, cada vez mais os assentamentos vão assumindo atividades que complementam a cadeia do leite, como o resfriamento e o beneficiamento.
Destacamos a experiência da Cooperoeste, que há mais de dez anos vem industrializando o leite de toda a região oeste de Santa Catarina, bem como recolhendo leite produzido no Rio Grande do Sul e no sudoeste do Paraná. Outra experiência importante vem do Nordeste, no Sergipe. Praticamente todo o leite adquirido pelo programa PAA Leite do governo federal vem de áreas de assentamento.
Estamos também inovando no processo produtivo do leite, produzindo um leite mais sadio através do Manejo Racional Voazin, técnica que utiliza de modo racional as pastagens existentes no assentamento. Nesse processo, as vacas consomem somente capim, o que leva a uma produção chamada de “leite verde”. É um processo que visa à produção orgânica do leite.
Além do arroz e do leite, o que você destaca nos assentamentos?
Outra cadeia que vem se estruturando, principalmente no Semi-árido é a produção de mamona e girassol, consorciado com a produção de alimentos, para a produção de biodiesel. Esta produção vem se estruturando em parceria com a Petrobio, e vem se ampliando nos estados nordestinos. A experiência começou na Bahia, Ceará e Norte de Minas.
Não podemos esquecer que a tarefa dos assentamentos é a produção de alimentos, primeiro para o autoconsumo e posteriormente para atender a população urbana. Por isso buscamos garantir a diversidade na produção, pois temos como princípio lutar contra a monocultura, seja em grande ou pequena escala, pois a monocultura não gera vida, apenas lucro.
Como estão as associações e cooperativas da Reforma Agrária hoje?
Acompanhamos mais de 100 cooperativas espalhadas nos assentamentos do Brasil. Estas cooperativas são muito diversas, algumas são integralmente coletivas, outras de prestação de serviços, outras organizadas a partir de agroindústrias. Todas elas exercem um papel importante para o desenvolvimento dos assentamentos.
Além das cooperativas existem muitas associações, que também contribuem no processo organizativo dos assentados, porém têm enfrentado limites, tanto de ordem jurídica como organizativa, mas cumprem uma função importante no processo. A formalização é secundária, o importante é que se realize a cooperação, superando assim o individualismo tão presente no meio rural. A tendência de criação de novas cooperativas se dá principalmente porque o Estado está organizado de forma que, para acessar políticas públicas, cada vez mais é necessária uma representação jurídica, e a cooperativa é nossa única saída. A necessidade pela formalização de cooperativas se dá para possibilitar a instalação de agroindústrias nos assentamentos e na comercialização através de mecanismos públicos, por exemplo.
Quais as políticas públicas – e os gargalos – para a comercialização de produtos da Reforma Agrária?
A história tem nos mostrado que em geral o pequeno agricultor domina bem o processo produtivo e historicamente sempre fez isso, deixando o processo da comercialização para o atravessador ou para as grandes cooperativas, deixando assim boa parte do ganho da produção para eles. Dentro dos assentamentos isso não é diferente. Muitas boas experiências de cooperação tiveram seu fim por não saberem lidar com o mercado. No início do governo Lula, começou um processo de aquisição de alimentos produzidos em áreas de assentamentos e da agricultura familiar camponesa.
O programa, conhecido como PAA, veio trazer segurança para camponeses inseridos no programa, pois era só produzir que o governo (via Companhia Nacional de Abastecimento – Conab) comprava. Isso faz uma diferença grande, pois ajuda a organizar a produção, gerando renda para as famílias. Com a experiência positiva do PAA, foi dado mais um passo no processo de comercialização. Em 2009 foi assinada a lei que diz que 30% da alimentação servida em todas as escolas do Brasil tem que vir da agricultura familiar, de agricultores e assentados da Reforma Agrária. Mas ainda há grandes gargalos destas duas importantes ferramentas de comercialização.
O primeiro é que, tanto no PAA como na Alimentação Escolar, um número bastante baixo de assentados tem acesso. Isso acontece por falta de informação e capacidade técnica de elaborar a Cédula do Produto Rural (CPRs), mas também e principalmente por falta de recursos. Estima-se que 60 mil famílias acessem o PAA, dentro das três modalidades.
Um segundo gargalo da comercialização está ligado ao problema do beneficiamento e da logística, principalmente na Alimentação Escolar, em que grande parte dos alimentos adquiridos necessita de um processo de beneficiamento. Hoje faltam muitas agroindústrias nos assentamentos, o que impede que mais famílias se beneficiem do programa. Por fim, temos o problema da logística. A maioria dos assentamentos é muito carente de transporte, e mais grave do que transporte é o problema do armazenamento. Seria necessário garantir centros de armazenagens e distribuição dos produtos, principalmente nos grandes centros urbanos, bem como em todas as cidades.
Qual a relação entre a produção dos assentamentos da Reforma Agrária e a Campanha contra o Uso dos Agrotóxicos?
Em alguns lugares, principalmente no centro-sul do Brasil, há uma adesão à produção de grãos, principalmente soja e milho, com o uso de agrotóxicos, seguindo o modelo imposto pelo agronegócio. Mas é justamente nesta região que vêm crescendo e fortalecendo duas grandes experiências de produção orgânica. A partir da prática, elas mostram que é possível produzir sem o uso de agrotóxicos. Refiro-me à Bionatur, que mostra como se pode produzir sementes orgânicas.
Além disso, temos a experiência do arroz orgânico da região da Grande Porto Alegre, que agora se expande para todos os assentamentos do estado que produzem arroz. Fico alegre quando prefeituras como Guarulhos e Santo André (estado de São Paulo) entre outras, decidem que todo o consumo de arroz consumido na alimentação escolar deve ser orgânico. Nosso desafio na luta contra os agrotóxicos é chegar até o mercado das cidades, ser uma opção para quem realmente quer deixar de consumir a sua cota diária de veneno, que hoje chega a mais de cinco litros de agrotóxico por pessoa por ano. Um outro caminho é trabalhar junto à assistência técnica para encontrar saídas alternativas para que as famílias de assentados que produzem através do uso de agrotóxicos possam passar por uma transição de matriz tecnológica para um processo alternativo, diminuindo gradativamente o uso dos agrotóxicos. A produção agroecológica dos assentamentos, tendo condições de chegar até as cidades, poderia ser uma alternativa aos alimentos envenenados.
http://www.mst.org.br/Precisamos-de-cooperativas-mais-solidas-afirma-presidente-da-Concrab