Comissão vai apurar conflitos na Chapada do Apodi

A morte do líder comunitário José Maria Filho acirra contexto de conflitos ambientais na Chapada do Apodi

O líder comunitário, José Maria Filho, denunciou problemas socioambientais e econômicos que vitimam trabalhadores na Chapada do Apodi. Morreu no Dia Mundial da Terra MELQUÍADES JÚNIOR
O líder comunitário, José Maria Filho, denunciou problemas socioambientais e econômicos que vitimam trabalhadores na Chapada do Apodi. Morreu no Dia Mundial da Terra / MELQUÍADES JÚNIOR

Limoeiro do Norte. O que para uns é oásis agrícola e econômico é, mais ainda, uma ilha de conflitos sociais, econômicos, culturais e políticos. A Chapada do Apodi, entre os municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré, assume contornos mais questionadores após o assassinato, anteontem, do principal líder comunitário, José Maria Filho, do Tomé, uma das várias localidades que existem nesse relevo geográfico e palco de uma série de denúncias que vão da contaminação por agrotóxicos à falta de demarcação de terras, todas publicadas com exclusividade pelo Diário do Nordeste. Com as denúncias, vários órgãos, dentre os quais, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), Procuradoria da República, Ministério Público, Justiça Federal e, principalmente, universidades e movimentos sociais, debruçaram-se sobre o tema. De mais recente, a confirmação da criação de Comissão Permanente com várias entidades para tratar, exclusivamente, dos problemas na Chapada do Apodi.

Apesar das poucas informações que diz dispor, a Polícia Civil está investigando a morte do líder comunitário José Maria Filho, um dos principais ativistas da região. Sua morte atiçou mais ainda a revolta das comunidades e movimentos sociais com os problemas que cercam a região: utilização indiscriminada de agrotóxicos, por pequenos e grandes produtores; prática irregular da pulverização aérea, com o veneno atingindo as residências das comunidades; crescimento das casas de taipa nas vilas; uso doméstico da mesma água que abastece a lavoura e sem o devido tratamento; o atraso na demarcação das terras – do pequeno agricultor às maiores empresas fruticultoras, nenhum possui título de propriedade e a concentração fundiária atende a quem tem maiores condições de se fixar.

Um relevo geográfico que em menos de duas décadas sai de uma região abandonada e sem perspectivas para um dos lugares mais “prósperos” da fruticultura e do agronegócio do Nordeste Setentrional. O problema é entender quem, de fato, se beneficia da prosperidade da Chapada do Apodi, entre os municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré. Somente no ano passado, houve faturamento superior a R$ 70 milhões. A produção gera mais de 10 mil empregos diretos e indiretos.

As primeiras denúncias envolvendo contaminação por agrotóxicos ganharam repercussão a partir de 2006. Na época, a reportagem flagrou uma comunidade inteira invadida pelo pó de enxofre, utilizado por uma empresa para tornar o solo ácido para plantação de abacaxi. Depois seguiram evidências da venda indiscriminada de veneno em estabelecimentos comerciais, e aumentaram os casos de trabalhadores vítimas de contaminação, com pelo menos três mortes. Uma das vítimas fatais acompanhadas pela reportagem era José Valderi, que trabalhou na aplicação de veneno em uma empresa e após perder, um a um, os dedos do pé esquerdo teve a perna amputada e meses depois veio a óbito. O laudo médico apontava contaminação por bactéria.

Os casos de contaminação, somada à denúncia em edição especial do Caderno Regional, de 29 de abril de 2008, sobre os casos de câncer em Limoeiro do Norte – até o ano de 2007, média aproximada de um caso de câncer para cada 300 habitantes -, chamaram a atenção do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC). Há dois anos, a médica e professora Raquel Rigotto lidera uma equipe de pesquisadores, apoiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que estuda a situação de saúde de trabalhadores agrícolas da Chapada. Um dos problemas apontados pela professora é o “abuso” dos coquetéis de venenos, uma mistura de substâncias químicas que tem, inclusive, diferentes períodos de carência entre as aplicações.

Três semanas antes da morte de José Maria, teve início a criação de uma comissão para discutir os problemas envolvendo saúde do trabalhador, meio ambiente e concentração de terras na Chapada do Apodi. De acordo com Janaina Magalhães, chefe do Serviço de Fiscalização Agropecuária do Ministério da Agricultura, a comissão terá caráter permanente e deverá incluir diferentes órgãos. “Mas uma comissão só tem sentido se envolver os movimentos sociais, as universidades”, pontua o professor Hidelbrando dos Santos, diretor da Fafidam- Uece, em Limoeiro, que no início da década publicou levantamento sobre a intensa concentração de terras e a consequente expropriação de trabalhadores como o líder José Maria, que presidia a Associação dos Desapropriados São João e foi sepultado na última quinta-feira, no Dia Mundial da Terra.

