Por Patrícia dos Santos Pinheiro e Sérgio Botton Barcellos*
Não muito diferente do Brasil em algumas questões no que tange à desigualdade social, vamos comentar uma experiência que tivemos no Senegal em junho de 2014. Em uma tentativa de conhecer um pouco mais esse país, antiga colônia francesa, saímos de Dakar (onde estamos desde abril de 2014), em direção à Casamance, ao sul do país, de ônibus para voltarmos de barco, dias depois.
Esse breve relato não tem a intenção de reivindicar padrões ocidentais para uma vida cotidiana africana, sim pensar no porquê das abismais diferenças na qualidade de vida e no tratamento das pessoas de acordo com o que se tem ou conforme o que se propõe a pagar. Poderíamos dar inúmeros exemplos, como as condições insalubres das cidades, o saneamento básico precário, a seletividade do serviço público que não favorece aqueles que não possuem recursos financeiros e o descaso com os bairros populares (a falta de água e luz programadas, por exemplo). Mas aqui falaremos especificamente da mobilidade, a partir de um pequeno retrato do que vimos do cotidiano dessa parte da África em uma viagem de ônibus do norte ao sul do Senegal. Inicialmente cabe falar que as condições de deslocamento em geral são bastante adversas para aqueles que não possuem transporte particular terrestre ou aéreo, mostrando algo que é refletido também em outras facetas da vida cotidiana: a desigualdade social.
Enquanto milhares de pessoas se amontoam para circular, seja no interior de uma cidade, seja para além de suas fronteiras, em condições extremas, outras poucas “não colocam seus pés na areia”, ou seja, circulam somente em seus luxuosos carros ou até aviões e vivem ilhados em mansões, com pouco contato com a realidade senegalesa. Nesse caso, podem se tratar tanto de estrangeiros não africanos (mas nem todos), chamados de Toubabs (brancos) pelos senegaleses, com um quê pejorativo, ou mesmo da elite local, que reforça essa desigualdade e não tem interesse, evidentemente, em perder seus privilégios.
Nos questionamos, com isso, por que, ao mesmo tempo em que se multiplica o transporte particular em grandes carros 4×4, muito utilizadas pela cooperação internacional que está em praticamente todo continente (da qual também participa a elite africana), o transporte coletivo do senegalês comum é muitas vezes precário e inseguro. Até a região de Casamance, via terrestre, o transporte coletivo pode ser feito em taxi-brousse, com sete lugares (muito apertados), ou de ônibus (mais apertados ainda). O ônibus é sem banheiro, sem ventilação e sem o corredor livre, pois o mesmo é ocupado por bancos móveis que permitem um deslocamento muito limitado (é preciso que as pessoas sentadas nesses bancos se levantem para que alguém saia de seu lugar).
Seguindo o trajeto da viagem, chegamos em outra questão: as ilusórias fronteiras entre os países, construídas pelo intenso e velado processo de colonização europeu do continente. Algo que observamos e ouvimos bastante por aqui é que os senegaleses e africanos em geral possuem em seu ethos o deslocamento e a viagem como modo de vida. Seja em busca de trabalho, principalmente do intenso comércio, ou mesmo por outros motivos, apesar de todas as dificuldades.
Mas trajetos e rotas de comércio feitos desde a Antiguidade atualmente contam com fronteiras completamente alheias ao desejo da maioria dos africanos, ao mesmo tempo que pouco coíbem o que dizem que é proibido, como o tráfico de drogas, dado o alto grau de corrupção desses postos fronteiriços. Segundo relatos a situação era pior ainda em um passado recente. Por outro lado, atualmente, campanhas de mobilidade internacional são realizadas para a diminuição dos entraves para o trânsito na África, com base no acordo de livre circulação feito há mais de 30 anos entre os países pertencentes ao CDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), a saber, Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.
No deslocamento até Casamance, é preciso passar pela Gâmbia, país de colonização inglesa que se encontra no interior do Senegal. Para evitar essa travessia, seria necessário viajar mais 450 quilômetros, passando por Tambacounda, para circundar a Gâmbia. Saímos de Dakar as 18h30 pela estrada Transgambiana, a rota mais utilizada para a travessia. Chegamos à fronteira com a Gâmbia cerca de 1h da madrugada. Nesse local, onde se encontra o posto de controle aduaneiro, centenas de pessoas que vão chegando ao longo da madrugada em ônibus, carros e taxi-brousses aguardam, dormindo no chão (pois dentro do ônibus é impossível ficar, devido ao calor), em condições insalubres, até 6h da manhã para atravessar o posto aduaneiro para simplesmente atravessar o país rumo ao sul do Senegal.
