Atribuir ao envenenamento por agrotóxicos o epíteto de “misteriosa epidemia” é desconhecer (propositadamente ou por ignorância) o que vem acontecendo com @s trabalhador@s das monoculturas. Usar a força de trabalho de alguém ao ponto do esgotamento (como é o caso principalmente na colheita da cana, paga por peso), ao mesmo tempo em que contamina, vai causando lesões em seus órgãos e pouco a pouco condenando à morte tem um nome: assassinato. No caso, lento, cruel e totalmente desumano. E assim devia ser tratado pelas autoridades competentes. Condena-se (embora sem considerar de fato as punições que a Lei determina) quem é descoberto praticando o trabalho escravo, mas deixa-se livre quem mata alguém com veneno? Sugiro, depois da leitura desta matéria, uma olhada num post publicado neste Blog em 26/07/2011 – Médicos das Usinas dão pinga para cortar o efeito do agrotóxico no corpo -, com atenção especial para as denúncias de Lia Geraldo, da Fiocruz. TP.
da BBC Brasil
Uma epidemia misteriosa está assolando a América Central e é a segunda principal causa de mortes entre homens em El Salvador e na Nicarágua. A doença já matou mais homens do que o vírus HIV e a diabete somados. As causas da epidemia permanecem desconhecidas, mas a teoria mais recente é de que as vítimas estariam, literalmente, trabalhando até a morte.
Nas planícies da Nicarágua – uma região farta em plantações de cana de açúcar- fica a pequena comunidade de La Isla, com suas casinhas que são uma colcha de retalhos de concreto e madeira. Pedaços de tecido servem como portas das residências.
Maudiel Martinez é pálido e tem as maças do rosto saltadas. Ele é curvado como um idoso, mas tem apenas 19 anos de idade. ”Essa doença é assim. Você está me vendo assim agora, mas dentro de um mês pode ser que eu não esteja mais aqui. Ela pode te levar de repente”, afirma.
Os rins de Maudiel estão falhando. Eles não estão realizado a função essencial de filtrar impurezas do corpo. Ele está sendo, pouco a pouco, envenenado por dentro.
Quando adoeceu há dois anos, ele já estava familiarizado com a sua doença e com os efeitos que ela poderia ter sobre ele. ”Eu pensei no meu pai e no meu avô”, afirmou. Mas ambos morreram da mesma condição. Três dos seus irmãos também sofrem da mesma doença. Todos eles trabalhavam nas plantações de cana
ILHA DAS VIÚVAS
Doenças renais mataram tantos homens nesta região que os moradores já passaram a chamar La Isla (A Ilha) de La Isla de las Viudas (A Ilha das Viúvas).
A doença não se limita à Nicarágua. Há inúmeros casos registrados em seis países da América Central, situados na região costeira do Oceano Pacífico.
”É importante que a doença renal crônica afetando milhares de trabalhadores das zonas rurais da América Central seja reconhecida como o que ela é – uma forte epidemia com um tremendo impacto sobre a população”, afirma Victor Penchaszadeh, um epidemologista da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
O Ministério da Saúde de El Salvador já pediu a ajuda da comunidade internacional para combater a doença. A ministra Maria Isabel Rodríguez afirmou que a epidemia está ”consumindo as nossas populações”.
ALÉM DO MEIO RURAL
Em uma clínica de El Salvador, na região rural de Bajo Lempa, o médico Carlos Orantes recentemente descobriu que 25% dos homens na área sofrem da doença. E mais, afirma ele: a maior parte dos homens que estão doentes não tem indícios de pressão sanguínea alta ou de diabetes, que são as causas mais comuns de doença renal crônica em todo o mundo.
”A maior parte dos homens que nós estudamos possuem doenças renais crônicas provocadas por causas desconhecidas”, afirma.
O que os homens da região têm em comum é que todos trabalham com agricultura. Por esse motivo, Orantes diz acreditar que uma das principais causas das falhas renais das quais eles sofrem sejam componentes químicos tóxicos, como pesticidas e herbicidas, que são usados regularmente na agricultura.
”Estes químicos são proibidos nos Estados Unidos, Europa e Canadá e são usados aqui, sem quaisquer proteções e em grande quantidade, o que é bem preocupante”, afirmou.
Mas ele não descarta que outras hipóteses possam estar provocando a doença, como, por exemplo, o uso excesso de analgésicos, que pode danificar os rins, assim como o consumo excessivo de álcool. Ambos são fortes problemas na região.
