Ao final da derrota do Brasil para a Holanda nas quartas de final da Copa do Mundo o presidente Lula mandou avisar que estava triste, mas “ficou pior quando viu a situação em Alagoas e Pernambuco, atingidos pelas chuvas”. De fato, nas últimas semanas, mesmo com a bola rolando na África do Sul, o País acompanhou chocado a tragédia das enchentes que mataram pelo menos 51 pessoas e deixaram cidades inteiras arrasadas no Nordeste. Calamidade que, no entanto, sugere a urbanista Fátima Ribeiro de Gusmão Furtado, coordenadora do Laboratório de Estudos Periurbanos (Lepur), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), incomoda politicamente menos do que parece prefeitos e governadores das áreas afetadas.
É no contexto de calamidade pública que “as autoridades locais dizem precisar de apoio e ganham visibilidade para a sua demanda”, alerta a professora, que fez doutorado na Universidade de Londres em 1996. Uma demanda expressa em verbas federais sem licitação. Entretanto, para essa paraibana de 53 anos, criada no Recife, “o problema é mais de gestão que de obra”. No caso, o planejamento necessário do homem para enfrentar as chuvas que São Pedro manda todos os anos – e cada vez mais fortes.
Na entrevista a seguir, Fátima Furtado diz que o flagelo das águas que atinge hoje a região historicamente conhecida pelas secas poderia ter sido evitado, com obras básicas de saneamento, um controle mais rigoroso das encostas e uma administração responsável das bacias hidrográficas.
O que a tragédia das enchentes em Pernambuco e Alagoas revela sobre o desenvolvimento urbano dessas regiões?
Muita coisa. E a mim, pessoalmente, não surpreende que tenha ocorrido. Foi inusitado apenas pela violência da enxurrada. Mas o fenômeno das enchentes, conhecido nas cidades que são cortadas por rios, passa a ser trágico por conta da má qualidade da gestão das áreas ribeirinhas e de outros serviços infraestruturais das cidades.
A que tipo de problema a sra. se refere?
A questão principal é o uso do solo nas margens dos rios e nas encostas. A Zona da Mata, tanto de Alagoas como de Pernambuco, é uma área de muitas chuvas, de precipitações fortes que às vezes se concentram em um espaço de tempo menor, causando inundações. Mas seus efeitos são maximizados por problemas evidentes de gestão das cidades: se você não controla a construção de moradias nessas áreas, se não cuida da conservação da cobertura vegetal ou permite o acúmulo de lixo, por exemplo.
Falou-se muito nas barragens que transbordaram, intensificando a força das águas. Foi um fator determinante?
Ainda se procura saber qual foi o papel dessas barragens na tragédia. Mas não vejo grande relação. Recife é uma cidade que fica na foz de um rio e sofreu com inundações seriíssimas durante anos, até a construção de barragens que diminuíram a vulnerabilidade da cidade. O que chama a atenção agora é a quantidade de barragens e de pontes destruídas. Claro que isso fala da violência e do volume das águas, mas também leva a questionar a qualidade dessas obras de engenharia. Mais de cem pontes arrastadas? Começo a desconfiar… É preciso avaliar como foram projetadas essas obras, se elas previam esse tipo de situação ou se o problema foi de má conservação.
A sra. tem um trabalho dedicado aos resíduos urbanos. A questão do lixo teve influência na extensão dos estragos?
Sim. Houve claramente, nessas áreas ribeirinhas, um problema de má gestão de resíduos municipais. O lixo, quando não bem coletado, é jogado nas encostas, escadarias e canaletas – até porque a coleta em áreas muito inclinadas tende a ser bastante precária. E esse lixo é prejudicial de duas maneiras: mata a cobertura vegetal que segura o solo e, principalmente quando molhado, coloca muito peso na encosta. Por isso, tende a provocar deslizamentos que de outra forma não ocorreriam.
Quais são as grandes obras estruturais de que o Nordeste necessita para fomentar seu desenvolvimento urbano?
Eu não diria que são grandes obras, mas obras básicas de saneamento: esgotamento sanitário, coleta de lixo, abastecimento e drenagem de águas pluviais. Desses quatro serviços fundamentais, o abastecimento d’água é o que temos em melhor situação hoje. Em termos de prioridade, colocaria primeiro o esgotamento sanitário e a drenagem, seguidas de perto pela coleta de lixo.
Há quem critique uma certa cultura clientelista nessas cidades, que tendem a aguardar a ‘verba federal’ em vez de tomar iniciativas para o desenvolvimento urbano. Certamente. A Constituição determina quais são as competências de cada ente federativo. A questão da drenagem e da limpeza urbana são de responsabilidade municipal. Já o abastecimento d’água varia – aqui no Nordeste tende a ser feito pelo governo estadual. Já as grandes obras estruturais e a política habitacional, por exemplo, ficariam a cargo do governo federal. É preciso uma postura mais proativa de todas essas instâncias e não ficar passivamente aguardando que chovam verbas federais. O Ministério das Cidades tem políticas públicas e, no caso de situações extremas como a que atingiu o Nordeste agora, também foi feito um plano federal de prevenção de inundações. Mas o problema é mais de gestão do que de obra. Por quê?
