Amsterdam e América Latina – uma velha relação

Elaine Tavares

Andar pelas ruas de Amsterdam é estabelecer imediato contato com a vida no Brasil e na América Latina. Daqui, desses portos, saíam os navios da Companhia das índias Ocidentais, que tão visceralmente está ligada à nossa história, seja pelo tráfico de escravos ou pelo translado das riquezas do continente até a Europa. Circulando pelos canais desta que é mais acolhedora das cidades europeias também é possível capturar a atmosfera da construção do pensamento que mudou a face do mundo: a modernidade cartesiana. Aqui, por trás dessas janelas gigantes, de frente para algum canal, em meio a uma intensa vida cultural, René Descartes produziu seus mais importantes textos, inaugurando o que Enrique Dussel chama de segunda modernidade. Descartes, desde Amsterdam, dará densidade teórica para o projeto de conquista que Espanha e Portugal vinham realizando desde 1492. Segundo Dussel, o “ego cogito (penso)” anunciado em 1735 é a expressão teórica mais acabada do “ego conquiro (conquisto)” que inaugurou o primeiro sistema mundo de que se tem notícia na humanidade. Logo, é em Amsterdam que começa a negação teórica de Abya Yala e a gestão da centralidade europeia. Assim, a cidade, com toda a sua vibração, vai misturando passado e presente de forma indelével no nosso ser.

Amsterdam tem toda a sua história relacionada com a água. Contam por aqui que os fundadores do lugar foram dois pescadores da região da Frísia, a nordeste dos Países Baixos, que chegaram, por acaso, às margens do rio Amstel. Gostaram do lugar e resolveram ficar. Isso foi lá pelo ano de 1275. Mas, foi só em 1300 que ganhou a denominação oficial de cidade.  Já no século XIV a cidade florescia por conta do comércio proporcionado pela famosa Liga Hanseática, dominada pela burguesia nascente. Mas, no século XVI uma guerra com a Espanha, que durou 80 anos, iria frear um pouco o desenvolvimento na mesma medida em que garantiu a independência dos Países Baixos. E foi nesse período de guerra que a Holanda fortaleceu a sua fama com relação à tolerância religiosa, que perdura até hoje. Os perseguidos por essas questões vinham em magotes. 

Quando chega o século XVII a cidade vive um dos seus ciclos de ouro, tendo mais de 200 mil habitantes. Era a cidade mais rica do mundo, um centro financeiro que comandava a base de todo o comércio do sistema mundo nascente através da Companhia das Índias. Tinha o mais importante porto de onde saiam navios para as Américas, a África, a Indonésia e o mar Báltico. A Companhia das Índias tinha o monopólio de todo o comércio que se fazia no mar. Ali, em Amsterdam, a bolsa de valores foi a primeira a funcionar diariamente, tamanho era o fluxo do dinheiro.

É dessa época a ação da Cia das Índias Ocidentais nas Américas. Os holandeses reproduziam no então Novo Mundo a guerra que travavam com a Espanha. Por conta disso empreenderam a ocupação do Brasil cuja primeira tentativa foi em Salvador, em 1624, mas, naqueles dias não tiveram êxito. A segunda opção, em 1630, foi Pernambuco, porque junto com a Bahia era a capitania mais viável economicamente em função da produção do açúcar. Foi ali, então que o almirante Loncq desembarcou tomando Olinda e Recife, ampliando depois para Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Seis anos mais tarde, quando chega Mauricio de Nassau, os holandeses já tinham sob seu domínio Natal e Porto Calvo, com o objetivo melhorar o rendimento da colônia uma vez que era preciso custear a guerra e as dívidas que se acumulavam. Naqueles dias também havia a intenção do governo holandês em devolver a possessão em troca de mais privilégios no comércio. Era tudo um jogo comercial.