Nesse local, um comércio intenso de todo tipo de item: água, comida, sapatos, lanternas. Após mostrar os documentos no lado senegalês, do outro lado da fronteira, no posto gambiano, em Farafenni, uma taxa de entrada é cobrada de todos, organizada por um responsável do próprio ônibus. Para senegaleses, a taxa cobrada foi de mil francos CFA. Para outras nacionalidades, pode variar, conforme a vontade dos policiais.
Com a justificativa de que, apesar de sermos brasileiros, tínhamos um visto senegalês, nos cobraram cinco mil francos na entrada e mais cinco na saída, totalizando 20 mil para duas pessoas, sem a possibilidade de obter um comprovante de pagamento ou ao menos saber o nome dos policiais que nos atendiam (quando perguntamos o nome da oficial do posto de saída, ela me disse, de forma muito grosseira: Vá logo ao Senegal!). Segundo o primeiro oficial que nos atendeu, se não tivéssemos o visto senegalês (obrigatório para entrar e viver no Senegal), pagaríamos o mesmo que os demais, o que na verdade foi uma mera desculpa. Pesquisando no site do governo gambiano, vemos que é requerido visto dos brasileiros que ficam na Gâmbia, mas o site não fala nada sobre o visto de trânsito. Já os relatos pessoais de viagem são diversos, mas frequentemente incluem o pagamento de alguns francos CFAs para “agradar” os policiais, seja em postos aduaneiros, seja em blitz na estrada.
Mas a questão aqui não é de se colocar em uma posição de estrangeiros “vitimizados”, mostrando o que a África “precisaria” para ser “civilizada”, pois falamos de algo mais amplo, falamos de respeito humano, e do peso das hierarquias e estruturas de poder arcaicas dos estados africanos (colonizados e ainda com grande influência europeia) no tratamento de pessoas comuns que não têm ou não querem despejar dinheiro para poderem ser bem tratados. Nesse sentido, para entrarmos novamente no Senegal em nossa viagem, após uma longa espera de três horas para a travessia de barca, todos os não senegalenses (nós, guineenses e africanos de outras nacionalidades que viajavam no mesmo ônibus), ao chegarem no posto aduaneiro senegalês, tiveram que pagar mais mil francos à polícia senegalesa, algo que deixou alguns passageiros surpresos.
Exemplo do quadro de dificuldades mais amplo e ainda mal resolvido, um bloqueio da passagem dos caminhões e ônibus senegaleses e gambianos foi promovido no início de 2014 pelo sindicato senegaleses dos trabalhadores dos transportes por três meses. Nesse período, pessoas e produtos que seguem entre o sul e o norte do Senegal (senegaleses e gambianos), não podiam passar pela travessia em barca na cidade de Farafenni, bloqueio justificado como uma resposta ao aumento de mais de 100% do valor da taxa de circulação de caminhões, decisão unilateral do governo gambiano. Com esse bloqueio, o sul do Senegal, que recebe muitos produtos e pessoas de Dakar, evidentemente foi bastante prejudicado, mas em períodos “normais”, ambas as populações têm a sua mobilidade cerceada com as escolhas de seus governantes e com as atitudes dos policiais.
Coloca-se aí a questão do impedimento da livre circulação, apesar de antigos acordos entre determinadas regiões africanas, como a África Ocidental, e o corte dos fluxos migratórios sazonais. A constatação mais importante, ao viajar de ônibus, é que o sentido das fronteiras, da demanda por documentos e das brechas para o suborno policial, além das taxas oficiais, parecem muito distantes de uma regulação efetiva, ao estimular relações de maus tratos. As taxas (oficiais), por exemplo, não representam retorno em termos de estruturas, já o suborno policial só faz as pessoas que se beneficiam disso se agarrarem mais ainda às suas posições na hierarquia social. Bom, e os governos? Respondem a isso com a omissão, com promessas, com descaso ou falta de diplomacia.
Esse breve relato também é um alerta às demais pessoas de outras nacionalidades, que desejam viver uma vida mais próxima da maioria da população africana, sem luxos, mas que, exatamente por isso, podem encontrar mais essa dificuldade, a do deslocamento dentro da própria África, seja pela instabilidade política em alguns países, seja pela polícia corrupta, ou ainda, em alguns casos, por um tipo de “acerto de contas” da xenofobia que os povos africanos passaram e passam ao longo da sua história junto ao Ocidente.
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* Patrícia dos Santos Pinheiro é pesquisadora e faz doutorado no CPDA/UFRRJ, atualmente em intercâmbio no Senegal; Sérgio Botton Barcelos faz doutorado em Ciências Sociais no CPDA/UFRRJ e atua na assessoria da PJR.