Tragédia e resistência Guarani

Egon Dionísio Heck *

Adital – Essa semana, a visita a comunidades Guarani Kaiowá revelaram alguns fatos que poderiam parecer hilários, se não fossem trágicos e reveladores da situação de extremo sofrimento e luta em que se  encontra esse povo.

Destrocando – corpos e papeis

Dona Marcilene, mãe de Júnior (aquele de – a morte no caminho da cana), tiverem que ir na delegacia de policia para acertar os papeis.

-Eu sou Martinho. Aqui está papel dizendo que estou morto. Mas aqui estou eu pra dizer que estou vivo. Sou Martinho Romero Lescano.

Mas como assim, diz o delegado.

Marcilene começa explicar calmamente todo o acontecido para que cada qual fique com seus devidos papeis – o vivo de vivo e o morto de morto.

O policial olha atenta e demoradamente para o CPF 032.028.391-02. Depois pega a carteira de trabalho 015149. A mãe também entrega a certidão de nascimento de Junior Gonçalves da Rocha. O delegado lentamente desliza os olhos sobre os documentos. Depois olha para as personagens à sua frente. Busca ter uma correta compreensão do acontecido, e de sua missão colocar as coisas, ou melhor, vivos e defuntos nos seus devidos lugares.

Ao nos narrar o fato Marcilene se emociona e chora. “Ele veio aqui bêbado para levar meu filho que não voltou nunca mais com vida”. Embaixo de uma touceira de bambu ela faz o relato do trágico acontecido, mas do qual a única informação certa que ela tem é de que o filho saiu da aldeia vivo e menos de 24 horas depois recebeu o corpo com um afundamento na cabeça. Olho o atestado de óbito. Ali os itens todos estão preenchidos. Mas revelam apenas parte da realidade. Ou quiçá encobrem até falsidades. A causa mortis diz – traumatismo crânio encefálico.  Acidente de transito.  Nos colocamos a pensar juntos o que poderia ter acontecido. O lugar indicado da morte é o km 161 da BR 164. Seu Haroldo, sentado ao nosso lado diz conhecer bem o local, pois trabalhou 10 anos no corte de cana na Usina Santa Olinda. “É uma reta muito grande numa baixada”. Até aí tudo bem. Mas o que teria acontecido nesse local. Apesar de todo nosso esforço ficou muito difícil imaginar qualquer acontecimento naquele cenário.

O fato é que Junior saiu da aldeia Passo Piraju no dia 19 de junho vivo e seu corpo foi trazido por um carro de funerária de Sidrolância às três horas do dia seguinte. A mãe chora a perda do filho e o total ocultamento do que teria acontecido com ele. E Martinho, que tem atestado de que está morto, quer recobrar sua situação de que está vivo, pois foi com esse documento  que Junior fora trabalhar no corte de cana. Tomara  que a burocracia não emperre muito para não causar constrangimentos de ter que explicar, que quem morto declarado está. Vivamente tem que se justificar.

Sem documento índio vira indigente (ou inexistente!)

Quando chegamos no acampamento do km 40 da BR 162, juntamente com os Guarani Farid e seu Nelson. A conversa rolou animada. São tudo meio parente. Seu Nelson até descobriu que em tempos passados alguns deles viviam no tekohá Carumbé, para onde pretendem voltar algum dia. Lá pelas tantas Joana começa revelar uma preocupação com o corpo do Antenor, irmão da anciã do grupo, dona Isaura. Tentei entender o acontecido. Lentamente vão relatando que houve um estranhamento entre os dois irmãos, depois de terem bebido muito e que o Luiz deu umas facadas no Antenor, matando-o. O corpo de Antenor da Silva está no IML de Sidrolandia há cinco dias. Tem prazo até sexta feira para retirar o corpo, se não vai ser enterrado como indigente. E quanto a Luiz que também estava ferido, dizem não ter notícia. O fato é que a polícia veio ali na comunidade recolhe-lo e não sabem onde está. Provavelmente esteja no presídio de Dourados ou “morto a beira da estrada feito cachorro porque não tem documento”, segundo a fala de seu Clesio uma das lideranças da comunidade. Já Antenor, em seus mais de cinquenta anos peregrinando por essas terras sul mato-grossenses serão anulados, e para todos os efeitos ele nunca terá existido (talvez esse seja um dos poucos registros que testemunharão de que um dia um índio Guarani de nome Antenor da Silva, irmão e vítima de Luis da Silva,com o mesmo nome do presidente da República, mas com um destino bem diferente!). Caso a FUNAI não faça chegar uma certidão de nascimento de Antenor até amanhã, ele provavelmente será enterrado como alguém sem documento, sem nome oficial, na vala comum dos que viveram sem terem existido, legalmente.

Vou à Funasa, a pedido dos familiares solicitar a remoção do corpo de seu Antenor. Lia, a funcionária, empenha-se em saber dos fatos. Ligou para o pólo de Sidrolância, onde lhe confirmam que o corpo está lá, e crescente – disseram que está feio. Todo desfigurado. Parece que parte de seu rosto teria sido comido por um cachorro. Mas diz que nada pode fazer para atender ao pedido de remoção pois ele não possui documento algum. Será preciso que a FUNAI envie para a Funasa uma certidão de nascimento. Só então poderão fazer a remoção do corpo para Rio Brilhante, conforme vontade dos familiares. Isso tudo até amanhã. Caso contrário o chara Guarani do presidente da república continuará preso e o irmão será enterrado como indigente.

Ossos e luta

No outro acampamento indígena de Laranjal Takuaju, próximo à cidade de Jardim, seu Francisco nos leva ao local em que sua irmã foi queimada, juntamente com a casa, pelos fazendeiros. Os testemunhos são os tocos de esteios carbonizados e os restos de carvão indicando a queima no local. Seu Francisco se abaixa reverentemente, levanta uma rústica caixa. Depois levanta uma caixinha de madeira, nela põem a mão e mostra – “aqui estão os ossos de minha irmão, que morreu queimada nas mãos dos fazendeiros…Aqui venho perder minhas lágrimas todas as manhãs.  Mataram ela. Nos expulsaram da terra. É por isso que estamos lutando. Por terra e justiça.”

Francisco, o líder de um grupo de famílias Guarani Kaiowá, acampadas, está indignado com o descaso com que são tratados por praticamente todos os órgãos oficiais e por não terem até o momento percebido nenhum empenho dos Grupos de Trabalho da FUNAI em identificar seu tekohá para que possam sair dessa penosa situação – no corredor da estrada, do sofrimento e morte, o quanto antes. Apela a todas as pessoas de boa vontade no Brasil e no mundo, para que exigem o cumprimento da Constituição do país e legislação internacional, que garantem as terras a seus habitantes primeiros, originários, indígenas, Kaiowá Guarani.

Povo Guarani Grande Povo – Dourados, 1 de julho de 2010

* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=49100

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