Primeiro, não adianta fazer as obras se elas não forem bem conservadas. Precisamos criar a cultura da conservação nas cidades e nos Estados. Manter obras não traz vantagem nenhuma, pouquíssima visibilidade. Então os governos constroem e deixam acabar. Uma gestão melhor viria evitar o custo da eterna reconstrução de obras. E ter uma política habitacional vinculada à gestão do solo: qualquer financiamento deveria estar condicionado ao plano diretor das cidades. Não basta dizer que falta fiscalização para retirar a população que vive em áreas de risco. É preciso dar alternativas razoáveis para que elas os desocupem. E outra questão que precisa ser levantada neste momento é a dos comitês de bacia: os rios são vasos comunicantes e precisam ser gerenciados em conjunto. Temos uma boa legislação a respeito, mas há bacias no Nordeste sem nenhum comitê para controlá-las. Repito: a gestão das cidades e das bacias hidrográficas tem peso maior no que está ocorrendo hoje do que a falta de obras de infraestrutura ou uma suposta mudança climática inesperada.
Quando uma catástrofe como essa acontece, a pressão política sobre as administrações aumenta?
Na verdade, não. Essa situação é uma tragédia e uma tristeza para as populações, mas para as administrações, nem tanto. Primeiro, porque é fácil dizer que “a culpa é de São Pedro, que mandou chuva demais”. Segundo, as autoridades locais dizem que precisam urgentemente de apoio e ganham visibilidade para sua demanda. E, quando a verba federal chega, sem licitação, em caráter de urgência – declara-se logo que é calamidade pública – isso pode ter grandes vantagens políticas. A situação só vai se reverter quando as populações locais tiverem instrumentos e consciência política para responsabilizar as autoridades.
Nem em ano eleitoral isso melhora?
Eventos com essa gravidade têm uma repercussão grande nas comunidades e, em ano eleitoral, é claro que as sensibilidades ao clamor popular são maiores. O que me preocupa mais é o momento fora do período eleitoral, em que os administradores não são instados a tomar as medidas de prevenção que poderiam evitar esse tipo de catástrofe. A inação política em tempo de calmaria é a mais danosa.
As imagens do presidente Lula sobrevoando a região e sendo recebido como o homem providencial a socorrer o povo nordestino correram o País. Como evitar a utilização política desses flagelos?
O que existe hoje em termos de representação política no País não estimula a criação de canais para que a população possa se manifestar ou fiscalizar os recursos em um momento de urgência como esse. Tampouco existe uma cultura do cidadão nordestino cotidianamente se envolver com a gestão da cidade onde vive. A necessidade de gestão de seus próprios problemas é tão grande que ele termina por não participar. Se você pega o plano de prevenção de inundações do governo federal vai ver que, do recurso orçado originalmente, o que foi efetivamente usado é irrisório. O orçamento fala de uma disponibilização de recursos, mas uma parte ínfima é executada – às vezes menos de 10%. Além disso, a distribuição desses recursos é concentrada em certos Estados segundo parâmetros políticos – deixando de lado justamente aqueles que qualquer estudioso do assunto aponta como mais problemáticos.
Se o regime de chuvas está efetivamente mudando no Nordeste, já existem fóruns de discussão para o problema urbano nesse novo contexto?
A questão do clima, que estamos discutindo tanto dentro do Lepur como em outros fóruns acadêmicos e do governo, ainda se dá muito no nível das intenções e de propostas de mudança para a legislação. Em termos de ações efetivas, é muito pouco. Há variáveis demais envolvidas no debate, que mudam da Zona da Mata para o agreste, de uma cidade grande para uma pequena. Então, precisam ser tratadas no varejo, daí a dificuldade. A gente sente, até o cidadão comum percebe, que esse regime de chuvas está mudando. Mas o que isso significa em termos práticos na gestão das cidades? Para começar, as escalas são muito diferentes: quando os climatologistas falam no médio prazo estão pensando em 300 anos. Para a gestão de cidades, médio prazo é a metade de um mandato, dois anos. Há uma discrepância também entre as informações climáticas regionais, referindo-se, por exemplo, à América do Sul, e sua tradução, digamos, no clima do Recife ou de Maceió. Esse esforço de compreensão das consequências locais dos fenômenos globais ainda está engatinhando, embora seja premente: vamos ter que acelerá-lo porque a natureza vai obrigar.
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