A ação de Mauricio de Nassau no Brasil durou oito anos e deixou marcas profundas. Com ele, acompanhando a lógica da vida na corte holandesa, vieram artistas e cientistas que realizaram trabalhos importantes de exploração científica e de pintura da nova terra. Muitos desses trabalhos podem ser vistos nos mais de 50 museus que existem em Amsterdam nos dias de hoje. Maurício tinha 33 anos, era da nobreza, um conde, e apesar de estar na carreira militar recebera educação de qualidade na Universidade da Basiléia. Talvez por essa formação humanística tenha conquistado facilmente a população das cidades que estavam dominadas pelos holandeses. Contam que ele não era um mero explorador das riquezas e se preocupava em garantir o bem estar das pessoas, incentivando também a cultura. Criou um observatório astronômico, um jardim botânico e promoveu pintores e artistas.

Seu governo encerrou pouco antes da famosa Insurreição Pernambucana. Maurício não concordou com a proposta da Companhia das índias que queria cobrar de uma só vez as dívidas que os donos dos engenhos tinham com a empresa e decidiu ir embora para não ser o carrasco do povo que aprendera a respeitar. E, os donos de engenho, já sem razão para aturar os holandeses nas terras do Brasil, aliaram-se aos índios e aos negros para expulsá-los definitivamente. A guerra durou nove anos, com a vitória dos brasileiros em 1654. Era o fim da presença holandesa no Brasil. Mas, lá na Europa, a capital dos Países Baixos seguia seu rumo de berço da modernidade. Quase um século depois, Descartes inauguraria a nova idade da razão que ainda hoje, apesar dos anúncios de uma pós-modernidade, ainda não se esgotou.

No final do século XVIII Amsterdam vive nova baixa no seu esplendor econômico por conta das guerras com a Inglaterra e França. As famosas guerras napoleônicas levaram fortunas à bancarrota. Foi só depois de 1815 que a cidade voltou a florescer, vivendo o segundo século de ouro sob a batuta de Samuel Sarphati, um urbanista que deu nova cara à cidade. Foi nessa época que se construíram museus, teatros, estações de trem e novos canais, configurando o perfil atual. Durante a primeira guerra, nos primeiros anos do século XX, a Holanda ficou neutra e não teve muito problema. Mas, na segunda, acabou invadida pelos alemães em 1940 e foi aí que a garotinha Anne Frank viveu seu drama conhecido mundialmente. Mais de 100 mil judeus foram deportados durante a ocupação. A casa onde ela escreveu seu dramático diário é objeto de peregrinação.

A cidade hoje

Amsterdam tem jeito de cidade pequena, apesar dos 800 mil habitantes. Há bancos em frente às casas, bicicletas nas ruas e as pessoas conversam animadas por toda a parte. É uma de suas características a alegria e a completa aceitação do outro. Não há preconceitos com nenhum jeito de ser e aqui se pode ser homossexual sem temer uma agressão violenta, passear nas ruas de Luz Vermelha – bairro da prostituição – tranquilamente, observando as mulheres na janela ou entrando nas casas de sexo explícito ou usar as roupas mais alucinantes. Tudo é livre e depende da vontade da pessoa. Cada um é o que é, sem temor.  Pode-se entrar nos imensos centros comerciais cheios de lojas de marcas famosas, ou simplesmente circular pelas barraquinhas de flores e badulaques que margeiam a Praça Dam. A cidade é tão interessante, tão cheia de cultura e beleza que as pessoas ficam mais ocupadas com isso do que com cuidar a vida dos outros.

A aceitação do diferente é tanta que hoje o número de estrangeiros vivendo na cidade já ultrapassa a metade da população (50,3%), sendo que 34,9% deles não têm origem europeia. A diversidade e a juventude (52,6% tem menos de 18 anos) são características da capital. A maioria da população se diz católica, mas há 25% de muçulmanos.

A arquitetura é um caso a parte, como se a cidade mesma fosse um museu à céu aberto. Prédios construídos em 1600, ainda servindo de moradia e muito bem conservados. Outros de 1700 e de 1800, também perfeitos. Tudo segue certo padrão. Quatro ou seis andares, um pouco escuros, feitos de tijolo maciço e grudados um no outros, por conta dos terrenos que são muito pantanosos. “Eles precisam se segurar uns nos outros”, dizem os holandeses. Vai daí que não há garagens para os carros e eles descansam nos meios-fios, cobertos de neve, sem que ninguém arranque os cabelos por conta disso. Outra beleza são os canais. Anda-se por eles em enlevo, observando as casas, a vida cotidiana e as bicicletas, que são soberanas nas ruas.