PROBLEMA POLÍTICO
Na Nicarágua, a doença já se tornou um problema político.
Em 2006, o Banco Mundial (Bird) concedeu um empréstimo à segunda maior companhia açucareira do país para que ela construísse uma usina de etanol.
Trabalhadores rurais protestaram contra a construção, argumentando que as condições de trabalho promovidas pela empresa e o uso feito por ela de componentes químicos estavam contribuindo para a disseminação da epidemia. Eles afirmaram que o empréstimo violava as próprias regras do banco em relação a padrões de segurança para trabalhadores e práticas ambientais.
Por conta disso, o Bird aceitou financiar um estudo para tentar identificar as causas da epidemia. ”As provas apontam para um hipótese muito forte de que o estresse provocado pelo excesso de calor seja a causa desta doença”, afirma Daniel Brooks, da Universidade de Boston, que está chefiando a pesquisa.
A equipe de Brooks descobriu ainda que não são apenas os trabalhadores agrícolas que estão adoecendo, mas que também há forte incidência de doenças renais entre mineiros e trabalhadores da zona portuária, que não estão expostos a componentes químicos. Mas o que os portadores da doença têm em comum é o fato de que eles trabalham longas horas sob um calor extremo.
”Dia após dia de trabalho manual em condições de forte calor, sem que haja uma renovação de fluidos, pode ter efeitos sobre os rins que não são tão óbvios à primeira vista, mas que, com o tempo, se acumulam ao ponto de contribuírem para que surjam doenças”, afirma Brooks.
Ele acrescenta que ”isso não havia sido mostrado até agora como uma causa possível para doenças renais crônicas. Portanto, estamos falando de um novo mecanismo que até hoje não havia sido descrito na literatura científica”.
RESULTADOS INICIAIS
Mas o pesquisador conta que resultados preliminares do estudo confirmam a hipótese dele. O grupo de pesquisadores testou amostras de sangue e urina de trabalhadores da indústria canavieira que realizam diferentes funções. Os cientistas encontraram mais traços de danos renais entre trabalhadores que realizam atividades físicas desgastantes debaixo do sol.
A professora Aurora Aragon, da Universidade Nacional da Nicarágua, em León, afirma que a visão defendida pelos pesquisadores faz sentido. Há muito ela suspeita que o problema é parcialmente causado pela forma com que os trabalhadores canavieiros são pagos – quanto mais cana eles cortam, mais eles recebem.
José Donald Cortez trabalhou na indústria canavieira por 18 anos e conta que trabalhar no campo fez com que ele regularmente ficasse enjoado e tonto e sofrendo com febres constantes.
Cortez atualmente sofre de doenças renais e comanda uma organização de trabalhadores da indústria canavieira na Nicarágua que ainda estão doentes. Ele está convencido de que há alguma coisa nas plantações de cana que causa a epidemia.
Sejam quais forem as causas, ele afirma, os doentes precisam ser tratados com diálise, que pode mantê-los vivos quando seus rins falham. Mas poucos têm acesso ao tratamento, porque a diálise é extremamente cara e raramente acessível na região.
CONDIÇÕES DE TRABALHO
As empresas produtoras de açúcar afirmam não estar convencidas de que os produtos químicos ou as condições de trabalho em suas plantações possam ser culpadas pela epidemia. Mas ainda assim, dizem as companhias, elas estão tentando proteger a saúde de seus funcionários.
Um conglomerado que possui diversas plantações de açúcar na América Central, o Grupo Pellas, diz ter começado a dar intervalos de almoço de uma hora aos seus trabalhadores e que procura assegurar que seus funcionários estão bebendo uma quantidade suficiente de água. A companhia também promove exames regulares para avaliar as funções renais dos trabalhadores.
O porta-voz do Grupo Pellas, Ariel Granera, diz que quando se descobre que um trabalhador apresenta problemas renais, ele é dispensado, por conta de preocupações com seu bem-estar.
Mas os funcionários que adoeceram e que foram dispensados afirmam que o que eles recebem das empresas e da previdência social não é o suficiente para garantir seus sustentos. E dizem que, quando perdem seus empregos, perdem também o direito de ser tratados por médicos da companhia.
Em La Isla, muitos sabem dos riscos de se trabalhar na indústria canavieira, mas a região não oferece outros empregos e, como diz uma moradora, ”não há outros meios de sustentar uma família”.
http://www1.folha.uol.com.br/bbc/1020668-misteriosa-epidemia-atinge-cortadores-de-cana-na-america-central.shtml. Enviada por Eduardo Corrêa.