O governo e a Justiça têm culpa no conflito sangrento entre índios e fazendeiros
Por Rodrigo Martins, de Dourados (MS), no CartaCapital
As margens da Rodovia MS-384, entre as cidades de Antônio João e Bela Vista, um bloqueio militar obriga todos os veículos a parar. Com fuzis a tiracolo, os soldados solicitam os documentos dos ocupantes do carro, revistam o porta-malas, tiram fotografias e registram as informações em uma planilha. O minucioso procedimento parece parte de uma operação de combate ao narcotráfico ou ao contrabando, problemas comuns nessa região de Mato Grosso do Sul, próxima à fronteira com o Paraguai. Mas o engano não tarda a ser desfeito. Os homens do Exército vigiavam, na realidade, a via de acesso a três fazendas ocupadas por índios da etnia Guarani-kaiowá no fim de agosto.
Eles reivindicam a posse da terra indígena Ñande ru Marangatu, área de 9,3 mil hectares homologada pelo governo Lula em 2005. O processo de “desintrusão”, com pagamento de indenização aos proprietários, jamais foi levado adiante, graças a um mandado de segurança, com ordem de reintegração de posse concedido aos fazendeiros pelo então ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal. Desde então, a posse das terras está sub judice.
Restritos a uma área de 300 hectares, cerca de 1,4 mil indígenas decidiram ocupar o terreno que lhes fora prometido. A reação não tardou. Em 29 de agosto, após uma reunião com parlamentares no Sindicato Rural de Antônio João, os proprietários tentaram retomar à força as fazendas ocupadas. A violenta ofensiva resultou na morte do kaiowá Simão Vilhalva, abatido com um disparo de arma de fogo no rosto. “No meio da confusão, ele correu para acudir o filho de 5 anos e acabou baleado. Um pistoleiro devia estar entocado no riacho, atrás daquele barranco”, conjectura Mariano Fernandes Vilhalva, de 35 anos.
Com o olhar perdido sobre o túmulo do tio assassinado, o indígena ajeita uma sacola de roupas e um desgastado par de tênis sobre a cova aberta na fazenda. Pela tradição dos Kaiowá, os pertences de um falecido devem ser deixados com ele. “Jamais vamos abandoná-lo. Agora, o único jeito de nos tirar daqui é se matarem todos nós.”
Os Kaiowá garantem ter reagido com pedras e flechas após os produtores iniciarem os primeiros disparos. Além de armas de fogo, teriam sido utilizadas munições não letais, entre elas balas de borracha, o que alimenta as desconfianças da participação de policiais na ofensiva. Dezenas de indivíduos, dos dois lados do front [quem, por exemplo, do ‘outro lado’? (TP)], idosos e crianças incluídos, saíram feridos do confronto. “Lembro apenas de ter sido jogado no chão e receber várias pancadas”, conta o indígena Lázaro Franco, de 42 anos, ao mostrar a cicatriz dos ferimentos na cabeça. Somente após a Força Nacional chegar ao local foi possível pôr fim à lamentável cena de faroeste. Uma trégua para uma guerra ainda longe de um desfecho.
Por tratar-se de um conflito fundiário a envolver povos indígenas, a Polícia Federal assumiu o inquérito para investigar o caso. Tropas da União foram mobilizadas para garantir a segurança local. “Não podemos resolver a situação deles, estamos aqui só para evitar novos conflitos”, explica o capitão Santana, do Exército, que dispõe de cerca de 300 homens de prontidão na área. O efetivo é complementado com agentes da Força Nacional e do Departamento de Operações de Fronteira, força policial subordinada ao governo estadual.
“Esperamos que eles continuem por aqui, pois o clima ainda é muito tenso”, diz Isaías Sanchez Martins, de 35 anos, líder de uma das “retomadas”. “Entramos nessa fazenda na madrugada de 22 de agosto, após uma longa caminhada pela mata. O proprietário daqui é mais tranquilo, só pediu para a gente ajudar a arregimentar o gado dele. Não quer confusão, quer apenas que o governo resolva logo a situação e pague a indenização a que tem direito.”
Após a morte de Vilhalva, a Fundação Nacional do Índio recebeu mais de uma dezena de denúncias de ataques semelhantes em outros acampamentos indígenas. No início de setembro, o Ministério Público Federal iniciou uma investigação para apurar a formação de uma milícia armadas de fazendeiros que tentou remover à força os indígenas acampados em uma área do Distrito de Bocajá, a 30 quilômetros de Dourados.
