A campanha Justiça nos Trilhos está entre os formuladores e promotores do I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale.
Desde o começo de 2009, durante e logo após o Fórum Social Mundial de Belém, sentiu-se a necessidade de um encontro internacional exclusivamente focado sobre a Vale e seus impactos socioambientais em várias regiões do mundo.
As injustiças evidentes narradas por muitas comunidades no Brasil e afora, o modelo de desenvolvimento agressivo e os enormes lucros da companhia mineradora tornavam urgente uma construção de estratégias coletivas de resistência e alternativas.
Como missionários combonianos, sentimo-nos interpelados diretamente: cabia a nós ajudar o povo que acompanhamos, em Açailândia, São Luís e vários povoados ao longo da Estrada de Ferro Carajás, a compreender a história e as causas das condições degradadas de suas vidas.
Ao anunciar e construir vida em abundância, é sempre necessário denunciar e destruir modelos que, ao contrário, trazem morte por causa de uma busca irresponsável e desmedida do lucro.
Abençoados e encorajados pela Campanha da Fraternidade de 2010, que nos estimula a estudar as injustiças econômicas mais evidentes e contrapor experiências de economia popular descentralizada, respeitosa da vida e do meio ambiente, assumimos com entusiasmo a organização dessa nova etapa de enfrentamento da Vale: sonhamos, com Deus, um novo jeito de relacionar-se com a terra, os recursos naturais e a criação inteira.
Justiça nos Trilhos desde o começo envolveu toda nossa província Brasil Nordeste, que a apóia e nela se identifica; mais uma vez, nesse caso, houve a participação de vários combonianos, em diferentes iniciativas preparatórias.
Foi redigida uma revista, com o título “Não Vale”, contendo vários artigos bem fundamentados a respeito das mazelas da companhia, especialmente no corredor de Carajás. A revista suporta e complementa o trabalho artístico de um conhecido diretor cinematográfico italiano, Silvestro Montanaro, que realizou durante os últimos meses um filme de 75 minutos sobre os maiores conflitos e resistências populares ao longo do mesmo corredor.
Filme e revista serão divulgados em breve nas comunidades atingidas, em ocasião de lançamentos e seminários de formação tanto no Pará como no Maranhão. Os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e outros parceiros internacionais já receberam esse material, útil para a formação de suas comunidades e lideranças.
Tudo, enfim, estava pronto para a realização do encontro internacional dos atingidos; o evento foi precedido, de 5 a 11 de abril, pela Caravana dos Povos no sistema norte da Vale.
Em parceria com comunidades, movimentos e sindicatos de Pará e Maranhão, foram preparadas três etapas, prontas a acolher um público de vários países do mundo.
Trinta pessoas alcançaram, assim, Barcarena (PA), Marabá (PA) e Açailândia (MA) e realizaram um intercâmbio precioso entre comunidades atingidas de várias regiões do planeta. Era gente do Pará, Maranhão, Ceará, Rio de Janeiro, Brasília, Argentina, Chile, Peru, Canadá e Moçambique.
Puderam encontrar comunidades rurais e urbanas, associações de moradores, movimentos, comunidades cristãs, políticos, promotores de justiça, jornalistas, sindicatos, movimentos de defesa dos direitos humanos, atores, famílias, jovens, mulheres…
É impossível resumir em poucas linhas a riqueza desses encontros (encontra-se algo a mais nos blogs que acompanharam o evento). Podemos resgatar, simplesmente, a dinâmica de enriquecimento recíproco que permitiu aos membros locais e internacionais de ‘espelhar-se’ uns nos outros. Evidenciaram-se, em todo lugar, sempre as mesmas estratégias da empresa: a conquista do território, o marketing para defender uma imagem socialmente e ambientalmente responsável, a cooptação do poder político e judiciário; em relação às lideranças, a tendência a aliciar, negociar isoladamente para dividir as comunidades, ameaçar ou criminalizar, conforme o nível de organização e enfrentamento dos grupos locais.
Também apareceram interessantes respostas de resistência popular: o esforço de dar visibilidade ao conflito (publicações, relatórios, dossiês), as ações diretas de oposição à agressividade da empresa (ocupar terras, fechar estradas, manifestar), as ações judiciais pedindo indenização ou compensação ambiental, a produção de conhecimento juntando o saber local e a pesquisa universitária, a articulação em redes (internacionais, nacionais, regionais), o envolvimento de atores e parceiros chave, especialmente no plano legislativo.
Nos dias seguintes, de 12 a 15 de abril, a caravana norte encontrou-se com outra caravana, vindo do sistema sul da Vale (Minas Gerais e Espírito Santo), além de várias outras pessoas todas convergindo no Rio de Janeiro, onde existe a sede da Vale e onde, todo mês de abril, a Vale convoca seus acionistas para a assembléia anual.
Reuniram-se 160 pessoas, de 80 associações e entidades diferentes, representando 12 países. Ocasião única: pela primeira vez os povos atingidos e as lideranças que os acompanham fizeram o esforço de sistematizar suas lutas e aprender uns com os outros.
Foram quatro dias intensos, principalmente de estudo e aprimoramento das estratégias coletivas. Destacaram-se várias áreas de conflito: modelo de desenvolvimento e saque dos recursos, conflitos ambientais e poluição, conflitos trabalhistas e resistências sindicais, conflitos com as comunidades e pela terra, conflitos econômicos e desequilíbrios por lucros desmedidos (a Vale é a maior empresa da América Latina e a mais rentável do mundo!)
Os encaminhamentos maiores tiveram a ver com a crítica à imagem socialmente solidária e ambientalmente responsável da Vale: os atingidos assumiram o compromisso de desmontar sistematicamente esse quadro, mostrando e divulgando os impactos de que são vítimas. Um dossiê detalhado, com 120 páginas e 21 casos específicos foi lançado na assembléia legislativa do Rio de Janeiro, entregue à imprensa e à assembléia dos acionistas.
Um movimento internacional assumiu o compromisso de produzir constantemente um relatório alternativo, apontando as omissões do Relatório Anual de Sustentabilidade da própria empresa. A partir disso, deslancham-se novas dinâmicas de denúncia, conscientização das comunidades, reivindicações dos próprios direitos e construção de formas mais sustentáveis de economia e desenvolvimento local.
Justiça nos Trilhos volta agora a trabalhar nas regiões norte e nordeste do Brasil, fortalecida porém por alianças nacionais e internacionais que garantem apoio e solidez à ação de defesa das comunidades locais.
Como missionários, sentimo-nos chamados a avançar nessa fronteira inédita de diálogo entre a igreja, as comunidades e os movimentos sociais para a preservação da vida, da dignidade e dos territórios.
Intuímos, também, novas potencialidades e alianças entre comunidades e províncias missionárias onde se encontram os mesmos conflitos por mineração e saque dos recursos naturais: Moçambique, Chile, Peru, Equador…
Será que os sinais dos tempos estejam provocando nossa sensibilidade para com o cuidado ambiental e o respeito dos mais pobres a avançar até águas mais profundas?
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=47236