“Eu planto milho, feijão, hortaliças em geral, girassol. Numa época você planta beterraba, na outra você para de plantar beterraba e planta hortaliças. A gente troca por causa da terra, mas também porque é bom trocar, é outra cultura, é diferente. E como a gente trabalha em grupo, às vezes a outra companheira quer plantar aquele alimento. Eu só não abro mão nunca de plantar feijão, porque acho o feijão bonito. Dá lucro, eu gosto de comer e de vender”.
O depoimento é da agricultora agroecológica Emília de Fátima, que mora e trabalha em uma propriedade rural de sete hectares na comunidade Fundo do Campo, no município de Otacílio Costa, em Santa Catarina. Ela faz parte da Associação das Famílias Agroecológicos de Otacílio Costa (Asfaoc), formada majoritariamente por mulheres. Fátima, como é mais conhecida, participou, nos dias 17 e 18 de novembro, da Oficina Territorial de Agroecologia do Planalto Serrano de Santa Catarina, onde agricultores familiares da região trocaram experiências e principais desafios da prática da agroecologia.
Para além da não utilização de venenos químicos e industrializados, geralmente ministrados na maior parte das práticas agrícolas, as palavras de Fátima revelam algumas outras características do modo de produzir agroecológico: a diversificação da produção, o trabalho em grupo e a discussão da soberania alimentar. O engenheiro agrônomo e pedagogo Natal Magnanti, do conselho de administração da cooperativa ecológica Ecosserra e do Centro Vianei de Educação Popular, explica que sem organização entre os trabalhadores rurais a agroecologia não sobrevive. “A organização é um pilar da agroecologia. Normalmente, se há agricultores desorganizados em alguma região, o processo não anda. É quase uma condição sine qua non para que o processo de transição para a agroecologia e consolidação seja efetivado”, diz.
Em Otacílio Costa, as agricultoras organizam coletivamente uma feira agroecológica. “Nós nos reunimos devido à necessidade de comercializar, porque eu sozinha na conseguiria fazer feira. Então eu planto algumas coisas e as vizinhas outras, porque na feira precisa ter de tudo”, relata Fátima. Ela conta que a feira é realizada quinzentalmente durante o inverno e semanalmente no verão, e a associação tem uma Kombi que leva os produtos e as trabalhadoras para o município. A cada dia de feira vão cerca de três trabalhadoras que vendem a produção de todas.
O agricultor Nilson Ribeiro, do município de Anita Garibaldi, também em Santa Catarina, concorda que sem organização os trabalhadores rurais não conseguem ir muito longe. “Individualmente você não consegue quase nada. Então, o trabalhador precisa se organizar em grupos e associações – o cooperativismo é a melhor saída. Eu não vejo outra forma de a agricultura familiar dar certo neste país se não for com organização”, opina.
Circuitos curtos
O engenheiro agrônomo Natal detalha que, no caso de Santa Catarina, a agroecologia privilegia os circuitos curtos e médios de comercialização dos produtos, justamente com a organização de feiras locais e regionais e outras formas de distribuição local. Segundo ele, é difícil para os trabalhadores agroecológicos distribuir os produtos para supermercados, por exemplo. “As redes de supermercado e os Ceasa não estão (acho que falta uma palavra) para a agricultura familiar, estes espaços têm dificuldade de entender o fluxo e a descontinuidade de produção e isso prejudica ainda mais o pessoal da agroecologia, que tem como princípio entender a sazonalidade da produção. Esses atacados querem produtos o ano inteiro, e os mesmos produtos”, explica.
Com a distribuição em circuitos curtos e médios, a agroecologia tem também outros objetivos, como garantir a qualidade dos alimentos, já que viagens longas danificam os produtos. Além disso, a venda local proporciona uma renda mais rápida para o trabalhador. “A maioria dos nossos grupos já tem uma feira no município. Este mercado local dá um retorno imediato para o agricultor e isso faz com que circule dinheiro rapidamente dentro da propriedade familiar. Uma vez, por exemplo, quando privilegiamos um circuito muito longo, só recebemos após 120 dias, e isso significa que o agricultor tem que ir a um banco para ter fluxo financeiro girando na própria propriedade”, diz Natal.
