“Eles querem acabar com a história munduruku, mas nós não vamos deixar”. A cada frase entoada pelo cacique, os 230 índios ao seu redor gritam “Sawé!”, expressão que mistura saudação com grito de guerra.
O mesmo grito foi entoado no início de dezembro, em Paris, durante a COP-21, conferência sobre mudanças climáticas das Nações Unidas. Dessa vez, a voz ao microfone era da indígena Maria Leusa Kaba Munduruku, que foi à França receber o Prêmio Equador. Concedido pela ONU, o prêmio reconhece o protagonismo do seu povo contra as usinas como uma ação de “sucesso proeminente na promoção de soluções sustentáveis”. Não é a primeira vez que a organização munduruku chama a atenção da comunidade internacional, a resistência dos indígenas já foi retratada pelos jornais Guardian, Washington Post, Aljazeera e BBC.
Os indígenas sabem costurar parcerias, manter aliados e têm líderes dedicados a estudar os seus direitos no Brasil e os mecanismos internacionais que podem ser usados em sua defesa.
A capacidade de organização e estratégia está alicerçada em sua própria tradição. Durante a assembleia, fica claro que a experiência em debates políticos é anterior à chegada das usinas. Os índios munduruku tem um rito próprio, que lembra um modelo de democracia participativa. Durante as reuniões, qualquer um pode falar – homem, mulher, jovem ou idoso –, pelo tempo que desejar. Todas as decisões têm que sair por consenso, não importando o tempo que isso tome. Nos quatro dias do evento, as reuniões se estenderam das primeiras horas da manhã até o sol se por. Para dar sustento, corria entre os participantes uma cuia com farinha e água, que era sorvida aos goles.
Além da pintura no corpo e cocares, os guerreiros participantes carregavam arcos e flechas, evocando a imagem de guerreiros destemidos e violentos com a qual ficaram mundialmente conhecidos no passado.
De caçadores de cabeças a estrategistas
No tempo em que dominavam a bacia do Tapajós, antes da chegada dos colonizadores, as expedições de guerra promovidas pelos índios munduruku duravam até seis meses e eram temidas pelas etnias vizinhas.
“Eles foram considerados a tribo mais bélica da Amazônia”, diz José Sávio Leopoldi, antropólogo da Universidade Federal Fluminense que estuda a história munduruku.
O nome “munduruku” foi atribuído por rivais e significa formiga vermelha, em alusão à sua formação quando atacavam. Segundo os relatos históricos, eles atacavam de surpresa no raiar do dia, com grande contingente de guerreiros e dizimavam a população adulta, trazendo as cabeças das vítimas como troféus. Mumificadas, elas eram fincadas em lanças e colocadas na frente das casas. Algumas dessas cabeças foram preservadas e fazem parte de coleções de museus brasileiros, ingleses e portugueses, levando a fama guerreira dos Munduruku para o mundo.
“A cabeça humana simbolizava poder”, explica Jairo Saw. “Hoje estamos em outra época e lutamos nossas guerras de outros modos, mas esse espírito guerreiro ainda está na gente”.
A área ocupada pelo povo munduruku era tão ampla que os colonizadores se referiam à região como Mundurukânia.
Para Tiago Vekho, antropólogo do Instituto Socioambiental que realiza sua pesquisa de doutorado sobre os Munduruku, a história ajuda a explicar a resistência atual. “Eles possuíam uma lógica espartana: eram uma sociedade voltada para a guerra. Hoje, eles se consideram em guerra contra o governo e é possível perceber, no cotidiano das aldeias, que todos estão mobilizados para isso”, diz.
Na disputa do presente, os índios munduruku evocam a sua história. Desenhos de cabeças mumificadas aparecem, por exemplo, nas placas da autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, uma das áreas onde vivem os indígenas.
As ações atuais são bastante diferentes das do passado. A autodemarcação é considerada uma das mais estratégicas linhas de resistência às usinas. Enquanto a Fundação Nacional do Índio (Funai) segura o processo de reconhecimento da Terra Indígena Sawré Muybu, área que será alagada, eles se muniram de facões e foram, eles mesmos, abrir picadas onde seriam as fronteiras do território. “Vivemos em um lugar tradicional, deixado pelos nossos antepassados. Como a terra é nossa, decidimos parar de esperar o governo e fazer nós mesmos”, diz Jairo Saw.
Um dos mais populosos grupos étnicos do país, há mais de 13 mil homens, mulheres e crianças munduruku espalhados por 850 quilômetros do rio Tapajós e afluentes. Sempre que há uma ação local importante, os índios se deslocam pelo território para dar apoio. Durante a autodemarcação, por exemplo, guerreiros viajaram ao longo de três dias para ajudar a abrir as picadas.
A união e a habilidade de resistir quando sob pressão também são constantes na história munduruku. No começo do século 19, os portugueses traçaram um acordo para diminuir os confrontos com a etnia. Quando chegaram as missões católicas, com o objetivo de catequizar e “civilizar”, muitos deles foram proibidos de falar sua língua e praticar os ritos tradicionais. Mas os indígenas preservaram esses conhecimentos, reinventando sua cultura para sobreviver ao domínio.
Apesar da proibição dos missionários ao longo de décadas, a língua munduruku sobreviveu e hoje é a mais falada pela população.
Grande parte das mulheres e crianças não falam o português.
