Indígenas de Pyelito Kue e Sombrerito, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, denunciam novos ataques de fazendeiros
Ruy Sposati, de Campo Grande (MS), para o Cimi
Duas comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul foram atacadas durante o carnaval. Dia 7, pistoleiros contratados por fazendeiros atacaram dois adolescentes do tekoha – “o lugar onde todos somos”, a aldeia – Sombrerito, no município de Sete Quedas, fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Um indígena ficou ferido. Dia 10, uma caminhonete com quatro homens armados invadiu o acampamento de Pyelito Kue/Mbarakay, em Iguatemi, também na fronteira com o Paraguai, apontando armas de fogo contra a comunidade.
As denúncias foram realizadas pelos indígenas através do Conselho do Aty Guasu, a grande assembleia Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, e somam-se a outros três ataques realizados contra os indígenas no mês de janeiro.
Em Sombrerito, o conflito aconteceu num trecho de floresta utilizado pelos indígenas como principal fonte de matéria-prima da aldeia, mas protegido por pistoleiros contratados por fazendeiros da região.
No dia 7, dois indígenas, um de 14 e outro de 17 anos, foram cortar madeira para fazer uma casa de sapé, quando foram abordados por dois pistoleiros. “Eles apontaram as armas para os dois meninos, disseram pra eles ficarem no chão e entregarem as ferramentas, um facão e uma foice”, explica o professor Guarani de Sombrerito, Elieser Franco. “Os rapazes se recusaram a dar, os pistoleiros ficaram nervosos e tentaram arrancar da mão [dos indígenas]. Aí nisso um pistoleiro conseguiu puxar um facão e acabou cortando a mão de um dos dois [indígenas], porque ele não ia entregar de jeito nenhum. O corte foi um pouco fundo, mas ele está bem”.
A comunidade acionou a Fundação Nacional do Índio (Funai), que notificou a Força Nacional e a Polícia Federal (PF), que estiveram no local para apurar as denúncias.
“Aqui [no perímetro da aldeia] a gente não tem nem um sapé pra fazer casa. A única opção é uma mata que fica do lado da fazenda. Faz mais de dois anos que a gente pediu [na Justiça] autorização para usar essa mata, e até agora não conseguimos. Como é nosso único recurso, a gente tem que ir lá pra pegar ervas pra fazer remédio, lenha e madeira pras casas. Tudo o que a gente tem a gente tira desse mato. A gente sabe que é perigoso, mas tem que ir”, afirma.
“A gente ficou apavorado, porque eles vivem dando tiros quando a gente entra nessa mata, pra pegar ervas pra fazer remédio, pra procurar a lenha. É o único mato que tem ali. Eles ficam cuidando direto, às vezes a gente se depara mesmo com eles [pistoleiros]. Eles ficam ameaçando, falando que vai dar tiro se continuar passando ali. Mas o que a gente vai fazer? Não tem outra mata, é só essa. A outra é pro lado do Paraguai, que fica muito longe da aldeia”, contextualiza.
Líder Lopes, liderança Kaiowá de Pyelito Kue – cujo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Iguatemipegá I foi aprovado em janeiro de 2013 -, relata a aparição de pistoleiros na área do acampamento.
“Era domingo [dia 10], 10 da manhã. Uma caminhonete preta veio da fazenda. Tinha vidros escuros. A mulherada foi com as crianças tomar banho no corguinho [rio Hovy], quando ouviram um carro chegando. A caminhonete pasou um pouquinho do último colchete antes do corguinho e parou lá, pra cima da beira [onde os indígenas estavam banhando]. Aí duas pessoas com arma desceram e vieram andando até onde tá o pessoal, e mais dois ficaram em cima do carro, armados. “[Os homens armados] não chegaram a agitar a mulherada, só veio até a metade [do caminho, entre o colchete e o córrego], apontando as armas. Eles iam chegando perto e as crianças e as mulheres se afastava um pouquinho. Nós [os homens] nos reunimos e quando íamos atrás deles, eles voltaram, subiram no carro e se mandaram. A gente ficou atento no corguinho até de noite, cuidando do acampamento”.
Segundo Líder, a PF esteve na aldeia na terça-feira, 12, investigando o caso.
Em nota pública, o Aty Guasu exigiu que a Justiça julgue e puna com urgência “aos fazendeiros-mandantes e pistoleiros-executores dos crimes contra as vidas Guarani e Kaiowá”. Também reivindicam que o governo federal garanta a segurança permanente das comunidades ameaçadas.
