do site Brasil de Fato
Documentário vencedor do Festival de Paulínia serve como arma de conscientização e é usado por Movimentos pró-Xingu. Assista ao trailer do documentário.
Clara Coelho, de Paulínia (SP)
“Nosso filme é quase que perecível, ele é datado, precisamos divulgá-lo muito no próximo um ano”, a frase dita pelo produtor Rafael Salazar, em um debate no festival de Cinema de Paulínia, é um ótimo começo de conversa. O documentário À Margem do Xingu – vozes não consideradas demorou quase dois anos para ser finalizado e estreia em um momento crítico. As obras de Belo Monte, protagonista invisível, já começaram. Por isso a urgência na propagação das vozes desconsideradas. Filmado no Xingu, montado em Barcelona e finalizado em Paulínia, o filme é um exemplo de como as fronteiras entre países e distâncias deixaram de ser obstáculo.
O longa metragem, que estreou e ganhou o prêmio do júri popular de Melhor Documentário no Festival de Paulínia, foi gravado entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010. O diretor catalão Damià Puig veio ao Brasil para fazer alguns curtas sobre a Amazônia, principalmente para investigar as políticas de desenvolvimento em vigor na região. Por amigos em comum e através da internet, ele fez contato com Rafael Salazar, produtor radicado no mais novo e (já) importante pólo de cinema do país, o Pólo de Paulínia, e Janaina Welle, antropóloga com especialização em audiovisual (coincidentemente, pela Universidade de Barcelona). Juntos, o trio foi para o Pará e ao longo da viagem de barco pelo Rio Xingu, as realidades foram saltando aos olhos e o projeto foi tomando forma. Não havia outro tema sobre o qual se debruçar e escarafunchar que não a construção da gigante hidrelétrica de Belo Monte.
Quando a equipe estava gravando, Belo Monte ainda era um projeto. Há mais de 30 anos a hidrelétrica ronda como fantasma no Rio Xingu sobre as comunidades ribeirinhas e as aldeias indígenas. Nessas últimas décadas – de muitas lutas – o projeto se transformou. A princípio seriam sete barragens, hoje são duas. Porém, o projeto segue cheio de incoerências, como a real eficácia na produção de energia e os custos sócio-ambientais gerados pela barragem do rio.
Motivo de esperança
O documentário estreia ao mesmo tempo em que máquinas começam a escavar e construir os primeiros canteiros de obras em Altamira, Pará. A atualização dos fatos, que aparece como créditos ao fim do filme, provoca diferentes reações.
“Fiquei realmente tocada, mas, o sentimento que fica é o da incapacidade de ação”, disse Érica Bizari, ao final da primeira exibição pública da película. Para outros, os 90 minutos de histórias de vida mescladas a imagens da exuberância e riqueza do Xingu incitam à ação: “O documentário é extremamente relevante para nosso contexto atual. Fiquei bem emotivo e saio com um sentimento de raiva, de que preciso fazer alguma coisa“, afirmou Pedro Bellini.
Depois da sessão que lotou os 1.200 lugares do Theatro Municipal de Paulínia, os espectadores iam falar com os personagens no hall. Tê-los ali provocou uma aproximação com o que acabavam de assistir. Para Janaína Welle, antropóloga e assistente de direção do filme, “a fala passa a ser real quando vejo o personagem ali, quando posso tocá-lo”. Para o povo do Xingu, ver o documentário pronto aumenta as esperanças. “Depois desse filme, estamos prontos para ocupar o canteiro de obras”, comenta Antonia Martins, uma das líderes do Movimento Xingu Vivo para Sempre. Já a líder indígena Juma Xipaya, que tinha 16 anos na época da gravação do documentário, afirma que “saber que sua história vai chegar ao conhecimento de muita gente me dá forças para seguir lutando. Lutando e obtendo vitórias”. Juma saiu da aldeia Xipaya para Altamira para se tratar de duas malárias. Na cidade, começou a se envolver na luta contra Belo Monte. Depois de ter sido ameaçada de morte, teve que se mudar para Manaus, onde trabalha na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Marcelo Salazar, irmão do produtor e coordenador do Instituto Socioambiental em Altamira, destaca a força do documentário como formador de opinião. “O interessante é apresentar a temática para um público que não está acostumado a receber esse tipo de informações que muitas vezes são veiculadas apenas na imprensa alternativa”. O documentário tem inegavelmente esse poder, principalmente ao ser apresentado em espaços que não são restritos aos que já tem interesse prévio nas questões ambientais, como foi no caso da estreia em um festival de cinema de grande porte.
Documentário militante
O filme assume uma posição clara desde seu título, Vozes não consideradas. Por acreditar que os argumentos desenvolvimentistas já têm bastante difusão, o diretor optou por dar voz “ao outro lado”. O documentário está a serviço dos excluídos do debate: os que são contra porque serão os mais atingidos. Ainda assim, há umas poucas declarações favoráveis à construção da hidrelétrica. Do ponto de vista da narrativa, fazem sentido. Os depoimentos favoráveis de Sandra Xavier, secretária executiva do consórcio Belo Monte, e de Vilmar José Soares, coordenador da organização Fort Xingu, uma das únicas organizações locais favoráveis a hidrelétrica, acabam por legitimar os argumentos que pesquisadores e ativistas contrários expõem. Sandra diz que a Eletronorte priorizará a contratação de mão de obra local (ainda que 20 mil já tenham migrado para Altamira e a previsão total seja de 100 mil migrantes), para que o tal boom de empregos e supostas melhorias de vida cheguem à população dali. Porém, quando perguntada sobre o que ocorrerá depois, diz “aí, ninguém sabe”. Provocou risos na plateia.
