Felicity Clarke – RioOnWatch
No dia 19 de novembro, o Studio-X Rio sediou o evento Quilombo do Presente / Quilombo do Futuro, que explorou o significado dos quilombos de hoje. Realizado na véspera do dia da Consciência Negra, o evento reuniu pesquisadores e profissionais das áreas de história, arte, arquitetura e urbanismo para compartilharem conhecimentos sobre o significado especial e simbólico dos quilombos no Brasil do século 21.
Originalmente, os quilombos eram comunidades de refúgio estabelecidas por escravos que fugiram como forma de resistência ativa e sobrevivência em meio ao brutal e longo período daescravidão no Brasil. O evento do Studio-X descreve: “O quilombo é tanto mito e realidade na sociedade brasileira. Desde a Constituição de 1988, ele existe como território reconhecido pelo poder público, mas desde o surgimento do movimento negro, também como símbolo da cultura afro-brasileira. Nessa véspera do Dia do Zumbi, o Studio-X assume o tema para perguntar o que significa o quilombo hoje, tanto como território físico e simbólico na paisagem rural e urbana – do interior do estado do Rio de Janeiro até o centro da cidade”.
O evento foi dividido em duas partes: o primeiro painel discutiu a prática de historiadores que trabalham diretamente com comunidades quilombolas para documentar práticas culturais e relações de gênero. O segundo painel explorou o atual projeto urbano e o Circuito da Herança Africana na região do Porto do Rio, um local de grande importância para a história brasileira.
Quilombo do Presente / Quilombo do Passado
A primeira apresentação foi da historiadora Mariléa de Almeida que investigou a experiência de mulheres quilombolas. Em sua pesquisa Mariléia entrevistou mulheres lideranças das comunidades quilombolas de Santana e São José da Serra no Sul do Estado do Rio de Janeiro, para “tornar visíveis as múltiplas experiências dessas mulheres negras quilombolas ao negociarem, traduzirem e problematizarem os discursos sobre seus corpos”. Mariléia citou que temos oficialmente registradas em torno de 2400 comunidades remanescentes no Brasil, das quais apenas 216 possuem o título definitivo de seus territórios. Ela estima que incluindo as comunidades não oficialmente reconhecidas, o número de quilombos no Brasil pode ser maior que 5000.
Mariléia de Almeida discutiu o processo de “se tornar quilombola” e o caminho de orgulho que a mulher nessas comunidades atravessa na negociação de suas subjetividades e poder. No entanto, ela destacou que a história da resistência negra é dominada por figuras heróicas como Zumbi de Palmares que enraízam a identidade negra na experiência heterossexual masculina e que essas narrativas dominam e desumanizam as mulheres negras.
A apresentação passou a explorar os vários significados da prática cultural do jongo, uma dança e gênero musical originário de comunidades quilombolas, e como estes se relacionam com a experiência, a resistência, o corpo e o processo de “tornar-se quilombola“:
“Para uns, o jongo é um fazer político; para outros, ainda há um sentido religioso. Alguns não desejam ficar presos aos significados do passado; outros o transformaram em espetáculo ou em uma prática ligada apenas ao divertimento. Esses saberes apontam que as práticas culturais e seus significados são construídos por aqueles que o praticam por meio de sentidos sempre provisórios e situados. A incorporação desses saberes à narrativa historiográfica desloca o foco da morte do estereótipo para a vida que pulsa nos corpos de forma sutil, provisória e contingente.”
A historiadora Hebe Mattos fez uma apresentação sobre ‘Passados Presentes – Memória da Escravidão no Brasil‘, um projeto que visa reconhecer as histórias dos quilombos e estimular um turismo de memória no estado do Rio de Janeiro.
De acordo com o site do projeto: “em parceria com as comunidades, [estão sendo construídas] exposições permanentes no Quilombo do Bracuí, no Quilombo de São José da Serra e na cidade de Pinheiral. A sinalização turística e os memoriais a céu aberto buscam honrar as vítimas da tragédia da escravização e celebrar o patrimônio cultural negro erguido em terras brasileiras pelos que sobreviveram“. Hebe Mattos explicou como o projeto inclui um aplicativo de smartphone para mapear os lugares e memória de quilombos no estado do Rio de Janeiro. No próximo ano, o aplicativo incluirá pontos da cidade do Rio e em particular daregião do Porto, o porto de chegada para dois dos dez milhões de africanos escravizados trazidos para todas as Américas.