Para o Aty Guasu, a impunidade é a força motriz da violência contra os Guarani e Kaiowá. “Esses fazendeiros contratantes de pistoleiros e mandantes de assassinados das lideranças são extremamente truculentos”, apontou o Conselho. “Desobedecem à ordem da Justiça Federal, fazem as suas leis próprias, mas não são punidos até os dias de hoje. Por isso retornam a agir”, explicou o documento.
SOMBRERITO
A luta pela retomada do tekoha de Sombrerito tem um rastro grave de violências contra os indígenas, envolvendo morte, sequestro e tortura.
Em 1975, a comunidade foi expulsa da terra, e as famílias divididas ao longo das reservas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na primeira metade do século vinte. Desde então, os Guarani reivindicam o território de onde foram retirados.
Em 2003, a Funai iniciou os estudos circunstanciados para fins de identificação do tekoha. Sentindo-se ameaçada pelos proprietários das fazendas que incidiam sobre a terra indígena, a equipe suspendeu os trabalhos, poucos dias depois do início da pesquisa, para depois recomeçar sob acompanhamento da PF.
No sentido de pressionar contra a morosidade da demarcação da terra, em 26 de junho de 2005, os indígenas decidiram reocupar a Fazenda Floresta, que incidia sobre o território tradicional Guarani reivindicado pelas famílias de Sombrerito. Durante aquela madrugada, um grupo de não-índios manteve quatro indígenas como reféns, torturando-os por horas. O caminhão que transportara a comunidade até a área da fazenda foi destruído, incendiado pelos agressores.
Dorival Benites, 26 anos, foi assassinado pelos pistoleiros durante o ataque. Segundo relatos da comunidade, outros três indígenas saíram feridos no tiroteio, ocorrido durante a madrugada. Os indígenas Rosana Gonçalves, 42 anos, grávida de quatro meses, relata ter sido espancada durante a briga; Sílvio Iturbio, 46 anos, teve o olho esquerdo perfurado; e Ari Benites, irmão de Dorival, levou um tiro de raspão. O Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS) encaminhou denúncia contra os autores e mandantes do crime. Os processos, no entanto, sequer foram iniciados.
Fruto da luta dos indígenas, em julho de 2006, os estudos de Sombrerito foram publicados no Diário Oficial da União. Contudo, segundo Elieser, depois da aprovação, os conflitos se intensificaram.
“Quem tivesse medo de bala e tiro não conseguia ficar aqui não”, diz o professor. “[Até 2009] Eles andavam rodeando a aldeia, na divisa provisória [com a fazenda], dando tiro com metralhadora, espingarda. Toda semana tinha um ataque desses, uma intimidação”, recorda.
Em 2010, o Ministério da Justiça declarou como de posse permanente do grupo indígena a Terra Indígena Sombrerito, com 12 mil hectares. O processo permanece parado, desde então.
“Agora eles tão começando de novo a criar problema com a gente. Acho que isso acontece devido ao noticiário [sobre a aprovação do relatório de Pyelito] sobre os 40 mil hectares [dimensão do território dos Kaiowá de Pyelito identificado no relatório]. Iguatemi [onde fica Pyelito] é perto, faz divisa com Sete Quedas [onde fica Sombrerito]. Eles ficam intimidados com essa demarcação, e aí eles vem e intimidam a gente”.
Isso tem potencializado, novamente, um contexto de insegurança e intimidações para os Guarani de Sombrerito. “Eu e o capitão [de Sombrerito], a gente vive direto com ameaça, com recados. De uns tempos pra cá, começou de novo. Eles acham que nós temos a ver com a aprovação do estudo. Então a gente toma algumas precauções, de não sair muito da aldeia. Com esses ataques, vem muito a PF, e aqui é área de fronteira, então não só os fazendeiros estão bravos aqui. Então, está todo mundo começando de novo a ficar de orelha em pé”, conclui Elieser.
PYELITO KUE/MABARAKAY
Após a retomada do território, em 9 dezembro de 2009, pistoleiros invadiram a comunidade. O grupo indígena foi espancado, ameaçado com armas de fogo, vendado e jogado à beira da estrada em uma desocupação extra-judicial. Na ocasião, mais de 50 pessoas, inclusive idosos, foram espancadas, e o Arcelino Oliviera Teixeira desapareceu.
Em 23 de agosto de 2011, um grupo de pistoleiros à cavalo invadiu a retomada de Pyelito, novamente agredindo os indígenas, incendiando barracos e os ameaçando de morte.
Em novembro de 2011, homens armados chegaram à comunidade em um caminhão, atirando balas de borracha contra os indígenas e incendiando e destruindo cabanas e pertences.
Também no caso de Pyelito Kue/Mbarakay, os réus ainda [não] foram julgados.
–
http://campanhaguarani.org/?p=1641