Lucimar Barros da Silva abriu a porta de sua casa para o documentário, expôs suas dores e convocou os amigos para se pronunciarem diante das câmeras. Agricultor de cacau do km 27 da Volta Grande do Xingu, Lucimar já foi até falar com o presidente Lula, que lhe prometeu que não deixaria Belo Monte ser construída. Decepcionado com a quebra da promessa, Lucimar deságua as dores na ponta da caneta. Em uma das cenas mais bonitas do filme, o agricultor lê um de seus poemas à luz de vela.
Como mostram outras experiências, como a hidrelétrica de Tucuruí, no mesmo Pará, ser vizinho de uma hidrelétrica não é garantia de eletricidade.
Para Lucimar, que foi ao cinema pela primeira vez para assistir o documentário do qual participou, o filme é um documento do que acontece lá e deve ser usado com poder de tal. Ele acredita que quando o filme for exibido na região vai esclarecer a cabeça de muita gente, que mesmo estando no olho do furacão, não sabe ao certo o que está acontecendo.
A desinformação da população sobre Belo Monte também é mostrada no filme. Em uma determinada cena, a matriarca de uma família da periferia de Altamira, região que vai ser alagada, faz graça das “cartilhas”. Diz não entender nada. A forma e linguagem da comunicação escolhidas pela Eletronorte não condizem com o nível educacional dos afetados, muitos dos quais são analfabetos.
Divulgação de uma causa
Produzido de forma totalmente independente, sem aportes financeiros externos e com doação de serviço de todos os envolvidos, o filme também vai ser distribuído através de parcerias. Em agosto deve começar a exibição do documentário em cerca de 80 cineclubes de todo Brasil, através da parceria com a distribuidora DF5, a contrapartida audiovisual do Fora do Eixo. As exibições nos cineclubes são sempre seguidas de debates com os realizadores, presenciais ou via videoconferência. No caso do À Margem do Xingu, a equipe quer sempre dar preferência para que os personagens e especialistas estejam presentes nos debates: “Nós não somos importantes, já fizemos nossa parte. O que é essencial é que os personagens sejam ouvidos”, garante o diretor Damià Puig.
Parte do plano de divulgação é inscrever o documentário em mais de 100 festivais pelo mundo. Já foi aceito no Raindance de Londres e convidado pelo Big Apple Film Festival, de Nova York. “Imprescindível mesmo, como já lembrou Lucimar, é exibi-lo na região do Xingu”, afirma Rafael Salazar. O reconhecimento do trabalho produzido colaborativamente vem do fato dos movimentos pró Xingu quererem usar o documentário como ferramenta de comunicação e conscientização. Ongs, como o Instituto Socioambiental e o Movimento Xingu Vivo, além da Associação dos Documentaristas do Pará, estão organizando exibição em terras paraenses.
Levar os filmes para locais de discussão por excelência, como escolas e universidades também consta no projeto de distribuição.
A divulgação do filme se confunde com a articulação de outros movimentos que estão lutando pela mesma causa: impedir a construção da hidrelétrica de Belo Monte. A experiência que viveu no 15M, grande movimento popular por transformações políticas de base na Espanha, inspirou o diretor Damià Puig a utilizar as redes sociais como forma de agregar pessoas e organizações que partilham das mesmas motivações. “As pessoas se tornam amigas do documentário no Facebook e mandam mensagens contando suas experiências, perguntando quando o documentário vai ser exibido em suas localidades e trocando contatos. Tem um grupo de 10 estudantes de Salvador que foram a Belém para um Encontro de Comunicação e, de lá, vão descer para Altamira para ver de perto o que está acontecendo e ajudar como puderem. Nós os colocamos em contato com o pessoal que conhecemos por lá. É assim que está acontecendo”, conta o diretor.
Luta com data de validade
É fato que o uso do documentário na militância e conscientização tem data de validade para vencer. Por isso deve ser espalhado e assistido enquanto ainda há (alguma) chance de impedir Belo Monte.
Para esse propósito ele é datado, mas não pode ser considerado perecível. Como obra, após esse período, ele se transforma em documento histórico que pode ser utilizado para entender o contexto de criação da hidrelétrica e as lutas que aconteceram durante toda a tramitação do projeto. Rafael Salazar, o produtor que disse a frase do início da reportagem, sabe bem disso. Antes de se envolver com o documentário À Margem do Xingu- vozes não consideradas, ele já havia estado no rio Madeira. O ano era 2007 e as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio ainda seriam construídas. Ele e dois amigos, recém saídos de uma especialização em documentário chegaram a gravar o que acontecia por lá. Não tinham, porém, maturidade para realizar o projeto. Salazar agora vê que “temos que acompanhar o processo; quando ainda está no papel, na construção e as consequências que vêm depois. Com Belo Monte vamos fazer isso. Seguir os desdobramentos e deixar um registro.”
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