Por Clovis Antonio Brighenti, Cimi Regional Sul*
Se Francisco Dias Velho estivesse vivo certamente seria um dos árduos defensores do agronegócio, argumentando que esse setor sustenta o Brasil, que sem ele a economia brasileira não sobreviveria. Ele também estaria batalhando pela redução dos direitos indígenas, seria a favor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, da Portaria 303 da Advocacia Geral da União e do Marco Temporal. Ele não mais vive, morreu em 1687 em confronto com piratas holandeses na ilha de Santa Catarina, mas na sua época não apenas defendia a escravização de indígenas, como era fugaz caçador e vendedor desses cativos. Defendia a escravidão de indígenas afirmando que sem ela a colônia portuguesa não prosperaria. Essa atitude não gerava nenhum peso em sua consciência, porque, afinal, para ele os indígenas não eram detentores de direitos, apesar da Bula Papal de 1537 reconhecer a humanidade dos indígenas e proibir sua escravização; e, do decreto de 01 de abril de 1680 que reconhecia aos indígenas o direito originário sobre as terras por serem eles os “primários e naturais senhores” das terras coloniais.
Sobre um pedestal exibindo seu arcabuz com vestimenta alusiva a uma suposta virilidade que induz as pessoas comuns a crer na imortalidade desse homem e seus grandes feitos, Francisco Dias Velho foi desmascarado por estudantes indígenas no último dia 01 de outubro. Durante o III Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, os presentes realizaram um protesto em frente à estátua de Dias Velho, demonstraram que a reconciliação com a história não se faz pelo esquecimento. Num ato simbólico de desnudar/desmascarar as histórias dos heróis assassinos de indígenas, cobriram-na com faixas estampando a exigência da devolução das terras.
São estudantes descendentes das vítimas da arma de fogo de Dias Velho e do pensamento bandeirantista. Manchado pelo mesmo sangue de seus parentes assassinados há 350 anos atrás, por essa mesma arma, os estudantes indígenas querem contar sua versão dos fatos, querem demonstrar que o herói de uns é o algoz de outros. E mais, os indígenas querem dizer que seguem presente, não para vingar-se, mas para fazer uma nova história. Poderiam ter destruído a estátua, arrancado e pisoteado, mas optaram por mantê-la, apenas cobri-la para que os crimes que ela simboliza jamais sejam esquecidos.
Francisco Dias Velho é considerado o fundador de Florianópolis (Nossa Senhora do Desterro) e homenageado pela elite catarinense com estátuas em bronze, nomes de viadutos, ruas e prédios públicos. Com o mesmo modus operandi dos bandeirantes, os ruralistas contemporâneos desejam se apropriar das terras indígenas alterando a legislação para impedir que esses povos posam usar de maneira tradicional suas terras e viver conforme seus usos e costumes. Dias Velho tem uma relação de crimes que a memória a este personagem deveria ter um único propósito: fazer com que essas práticas jamais se repitam. Sanguinário escravocrata, percorreu o litoral catarinense no século XVII escravizando indígena e levando-os cativo aos engenhos e fazendas de São Paulo de Piratininga e São Vicente. Não satisfeito pelos crimes praticados decidiu roubar as terras indígenas, e assim em 1651 invadiu as terras Guarani (nominados pelo invasor de Carijó) na ilha de Santa Catarina apropriando-se das terras desse povo. Nas suas novas fazendas usou e abusou da mão de obra indígena para produzir cana de açúcar, mandioca e outros produtos.
Se é verdade que história não se repete, é verdade também que há continuidades históricas, e as práticas anti-indígenas demonstram essa continuidade. Curioso observar como as práticas de ontem e hoje são sustentadas por um mesmo discurso ideológico que inferioriza o outro, definida como prática de colonialidade. Conforme esclarece o sociólogo peruano Aníbal Quijano a colonialidade não terminou com as independências dos impérios ibéricos, ela persiste até os dias atuais porque trata-se de um padrão mundial de poder que se funda na imposição de uma classificação racial/étnica, e opera em vários âmbitos e dimensões, “materiais e subjetivas, da existência cotidiana e da escala social”. Romper com a colonialidade significa criar outras historicidades, outros referencias teóricos que valorizem as coletividades e reconheçam os direitos de todos.
A elite catarinense sempre tratou esse bandeirante como um herói, porque de certo modo ele é a representação das práticas contemporâneas dessa elite, ou seja, veem nele um representante, um ícone de seus métodos e anseios. Homenageá-los é manter seus feitos como ato heroico, é desejar que essas práticas se repitam por gerações, e induzir no povo que figuras como Dias Velho são seres sobre-humanos. Os estudantes indígenas ao cobrirem a estátua estão dizendo, “você não nos representa, sua memória nos agride, suas práticas são repugnantes”, e demonstram aos detentores do poder em SC que existe outra história, que os povos indígenas não foram derrotados, que estão presentes e atuando ativamente na descolonização, no rompimento definitivo com práticas repressoras. Demonstram às elites que estão dispostos a lutar por seus direitos, pela conquista das terras, pela manutenção de seus modos de vida.
Neste pequeno gesto os estudantes indígenas demonstram que não desejam apenas o acesso ao ensino superior, mas desejam mudar o curso da história, desmascarar os falsos heróis, construir outras epistemologias, levar as memórias, as oralidades, os saberes “tradicionais” a estabelecer diálogos com os saberes “científicos”, construindo a interculturalidade crítica. Um novo horizonte se vislumbra no ensino superior e os povos indígenas estão sendo protagonistas.
[1] Clovis Antonio Brighenti Professor de História das Sociedades Indígenas na Universidade Federal da Integração latino-americana (UNILA). Membro do Conselho Indigenista Missionário.