A necessidade de pressionar o governo também não é novidade para eles. A demarcação da Terra Indígena Munduruku, que abrange a região norte da bacia do Tapajós, foi fruto da pressão do grupo. O processo começou em 1975 e só terminou em 2004, período durante o qual os indígenas acompanharam os estudos com mobilizações e cartas ao governo. Jairo Saw era uma criança, mas lembra de ver adultos de várias aldeias se reunindo e traçando estratégias comuns nos anos 70.
Hoje, ele é um dos muitos representantes da etnia que viaja para levar os argumentos contrários às usinas em reuniões com ministros e conferências da ONU. Os indígenas já ocuparam escritórios da Funai diversas vezes, assim como o canteiro de obras de Belo Monte. Eles também se articulam para abastecer o Ministério Público Federal com as informações para que a instituição mova ações contra a usina.
Alianças
Antecipando-se à chegada das usinas do Tapajós, os índios munduruku participaram das ocupações da usina de Belo Monte. A experiência serviu como lição de como não agir.
“Os indígenas do Xingu perderam a luta contra o governo. Eles eram vários povos diferentes, alguns foram cooptados, e acabaram se dividindo”, diz Jairo Saw. “Isso serviu para a gente ver que precisamos da união para fortalecer a nossa luta. Estamos buscando a confiança de outros povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e das pessoas que vivem nas cidades. Nossas lutas têm que acontecer juntas.”
Durante a Assembleia do Médio Tapajós, fica claro que esse esforço não é da boca para fora. Estiveram presentes pelo menos 23 lideranças Munduruku de outras regiões, outras etnias indígenas e ribeirinhos moradores de comunidades que também serão afetadas pelas usinas. A reunião também contou com representantes do Ministério Público Federal do Pará, que já ajuizou 19 ações judiciais tratando de violações contra índios e ribeirinhos da área.
Além de representantes de mais de dez organizações do terceiro setor, como o Conselho Indigenista Missionário, o Greenpeace e o Fórum da Amazônia Ocidental. “Os Munduruku são um povo muito politizado. Eles entenderam que não haveria condições de enfrentar a máquina governamental sem o apoio da sociedade brasileira, e as ONGs cumprem o papel de fazer essa conexão” diz Danicley de Aguiar, do Greenpeace.
O plano é estender ainda mais a rede de alianças. Eles já foram diversas vezes à Brasília para protestar contra medidas do governo que atingem os direitos indígenas como um todo. A viagem mais recente foi motivada pela PEC 215, que passa ao Legislativo o poder de demarcar novas terras indígenas. “A gente sabe que colocar essa decisão nas mãos da bancada ruralista vai deixar a situação ainda mais difícil para nós e nossos parentes”, diz Roseninho Saw Munduruku, presidente da associação Pariri, que representa sete aldeias de médio Tapajós.
A economia munduruku
Um munduruku acompanha as mudanças de nível e fluxo do rio com a mesma preocupação que um economista segue os índices de desemprego e inflação.
O rio é a base do seu sustento e sobrevivência, já que o peixe é a primeira fonte de alimentação. Em segundo lugar vêm a caça, a coleta e a roça, que dependem da saúde da floresta – que por sua vez depende do rio.
Por isso, o grupo é uma valiosa fonte para ajudar a prever os impactos ambientais das usinas. “Nós sabemos que a construção vai mudar tudo. Com o fim do regime de cheias do rio, as árvores na beira vão secar e os peixes não vão mais encontrar seu alimento”, afirma Jairo Saw.
“Eu tive que estudar muito para chegar à mesma conclusão que vocês”, disse Jansen Zuanon, biólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Convidado à assembleia para trocar conhecimentos com os indígenas, ele foi um dos autores de estudo contratado pelo Greenpeace. A organização encomendou uma série de análises para questionar o estudo de impacto encomendado pelo governo.
O estudo de impacto oficial, que ainda está em análise pelo Ibama, concluiu que os impactos à biodiversidade local seriam aceitáveis. Já a análise contratada pelo Greenpeace, e realizada por pesquisadores de instituições como a Universidade Federal de Pernambuco e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, concluiu que a usina ameaça a sobrevivência de peixes, pássaros e plantas. A análise independente aponta ainda que o estudo oficial deveria ser rejeitado, pois tem problemas na metodologia, na análise dos dados e no inventário de animais e plantas.
Até agora, os índios munduruku, MPF e entidades do terceiro setor parecem ter sucesso nos argumentos contra as obras. O leilão da usina de São Luiz do Tapajós estava previsto para acontecer em 2014, depois 2015 e agora foi adiado para 2016 por conta de problemas no licenciamento ambiental. Em junho, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética reconheceu que a questão indígena era um obstáculo para o licenciamento.
Os índios munduruku se ofendem sempre que empresas ou representantes do governo argumentam sobre o crescimento econômico que seria gerado pela obra. Já cansaram de explicar que certas riquezas não podem ser medidas em moeda. “Existem escrituras ao longo de todo o rio Tapajós, em seu corpo, nas pedras e árvores nos alertando. O branco não consegue ler, mas nossos pajés sim. Aquilo tudo é sagrado, faz parte de nós, e deve ser respeitado”, diz Jairo Saw.
“Não há nenhum valor que compre isso’, Maria Leusa completa. “Não vendemos nenhuma gota, nenhuma pedra. Não tem negociação”.
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Destaque: Em Paris para receber o Prêmio Equador, da ONU, as lideranças munduruku participam de evento que reuniu outras lideranças ambientais importantes do Brasil e do mundo. Foto: Fábio Nascimento /Greenpeace.