Respeitem meus cabelos crespos

Fabiana Mascarenhas*

Quando criança, tinha vergonha do meu cabelo. Sonhava em ter o penteado igual ao das amiguinhas de sala, sempre liso e brilhante. A televisão, a mídia, a indústria de brinquedos, a própria sociedade, tudo me levava a achar que era feia por ter cabelo crespo. Não à toa, fui uma das inúmeras crianças que teve apelidos por conta da cor da pele. Nascida de um pai negro e uma mãe branca, no seio familiar, meus  pais me faziam entender que era linda do que jeito que nasci. Nunca houve discurso em defesa dos negros, assim como nunca tiveram o costume de arrumar o meu cabelo no estilo “afro”, com o objetivo de reafirmar a minha negritude.

Talvez, por isso, um episódio ocorrido na última semana tenha me deixado tão sensibilizada. Uma criança negra, com cabelo escovado, entrou com a mãe em um elevador lotado de um centro comercial de Salvador. A criança – que imagino ter entre sete e oito anos – olhou para mim e, depois de muito examinar, perguntou por que o meu cabelo “é para cima”. Explico que ele não é para cima, que penteio assim porque gosto e acho bonito. Em seguida, ela diz: “Ele é duro, né?”. Neste momento, todos no elevador riem. Respondo que ele é crespo, não duro. “Não existe cabelo duro ou mole, mas liso, cacheado, crespo. E o seu, você acha que é como?”, pergunto.

Ela responde que a mãe diz que o cabelo dela é duro e, por isso, ela alisa. “Não gosto. Queria ter o cabelo assim como o seu, mas minha mãe não gosta. Diz que é coisa de preto pobre”, fala, inocentemente. A mãe, sem olhar em nenhum momento para mim, dá um forte beliscão na garota e diz: “Menina, como é que você diz uma coisa dessas! Cale a boca!”. No mesmo instante, nasce um silêncio constrangedor no ambiente. No entra e sai das pessoas, a criança, com cara de choro, deixa de olhar para mim e mantém o olhar fixo na porta do elevador.

Chegamos, então, ao 11º andar. Tenho que descer. Antes, porém, falo com a garota: “Sua mãe tem o direito de ter a opinião dela e escolher de que maneira ela deve criá-la, mas ter o cabelo desse jeito não é coisa de preto pobre. Não importa se a pessoa é preta, branca, pobre ou rica, ela tem o direito de usar e fazer o que ela quiser com o cabelo. Quando você crescer e puder cuidar do próprio cabelo, aí você deixa assim, do jeito que você quer, tá bom?”.

A garotinha apenas sorri. A mãe, por sua vez, olha para mim com cara de indignação. Puxa a menina para perto dela e diz, em tom alterado: “Pode deixar que da minha filha cuido eu. Ela vai ter o cabelo do jeito que eu quiser”. Foi, então, que respondi: “Até pode ser, mas a raça dela é essa, minha senhora. E isso, felizmente, você não pode mudar”. A porta do elevador se fecha.

Volto a lembrar dos meus pais, que sempre me mostraram que toda e qualquer pessoa deveria ser respeitada do jeito que era, independentemente da cor ou classe social. Podia ter o cabelo trançado, encaracolado, escovado, black power, enfim, cada um adere ao estilo que lhe convém. Mais do que ensinar a filha a valorizar a própria raça, os valores que me foram passados tinham como base o respeito à diversidade. E foi assim que cresci, tendo o entendimento de que, mais do que na aparência, a minha negritude estava na consciência.

O caso chama atenção pela total ingenuidade da criança e pelo posicionamento da mãe, tão negra quanto eu. Depois de a porta do elevador se fechar, ficou em mim a tristeza pela garota. Que tipo de valores essa mãe está passando à filha? Me pergunto se, tendo este tipo de criação, ela crescerá tendo um posicionamento diferente. É bem provável que não, o que dificulta ainda mais o combate ao preconceito, uma vez que serão crianças como ela os agentes do futuro. Estarão à frente das empresas, dos centros religiosos, do governo, reproduzindo o preconceito que perdura há anos, justamente por conta dessa transferência absurda de valores. Não podemos esquecer, ninguém nasce preconceituoso. Portanto, pais, eu lhes pergunto: que tipo de valores vocês estão passando para seus filhos?

Não importa se a pessoa é preta, branca, pobre ou rica, ela tem o direito de usar e fazer o que ela quiser com o cabelo.

*Jornalista e repórter do Grupo A TARDE.

Respeitem meus cabelos crespos

Comments (2)

  1. Meus pais nunca me ensinaram ater respeito pela diversidade, semi-analfabetos, nem ao menos sabiam o que era isso. Meus padrões foram os mesmos com os quais toda a nossa sociedade convive, um bom(a) sujeito(a) é cristão, branco e com valores eurocêntricos, nada a ver com esse Brasil e sua gente. Mas, sou uma pessoa totalmente voltada para o que é diferente, fora do padrão vigente. A menina tem uma mãe que não é diferente da minha, e essa mãe não pode ser culpabilizada em uma sociedade que diz e afirma que o belo não é o cabelo crespo. Ela repete, repete o que foi introjetado. Dizer isso não aponta uma postura fatalista, mas reconhece o processo vivido por essa mãe e todas as demais. ela não é a ponta de lança desse processo é somente mais uma que assimilou e concordou.
    Vi na situação vivida, uma série de constrangimentos, exceto pelos que riram ou riram justamente pelo constrangimento. Devemos estar atentos para não tomarmos posicionamentos do tipo “patrulha ideológica”. Pois, o “lugar do negro” na sociedade brasileira,no qual foi colocado e acorrentado, já por si só nos coloca enquanto vítimas de um processo de invisibilidade e de esquecimento de nossas memórias.
    O trabalho de desconstrução de significados, símbolos e identidades não é tarefa fácil, mas se ampliarmos nosso olhar para além do que as aparências nos ilude a ver, poderemos ter uma empreitada exitosa.

  2. Eu agradeço muito aos meus pais por ter me dado uma educcaçao de respeito as diversidades, eu fico indignada quando vejo alguem discriminando outro simplismente pelo fato de não fazer parte do perfil que a sociedade impõe. Todos merecem respeito independente de cor,sexo, raça, religião.

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