A fome. A fome tem uma força tremenda, sacode, destrói, deforma, aniquila homens, regiões, povos. É metódica, trabalha com paciência, não tem pressa. Presenteia, entre todos, a morte mais humilde e tranquila.
A reportagem é de Domenico Quirico, publicada no jornal La Stampa, 14-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos olhos desses moribundos, não se lê sinais de vida ou de expressão. Molécula após molécula, a fome espreme as gorduras e seca as albuminas das células humanas. Torna os ossos tão frágeis que se quebram ao toque, faz encurvar as pernas das crianças, dilui o sangue que flui sem força e sem peso, faz girar a cabeça, disseca os músculos, corrói por fim o tecido nervoso.
Esse é o primeiro passo: depois, a fome esvazia a alma, afugenta a alegria e a esperança, tira a força de pensar e provoca resignação, egoísmo, crueldade, indiferença.
Em Ogaden, na Etiópia, mães, cegas pela fome, jogaram seus filhos nos poços secos, deixaram-nos na beira da estrada, apoiados em um arbusto. Sem se voltarem para trás, recomeçaram a caminhar, passo a passo. Alimento, comida, comer alguma coisa, qualquer coisa: grama seca, dejetos, arbustos, raízes, animais mortos. Por causa da fome, o homem perde o que o torna humano.
O lugar do que falamos chama-se Daab. Localiza-se no Quênia do Norte, a 80 quilômetros da fronteira com a Somália. Por que falamos disso? Dez, doze milhões de pessoas vítimas da carestia que correm o risco de morrer de fome no Chifre da África? Os números são coisas abstratas, não nos dizem nada. Os rostos sim. Os que encontramos em Daab, o maior campo de refugiados no mundo: 400 mil pessoas, 54 mil apenas em junho, três vezes mais do que em maio.
Depois, na semana passada, o ritmo acelerou ainda mais, 20 mil. Agora, todos os dias chegam quase 2 mil. E depois há os outros, aqueles que permaneceram na selva marcando a estrada, sobretudo crianças menores de cinco anos, esqueletos castigados pelos ventos áridos e secos do deserto, para guardar outros esqueletos, os rebanhos mortos diante de poços já secos que ardem na onda de calor feroz.
Um quarto dos somalis fogem do seu país reduzido a uma plaga amaldiçoada pela guerra e pela seca. A sua culpa, se fosse possível dizer, é de não saber qual é a sua culpa. Se a caridade internacional os recusa, se a piedade os rejeita, nada mais os acolherá, e ninguém vai salvá-los. Os homens do Alto Comissariado para os Refugiados da ONU se consomem para alimentar, cuidar, acolher. Um novo campo deve ser construído não muito longe daqui, outros já estão em projeto. Mas a caridade internacional se cansou, a Somália evoca confusões, desastres e decepções.
Ontem, o secretário das Nações Unidas, Ban Ki-moon, lançou um apelo pelos “11 milhões de homens que, na África do Leste, não podem esperar”, porque “é preciso pôr fim ao sofrimento agora, já”. Ele lembrou que só a metade do um bilhão e meio de dólares necessários para a operação de socorro está disponível. Agora, todos falam da seca, acusam a Natureza.
Como Elisabeth Byis, porta-voz do escritório de coordenação de assuntos humanitários da ONU: “Não se via nada semelhante há 60 anos. A seca se somou à do ciclo anterior da qual estas áreas ainda não haviam se levantado. O gado, sem nutrição, começou a morrer, e depois os homens, porque os preços dos alimentos explodiu”. Eis os elementos daquela que poderia se tornar, nos próximos dias, “uma tragédia de proporções inigualáveis”.
Certamente, a natureza tem a sua culpa: a seca chegou e devorou tudo, o verde, as culturas, os rios, as acácias que definham na savana cobertas de poeira. No entanto, é preciso gritar tudo isso, para que não haja confusão, para que, divididos pela responsabilidade, nem todos nos confraternizemos, no fim, na mentira.
A Grande Fome (novamente, como há 20 anos, nos mesmos lugares: isso não lhes diz nada?) não depende da meteorologia, mas sim de um círculo fechado desumano. Na Somália, no Ogaden da Etiópia, no norte do Quênia, as pessoas convivem com a seca desde sempre, se deslocam, se esforçam, desfrutam todo riacho, toda poça, resistem. O que os mata, o que os transforma em fugitivos que dependem de caridade são a guerra e a política. Há 20 anos, de uma carestia à outra, a Somália não tem paz: antes, os senhores da guerra, depois os shabab, os islâmicos que querem construir sobre a tragédia a sua sociedade perfeita, divina.
Tudo está abalado e invertido, não há Estado, nem mesmo aquele miserável e degradado da África desesperada. Um povo inerme é refém da loucura política. O Ocidente, prepotente e falador, observou tudo isso com uma curiosidade intensa que desperta coisas assustadoras. Depois, zangado, alimentou a guerra para se livrar dos islâmicos, sem sujar suas mãos.
Por fim, se esqueceu deste pedaço de humanidade muito complicado e periférico. Agora, os shabab anunciaram que permitirão que organizações de ajuda entrem nos territórios por eles controlados para prestar ajuda. Antes que seja tarde demais. Outra vez.
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