O presidente do Sindicato Rural de Rio Brilhante, Luís Otávio Britto Fernandes, teria usado redes sociais para convocar os produtores à ofensiva. Os Kaiowá reivindicam a posse da terra que chamam de Guyrakamby’i. O inquérito corre sob sigilo. No município de Iguatemi, extremo sul do estado, indígenas da comunidade Pyelito Kue denunciaram ter sido vítimas de um ataque de pistoleiros em 18 de setembro. Segundo eles, cerca de 20 índios foram amarrados, levados às margens de uma rodovia próxima e acabaram barbaramente espancados pelos jagunços.
Em Paranhos, indígenas da etnia Guarani Ñandeva também foram alvo de pistoleiros na madrugada de 19 de setembro. “Eles chegaram às 4 horas da manhã, atirando em todo mundo. Tivemos de correr, buscar abrigo atrás de árvores, enquanto eles ateavam fogo nas nossas barracas”, conta o líder Erpídeo Pires, de 47 anos. Baleado na linha da cintura, ele só conseguiu procurar assistência médica após a chegada da Força Nacional, no início da tarde.
“Não tenho dúvidas de que eles vieram para matar mesmo. O bando atirava sem parar, com escopetas e pistolas”, denuncia, ao mostrar dezenas de projéteis de calibre 12 coletados após o confronto. Ao seu lado, uma senhora idosa contabilizava as perdas. “Atearam fogo em tudo, não dá nem para aproveitar as panelas.”Os utensílios perfurados por balas transformaram-se em brinquedos nas mãos das crianças.
Ao todo, 765 guaranis vivem na região. Eles reivindicam a posse da terra indígena Potrero Guaçu, uma área de 4.025 hectares, cuja portaria declaratória remonta ao início dos anos 2000. O processo de demarcação está parado há mais de uma década em virtude de uma longa disputa judicial. Restritos a um quarto do território reivindicado, eles decidiram retomar a posse da área completa, hoje ocupada por fazendas de criação de gado. Ao todo, três índios foram baleados no ataque.
“Temos pouca terra para plantar e o solo é pobre, arenoso. Muita gente já passou fome por aqui. As crianças só pararam de morrer por desnutrição depois que o governo passou a distribuir cestas básicas e oferecer Bolsa Família. Mas isso é coisa recente, de poucos anos para cá”, explica Erpídeo.
Na raiz desse drama social encontra-se a delicada situação vivida por mais de 53,8 mil índios Guarani, das etnias Ñandeva e Kaiowá, que residem em Mato Grosso do Sul. Eles ocupam 32 áreas isoladas, que perfazem, ao todo, 48,8 mil hectares. A maior parte dessa população vive em regiões superlotadas, demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios ainda nos anos 1920. Cerca de 27,2 mil indígenas, pouco mais da metade do total, estão concentrados em três territórios: Dourados, Amambai e Caarapó, que somam 9,4 mil hectares. São quase três índios por hectare, sobrevivendo com menos espaço que o rebanho bovino no estado: cada uma dos 23 milhões de cabeças de gado dispõe de cerca de um hectare para pastar. A violência é assustadora. No ano passado, 41 indígenas foram assassinados, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Boa parte das mortes está relacionada aos conflitos por terra.
A situação de penúria das aldeias, que dependem do assistencialismo governamental, levou a Procuradoria da República em Dourados a impor, no fim de 2007, um Termo de Ajustamento de Conduta com a Funai, para obrigar a fundação a resolver a situação fundiária dos índios Guarani até 2010. A entidade determinou a criação de sete grupos técnicos de trabalho, chefiados por antropólogos, para identificar terras indígenas que poderiam ser objeto de futura demarcação. Mas até hoje os trabalhos das equipes permanecem inconclusos.
“De tempos em tempos, quando os conflitos fundiários se acirram, cria-se uma nova mesa de negociação. Então são propostas medidas paliativas, sem qualquer efeito prático. O grande equívoco do governo federal é negociar direitos que são inegociáveis. Os índios precisam viver com dignidade e os fazendeiros devem ser ressarcidos se possuem título de propriedade ou uma posse de boa-fé”, resume o procurador da República Marco Antônio Delfino, da comarca de Dourados.
No início de 2015, ele ajuizou uma ação por improbidade administrativa contra o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e contra o ex-presidente da Funai Flávio Chiarelli, hoje assessor de Cardozo. “Inicialmente, propusemos uma ação contra a ex-presidente da Funai Maria Augusta Assirati, por conta da letargia nas demarcações. Depois, ela se desligou da entidade e denunciou, à mídia, que os grupos de trabalho não puderam concluir seus relatórios por determinação expressa do Ministério da Justiça. Daí a iniciativa de incluir Cardozo na ação de improbidade.”