Formação dos trabalhadores
Para o agrônomo, um grande desafio da agroecologia é a formação dos trabalhadores rurais. “A grande maioria dos agricultores, de uma forma geral, se especializou ao longo do tempo. Decidem, por exemplo: ‘vou produzir apenas leite’. Aí pensam que, só com a renda do leite, manterão uma propriedade em pé, e isso não existe. Para fazer uma transição para a agroecologia é preciso fazer a discussão de que não é possível produzir apenas leite: é preciso integrar a produção animal com a produção vegetal, além de ter alguma produção de horticultura na propriedade para dar suporte ao longo do ano”, comenta.
Natal diz que no caso de produtores que se especializam em apenas uma cultura, como milho ou feijão, por exemplo, é mais difícil fazer a transição para a agroecologia, mas, com a formação dos trabalhadores, isso é possível. “A maioria perdeu o contato com a produção de frutas, hortaliças e a própria produção animal ficou esquecida dentro da propriedade”, aponta.
Fátima relata como a transição para a agroecologia e a organização coletiva junto às outras mulheres mudou a rotina da propriedade rural onde mora: “Antes plantávamos uma vez ao ano, e ficávamos o resto do tempo ao deus dará, não tínhamos sequer uma salada para comer. O pessoal estava bem desmotivado. E moramos a 32 quilômetros do supermercado mais próximo”, diz. A agricultora conta que em muitas famílias os homens estão empregados em empresas da região, inclusive na monocultura de pinus (produção de madeira). Assim, foram as mulheres que protagonizaram a organização da produção agroecológica e hoje coordenam os trabalhos da associação. “Hoje eu faço aquilo que eu gosto, acordo cedo, tiro o leite. Se saio para uma reunião, quando volto tenho trabalho dobrado. A minha filha, que fica em casa, me ajuda também, porque quem tem uma propriedade tem trabalho todo dia. Tem que tirar o leite todo dia, alimentar as galinhas todo dia, colocar água. Quando uma sai, a outra segura as pontas”, detalha.
A agricultora conta, com orgulho, que com o dinheiro da feira agroecológica conseguiu pagar a faculdade de pedagogia de uma das filhas. “Meu sonho é que ela volte a trabalhar na comunidade, que ensine para os alunos dela aquilo que ela aprendeu em casa e que continue aquela vida do sítio, de campo, que não é vida ruim, nem triste”. Ela aconselha todos os agricultores familiares do país: “Que todos façam a adesão à agroecologia, que diversifica a produção e é sustentável, que não seja mais aquela agricultura onde se produz muito, mas gasta-se muito mais ainda. Quando se trabalha na agroecologia é sempre na perspectiva da economia, de usar o que existe na propriedade, de manejar os sistemas agroflorestais, de cuidar das Áreas de Preservação Ambiental, de perceber que se pode ter a renda de várias coisas. Por exemplo, aqui fazemos dinheiro vendendo o pinhão que é o fruto da Araucária [árvore nativa], e muita gente acha que tem que cortar a Araucária. Com o pinhão fazemos farinha e paçoca para comer com carne de porco, e engordamos os porquinhos também”.
Oficina territorial
A oficina territorial de agroecologia do Planalto Serrano Catarinense, realizada em Lages (SC), durantes os dias 16 e 17 de novembro, fez parte de um conjunto de eventos regionais organizadas por redes de agroecologia locais em parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). No caso do Planalto Serrano Catarinense, a oficina foi organizada localmente pela Cooperativa Ecológica dos Agricultores Artesãos e Consumidores da Região Serrana (Ecoserra), pelo Centro Vianei de Educação Popular e por várias associações de agricultores familiares. Participaram cerca de 100 agricultores. No mês de outubro, outra oficina foi realizada na Serra da Borborema, no Agreste da Paraíba. Está previsto também outro evento no mesmo formato no norte de Minas Gerais.
As oficinas antecendem o Encontro Nacional de Diálogo e Convergência: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar e Economia Solidária, que será realizado no primeiro semestre de 2011, em Salvador, na Bahia. O encontro está sendo organizado por diversas redes, movimentos sociais e entidades relacionadas à agricultura, saúde, meio ambiente, gênero e economia solidária. Entre os objetivos estão a ampliação da articulação entre os diversos atores da agroecologia e a elaboração de propostas a serem apresentadas ao governo federal de fortalecimento da agricultura camponesa e da prática agroecológica no país.
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