Pode-se também sarandear de museu em museu, desde o Hermitage – criado na Rússia por Catarina, a Grande – até o de malas e bolsas, estonteante, assim como o de tatuagens e o erótico. E vale ficar por horas vendo as obras de Van Gogh, o torturado pintor holandês que tanta beleza conseguiu desvelar desde o mundo dos pobres, dos camponeses, da gente comum. Ainda é possível ver bem de perto o tipo de navio que fez da Companhia das Índias a dona do mar. A cidade, mesmo num frio de seis graus abaixo de zero, respira alegria, otimismo e confiança. Não é mais a mesma metrópole dos tempos de Descartes, mas continua acolhendo importantes intelectuais e artistas de todo mundo. Por enquanto está livre da crise que vem acossando a Europa.

Contraditoriamente, o país que é tão avançado no comportamento, nas artes e na cultura, ainda é uma monarquia. Reina a rainha Beatriz de Orange-Nassau. É fato que acontecem eleições parlamentares e, depois da consulta, os políticos de várias tendências iniciam um longo processo de construção de coligações para definir quem fica com a maioria. Só depois que tudo se ajeita no legislativo a rainha nomeia os governantes. Geralmente o primeiro ministro é indicado pelo maior partido da coligação e a rainha acata. A nomeação é mera formalidade. A coisa funciona mais ou menos como na Inglaterra, com a casa real sendo mais figuração do que poder concreto. Ainda assim, o Dia da Rainha, em abril, é feriado nacional tanto aqui quanto na longínqua Aruba, no nosso Caribe, que ainda é uma espécie de colônia holandesa, embora se auto intitule região autônoma.

Beatriz é a 14 soberana mais rica do mundo, com um patrimônio de 200 milhões de dólares num país onde a taxa de desemprego é de 4,8%. Ou seja, dos 16 milhões de habitantes, 400 mil estão sem trabalho. Ainda assim, a Holanda se orgulha de estar em ritmo de crescimento, 2,4% em 2011. Isso se expressa no aumento de carros pessoais e consumo de gás. Tem uma infraestrutura de transportes considerada uma das melhores do mundo, um porto dos mais modernos, concentra uma zona de grande desenvolvimento informático e é um dos 20 países com maior PIB no mundo. Também se destaca pelo seu setor financeiro, que é o quinto do planeta.

Embora seja muito difícil identificar alguém como pobre em Amsterdam estudos indicam que 8% da população (um milhão) do país vivem abaixo da linha da pobreza. Nos canais que proliferam pela capital é possível ver um número bem expressivo de casas-barco. São embarcações que foram transformadas em casa por famílias ou pessoas que não têm como pagar aluguel. O fato de não terem água nem luz não impede que muita gente viva assim. São chamadas de residências ilegais, mas formam uma idílica paisagem pelos canais, algumas muito bem decoradas, com flores coloridas nas janelas.

Um passeio pelo campo enche as vistas com os famosos moinhos de vento, antigos e modernos e em cada pub é possível apreciar a famosa cerveja Heineken, cuja fábrica está em Amsterdam, assim como a Amstel, igualmente encorpada e saborosa. Todas elas são servidas à temperatura ambiente, o que em janeiro significa seis graus abaixo de zero. Ao gosto brasileiro.

Então, nesses dias de frio pode-se ficar à janela, olhando a paisagem que remete ao passado, às relações com a América Latina, ao pensamento burguês e ao mesmo tempo vislumbrar o futuro. Uma prova disso é a quantidade absoluta das bicicletas, que põe a pessoa em primeiro plano no processo de vivência da cidade. O carro em Amsterdam é objeto secundário, serve para as grandes distâncias. Já a magrelinha é carregada com cuidado no metrô e nos ônibus, ou desfila, nos mais diferentes e adoráveis estilos por qualquer rua da cidade. Como espaço urbano Amsterdam é uma cidade quase perfeita. Mas, nunca dá para esquecer que opulência do chamado “primeiro mundo” só é possível por conta da periferia.

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