ENQUETE
Morte anunciada

ANTÔNIA HÉLIA
Sobrinha do líder comunitário assassinado
A comunidade tinha Zé Maria como a pessoa mais preocupada pelas nossas causas. Foi vítima da pressão dos grandes

Hélio Herbster
Professor e vereador em Limoeiro
A Chapada do Apodi está mergulhada no contexto da favelização, drogas e da disputa entre grandes e despossuídos

Lourdes Vicente
Da direção estadual do MST
A morte foi anunciada. Todos somos “Zé Marias”, que sabemos a dificuldade da luta que se trava contra a opressão

MAIS INFORMAÇÕES
Fiscalização Agropecuária do Ministério da Agricultura no Ceará
Av. dos Expedicionários , Fortaleza
(85) 3455.9206

VENENO AÉREO

Pulverização ilegal ainda é realizada

Limoeiro do Norte. Leia-se, mas não se cumpra. É essa a prática da lei aprovada há quase um ano pela Câmara Municipal de Limoeiro proibindo a pulverização aérea das lavouras agrícolas da Chapada do Apodi. Os aviões sobrevoando as plantações e jogando veneno, mas atingindo os trabalhadores e áreas residenciais, conforme denunciaram os moradores da comunidade Tomé, liderados pelo agricultor e comerciante José Maria. Apesar da proibição, a pulverização aérea seguiu, ficou o dito pelo não dito. Num flagrante de desobediência à legislação municipal, a reportagem teve acesso a um e-mail de funcionário de uma empresa enviado para o Serviço de Fiscalização Agropecuária do Ceará alegando que, por consideração à família do líder assassinado, a pulverização aérea está “suspensa pelos próximos dias”.

O líder comunitário José Maria Filho não tinha o Ensino Fundamental, lia e escrevia pouco, mas sabia muito dos seus direitos. Quando acontecia uma reunião sobre recursos hídricos, meio ambiente e saúde pública no auditório do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) ou da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), em Limoeiro, ficava na fila para perguntar aos debatedores e denunciar a contaminação de veneno em sua comunidade. Reclamava que a comunidade consome água imprópria, fato verificado pela própria Federação das Associações do Perímetro Irrigado Jaguaribe Apodi (Fapija), que concede ao Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) a retirada de água para abastecer algumas comunidades.

A tentativa de encontrar provas de que a pulverização aérea acontecia, apesar da proibição, levou-o várias vezes ao aeroporto da Chapada do Apodi. Numa das queixas levadas à Delegacia de Polícia, ameaça de morte que teria sofrido quando tentava fazer o flagrante do avião pulverizador alçando voo.

A chefe do Serviço de Fiscalização Agropecúária do Ministério da Agricultura no Ceará, Janaina Magalhães, confirmou que a pulverização é permitida, de acordo com a legislação federal. “Se houver pulverização, eles nos avisam, dizem qual produto vão utilizar, tenho os registros das pulverizações feitas desde 2007, mas é tudo feito às claras, eu mesma já estive fazendo fotos lá”, explica a fiscal, que afirmou não ter conhecimento dessa lei municipal. “Sabia que estava em discussão”. De acordo com o vereador Heraldo Holanda, mesmo com a proibição, a situação continuou porque não há qualquer fiscalização.

No próximo dia 12 de maio a Câmara Municipal de Limoeiro promoverá audiência pública para tratar do projeto de política ambiental, que tem em um de seus artigos a revogação da lei anterior, que proíbe a pulverização aérea. Movimentos sociais pretendem fazer manifestação para que haja proibição real do despejo de venenos por avião.

De acordo com a fiscal Janaina Magalhães, a criação da Comissão Permanente para discutir os problemas da Chapada do Apodi poderá convergir as discussões para que se chegue a um consenso sobre a situação dos trabalhadores e do meio ambiente. O procurador da república em Limoeiro do Norte, Luis Carlos, recebeu como sugestão da atual comissão preparatória, que também inclui a Prefeitura Municipal de Limoeiro, para que solicite dos ministérios da república integração à comissão, além de produção de análise dos solos, da água e da saúde das comunidades. “Vamos pedir uma preocupação maior dos órgãos para a Chapada do Apodi, e também será muito importante o envolvimento dos movimentos sociais na Comissão Permanente”, disse.

Melquíades Júnior
Colaborador

Diário do Nordeste

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