Ao todo, os estudos para demarcação de novas terras indígenas atingem 26 municípios de Mato Grosso do Sul, áreas densamente ocupadas por propriedades rurais, responsáveis por parcelas expressivas da produção de soja, milho e gado do estado.
Desde a criação dos grupos de trabalho da Funai, os produtores da região se mobilizaram contra as demarcações, prevendo um cenário de derrocada da economia local, embora as áreas em disputa representem apenas 2% das terras estaduais, segundo estimativas de servidores da Funai. Agora, parte dos produtores responsabiliza o Conselho Indigenista Missionário, organização católica criada em 1972, sob a tutela da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, por “incentivar e financiar” os recentes levantes indígenas.
Na terça-feira 29, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul instalou a CPI do Cimi, proposta pela fazendeira e deputada estadual Mara Caseiro, do PTdoB, a quem foi confiada a presidência da comissão. “Trata-se de uma iniciativa de parlamentares ligados ao agronegócio para desviar o foco do real problema: a existência de povos indígenas sem terra, permanentemente atacados por reivindicar seus direitos”, rebate Cleber Buzatto, secretário-executivo do conselho.
Em solidariedade, representantes de diversos movimentos sociais realizaram um ato na sede do Legislativo estadual para pedir a instalação de uma CPI do Genocídio dos Povos Indígenas. Mas a correlação de forças na Casa não é nada favorável.
“Dos cinco integrantes da CPI do Cimi, três são ligados ao agronegócio e somente eu tenho histórico na defesa dos direitos humanos”, diz o deputado petista Pedro Kemp. “A meu ver, trata-se de uma investigação ilegal, pois parte de uma acusação genérica, sem um fato concreto a ser investigado. É uma ação política que visa intimidar e criminalizar as entidades que defendem os povos indígenas, além de partir da visão preconceituosa de que os índios são incapazes de se organizar por conta própria, de que são facilmente manipulados.”
A ofensiva contra os direitos indígenas também é perceptível no Congresso Nacional. A chamada Agenda Brasil, proposta pelo senador Renan Calheiros, do PMDB, contempla antigas reivindicações dos ruralistas e do setor de mineração, como os projetos que mudam as regras para a demarcação e o uso das terras indígenas. O objetivo é transferir para o Legislativo a atribuição de homologá-las, além de permitir atividades agropecuárias e o garimpo nas reservas mediante contratos de arrendamento.
Outra ameaça é a PEC 71, de 2011, que prevê o pagamento de indenizações pelas terras desapropriadas, e não apenas pelas benfeitorias, conforme determina a atual legislação. Aprovada no Senado, a emenda à Constituição precisa passar por dois turnos de votação na Câmara. “Essa medida até poderia ajudar a pacificar os conflitos se houvesse real compromisso da União em viabilizar novas demarcações. Mas, no Orçamento de 2015, só estão previstos 5 milhões de reais para indenizações”, diz Buzatto. “Esse montante é insuficiente para ressarcir uma única área em disputa no Mato Grosso do Sul. Há várias demarcações que devem consumir mais de 100 milhões de reais.”
A despeito da criminosa formação de milícias armadas contra os indígenas, são justas as queixas dos produtores rurais quanto à letargia do poder público em criar uma solução definitiva para o impasse. Carlo Daniel Coldibelli, assessor jurídico da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, lamenta o crescimento do número de fazendas invadidas [sic] por indígenas no estado, 96 ao todo.
“Mesmo considerando que a invasão de propriedade rural é uma violência praticada contra o produtor rural, a orientação da federação, sempre foi e continuará a ser para que os produtores evitem o confronto direto com os invasores e que busquem a defesa de seus direitos no Poder Judiciário.”
Recentemente, o presidente da Famasul, Mauricio Saito, reuniu-se com o ministro Cardozo para cobrar do governo federal “agilidade no cumprimento de seu papel legal de defender os direitos dos cidadãos, índios ou não”. Uma das principais queixas diz respeito à demora para o cumprimento das liminares de reintegração de posse expedidas pela Justiça, que dependem da ação da Polícia Federal e do acompanhamento da Funai.
Mas a solução definitiva para o impasse, afirma Coldibelli, demanda um esforço conjunto de toda a sociedade, incluídos produtores rurais, indígenas, parlamentares e representantes do Executivo. “Não há mais espaço para a prática de violências, seja de que lado ela vier. A questão exige ser tratada com seriedade e agilidade.”
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Destaque: A área em disputa foi homologada em 2005 por Lula. O STF barrou o processo. Foto de Ademir Almeida/ Futura Press/ Estadão Conteúdo.