A região do Porto nos dias de hoje foi o foco da segunda parte do evento que abriu com uma apresentação de Clarissa Diniz, curadora assistente do Museu de Arte do Rio localizado na Praça Mauá, na Zona Portuária. “O papel do museu é pensar sobre a história do Rio e propor diferentes leituras dos problemas e territórios”, ela disse. Clarissa apresentou imagens da principal exposição do museu de 2014, ‘Do Valongo à Favela: O Imaginário e Periferia‘, que ligava a escravidão no passado do Rio com as favelas de hoje. Ela argumentou, “para falar do território tem que desterritorializar e pensar outras situações e equivalências”.
Apresentando o Circuito da Herança Africana do Rio
A outra apresentadora foi Sara Zewde, urbanista e arquiteta paisagista americana, cuja família é de origem etíope, que recebeu a prestigiosa bolsa Olmsted para desenvolver o projeto para o Circuito da Herança Africana na Região do Porto do Rio, o tema de sua dissertação de Mestrado em Arquitetura Paisagista no departamento de Design de Harvard. Sara está atualmente trabalhando no Instituto Rio Patrimônio da Humanidade da prefeitura para implementar o projeto.
Em uma apresentação detalhada, Sara apresentou sua metodologia e experiência para o desenvolvimento do Circuito da Herança Africana, a partir da pergunta inicial de como desenhar um projeto que honre a experiência negra e a sua subsequente pesquisa com um projeto de trabalho em torno da história da região do Porto e das tradições afro-brasileiras, e como concretizar os planos para a implementação do Circuito.
Sara Zewde argumentou que o modelo tradicional de memorial ou estátua seria inapropriado para honrar a experiência afro-brasileira. “A memória afro-brasileira no Cais do Valongo é uma memória cultural que causa tensão nos limites do conceito de memorial. E, por isso, ele deve romper com as tradições arquitetônicas de memorial”.
O referencial teórico desenvolvido para o Circuito explora os conceitos de tempo não-linear das tradições espirituais afro-brasileiras, artes afro-brasileiras, como capoeira e dança, e delineamentos de espaço na cultura afro-brasileira em interação com o sentimento, a experiência e a vida cotidiana.
Analisando o local da zona portuária conhecido como Pequena Africa, Sara Zewde descobriu que há milhões de anos o mercado de escravos no Valongo tocava a atual costa oeste Africana e até hoje a terra tem o mesmo tipo de solo e plantas características. Assim como as tradições culturais, os africanos escravizados trouxeram plantas nos navios que floresceram nas novas terras.
Em uma série de mapas e diagramas, Sara explorou tanto a geografia histórica da região de acordo com a movimentação e a experiência de africanos escravizados, incluindo o porto de chegada, armazéns, mercados de escravos e hospital, e representações visuais das tradições culturais afro-brasileiras tais como capoeira e ritmos de samba.
Do Circuito Sara disse: “é uma constelação de projetos, entrelaçada no espaço cotidiano da Pequena África e da ampla Zona Portuária para destacar e enquadrar essas culturas”. A visão e sugestões para o circuito incluem o reconhecimento e a preservação do local arqueológico, e um projeto destacando as espécies de plantas trazidas por escravos africanos e uma potencial praça incorporando uma camada de água para dar a sensação de caminhar sobre o mar, honrando o significado espiritual da água nas religiões afro-brasileiras e a viagem através do oceano a partir da África.
O palestrante final foi o arquiteto Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, que falou sobre a ideia de herança como um conceito relativamente recente na história, que somente começou a ganhar força nos anos 70 e 80. Sobre os planos para desenvolver o Circuito da Herança Africana ele citou a importância de consolidar atividades turísticas por afro-brasileiros na região para fortalecer a economia do Circuito.
Fajardo colocou questões quanto a representação da experiência negra nos espaços públicos: enquanto muito da arquitetura histórica foi construída por afro-brasileiros, esta é uma representação do branco colonial. “Qual é a representação do negro na cidade?” Ele perguntou. “Precisamos trazer esse debate para o território e a questão do acesso. A dimensão territorial passa longe de ser resolvida e precisa avançar”.
O evento se concluiu ao som de ritmos afro-diaspóricos produzidos pelos DJs Chief Boima eMaga Bo.