Camilla Costa, da BBC Brasil em São Paulo
“Aceita?” é a pergunta com a qual o artista plástico paulistano Moisés Patricio, de 26 anos, oferece a mão – quase literalmente – a seus seguidores no Instagram.
Há quase dois anos, ele se impôs o desafio de publicar uma foto por dia na rede social, como parte de um projeto que questiona o racismo e a intolerância religiosa de cada dia, motivado pela própria experiência.
“No meu cotidiano, as pessoas de modo geral têm muita dificuldade de absorver a informação de que eu sou um artista visual, porque sou um jovem negro. Digo que sou artista plástico e elas me perguntam: ‘tá, mas o que você faz?’. Acham que eu sou um auxiliar de pedreiro ou coisa assim”, disse à BBC Brasil.
“Me propus a fazer uma foto da minha mão esquerda todos os dias, por dois anos, para tentar entender essa dificuldade das pessoas de aceitar a produção intelectual de um artista negro. Com o histórico escravagista que nós temos, há uma tentativa de reduzir a contribuição do negro à mão de obra.”
Aos seus mais de 1.500 seguidores, Patricio mostra, todos os dias, objetos que encontra nas ruas por onde anda – do seu bairro, na zona leste de São Paulo, até sua galeria de arte, nos Jardins –, gestos e frases que representam situações que viveu ou testemunhou.
“Para mim, era importante que eu não buscasse os objetos, que eu os encontrasse. A obra é mais a minha caminhada do que a própria fotografia. Quando sofro algum tipo de preconceito, busco naquele lugar algo que possa representar essa angústia. Grande parte das imagens são respostas a essa violência. Sempre que foi para a galeria, nos Jardins, volto com mil histórias de violência, de seguranças seguindo homens negros na rua”, diz.
Em fevereiro, motivado por estes exemplos, o artista plástico idealizou a performance “Presença negra”, em que convidada artistas, ativistas e escritores negros para comparecerem, em massa, a aberturas de exposições em galerias de arte de São Paulo – espaços tradicionalmente ocupados por brancos.
“A história da arte no Brasil nasce com a mão negra e até hoje há uma rica contribuição. Mas aí quando você chega nas galerias de arte de São Paulo há artistas falando sobre o negro e sobre a escravidão, mas não está lá o negro refletindo junto – os profissionais negros, de modo geral, não participam dessa discussão”, afirma.
Imagens com ‘vida própria’
Fazer sua série de fotos ultrapassar os muros das galerias – onde já foi exposta – foi o principal motivo pelo qual Patricio escolheu o Instagram, que nunca tinha usado.
“Quando você entra no circuito de arte paulistano, vê que ele é fechado, as coisas são muito exclusivas, o grupo é muito pequeno. Eu pensei na arte como uma forma de me comunicar com o maior número de pessoas possível. O Instagram me possibilita o acesso a muitas pessoas. As imagens ganham vida própria, andam sozinhas pelo mundo”, diz.
O acesso à arte é um tema valorizado pelo jovem morador da periferia paulistana, que foi apresentado aos museus aos 11 anos, a partir de um projeto pedagógico do artista plástico argentino Juan José Balzi. Aos 14, tornou-se assistente em seu ateliê.
“Quando a arte foi estendida pra mim, Balzi me explicou que era uma ferramenta para me comunicar com as pessoas, mas que eu não deveria esquecer que vivo num país desigual e que estar em contato com a arte não me tornava melhor que ninguém”, relembra.
Nas fotos, a mão aberta de Patricio de vez em quando fecha-se em uma figa – antigo símbolo europeu de proteção, incorporado, no Brasil colonial, às religiões de matriz africana.
O preconceito com religiões afrobrasileiras foi determinante na história de Patricio que é, hoje, o único praticante do candomblé em sua família, que é evangélica.
“Meus bisavós, que eram do candomblé, sofreram com a intolerância religiosa nas décadas de 1930 e 1940 em Minas Gerais. Quando a família veio para São Paulo por causa dessa perseguição, meus pais resolveram não seguir a religião e ocultar essa herança cultural. Mas eles me respeitam muito”, conta.
“Muitas pessoas optam por esconder ou dissimular (sua religião) para não se prejudicar. Eu, por outro lado, tenho evidenciado cada vez mais isso. Vou pintando o mundo sem abrir mão da minha religiosidade, de mim mesmo.”
Confira algumas das fotos de Moisés Patricio comentadas por ele, a pedido da BBC Brasil:
“A cidade de São Paulo é fantástica. Por isso mesmo dói saber que há muito preconceito aqui, preconceito mesmo, contra baiano, contra nordestino… Ouvir certas aberrações da boca dos meus conterrâneos, e sempre acompanhadas da palavra baiano, me deixa bem triste.”
“O que me motivou a fazer essa imagem foi uma pesquisa realizada no Centro de Pesquisas Pew, dos Estados Unidos, sobre como a crise econômica mundial abalou a crença de que o capitalismo é o melhor sistema para se viver. A pesquisa revelou que no mundo desenvolvido, mais afetado pela crise, o apoio ao capitalismo vem ruindo. Ao mesmo tempo, os brasileiros despontam como um dos povos mais entusiastas do sistema. Saindo de casa, me assustei com a quantidade de coisas descartadas na rua e resolvi perguntar para 20 pessoas sobre o assunto. Por incrível que pareça, a palavrá ‘fé’ apareceu nas justificativas dos mais entusiasmados com o capitalismo.”
“O tijolo no brasil é um simbolo potente. Eu o elegi pra falar da crise econômica porque ele é um elemento central na construção e, especialmente, na reconstrução. Simboliza a história permeada pela esperança.”
“Durante cinco anos ofereci aulas de desenho, pintura e grafite para crianças e adolescentes em conflito com a lei. Diariamente me deparo com o desafio de lidar com as perspectivas dessas crianças e adolescentes na periferia de São Paulo.”
“Eu sou um entusiasta do personagem bíblico Salomão. Frequentemente tenho noticias da comunidade negra judaica (judeus africanos) via judeus brasileiros.”
“O Brasil tem um histórico escravagista e, por incrível que pareça, houve pouco avanço. O que me motivou a pensar nessa imagem foi o numero alarmante de cidadãos escravizado no século 21.”
“Recentemente têm se intensificado os conflitos políticos-religiosos. Sou perseguido e escuto relatos de agressões e perseguição aos adeptos dos cultos de matriz africana diariamente. Pensando nas possibilidades de um dialogo inter-religioso, me ocorreu essa imagem.”
“Existem elogios, falas e provérbios tendenciosos, maldosos e preconceituosos causando danos relacionais e até morais, já que são usados como agressão. Eu sou vítima de muitos tipos de preconceitos, é comum me deparar com falas do tipo: ‘Nossa, como você é cheiroso e inteligente’. Impregnada de preconceito do tipo ‘ele é preto, mas é limpinho’. Essa imagem evoca uma crítica ao racismo, mas muitas pessoas no Instagram não a compreenderam.”
“Um dos meus objetivos como esse trabalho é resistir a conclusões redutoras sobre a negritude: o que é ou o que não é (ser negro). Tenho empregado estratégias conceituais para analisar o passado e presente da humanidade e seus desdobramentos na atualidade.”
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Imagem destacada: Artista plástico diz que fotografias questionam estereótipos e preconceitos – mas alguns admiradores não entendem (Marcelo Salvador)