Aercio de Oliveira, coordenador da FASE no Rio de Janeiro, analisa plano de habitação social para a zona portuária e critica a lógica empregada no chamado Porto Maravilha. Entre outros pontos, analisa os motivos da exclusão do bairro Caju das obras urbanas da região
Na Fase
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), lançou nesta quinta-feira (1º) o Plano de Habitação de Interesse Social do Porto. Em suas propagandas sobre a “cidade olímpica”, a prefeitura carioca fala de um município que “se transforma a cada dia” e não “para de avançar”. Entre tantas áreas em obras, a zona portuária está entre as mais visadas por grandes empreendimentos imobiliários e industriais. Mas toda essa transformação do chamado Porto Maravilha veio acompanhada de violações de direitos humanos, inclusive do direito à moradia.
Aercio de Oliveira, coordenador regional da FASE no Rio de Janeiro, acompanhou de perto a elaboração do Plano em audiências e em Conferência Municipal realizada para debater assunto. Nesta entrevista, além de apontar contradições no Plano, ele relaciona o tema a questões ambientais e comenta, ainda, os desafios enfrentados nas lutas sociais da atualidade. Aercio coloca em destaque o bairro Caju, que foi excluído do perímetro de obras públicas da zona portuária. Recentemente, o tema foi aprofundado por ele no artigo “Bairro do Caju: de Balneário Real à Zona de Sacrifício Ambiental”, que integra o livro “Direito à Cidade para um Mundo Justo e Seguro: o caso dos BRICS”, organizado pelo BRICS Policy Center. “Estão trocando gente por container”, comenta sobre a realidade do bairro.
A prefeitura acaba de apresentar o Plano de Habitação de Interesse Social para zona portuária, no contexto do Porto Maravilha. Pensando mais no bairro Caju, quais as suas críticas ao Plano?
A primeira crítica é: você fazer uma operação urbana consorciada como esta e não levar em consideração um bairro que, de acordo com o IBGE, tem 20 mil habitantes. Independente das razões do Plano, ele é uma oportunidade de mobilizar os atores interessados, principalmente os moradores que mais sofrem com a falta de política habitacional. Mas ele tem limitações. Não fica claro, por exemplo, qual é a fonte dos recursos que vai garantir habitação de interesse social. Não ficam claros os dispositivos de controle social e de participação. O plano indica, por exemplo, a produção de 10 mil unidades, mas essas não são majoritariamente para quem está no déficit habitacional e recebe de zero a três salários mínimos. E o plano anuncia que a produção da metade dessas unidades ainda dependerá da viabilização de recursos. Isso vindo de uma das prefeituras mais ricas do país é um escárnio.
Por mais que existam, dentro da prefeitura, funcionários e técnicos competentes preocupados em enfrentar a questão da moradia, ela, lamentavelmente, não é uma prioridade política para o atual prefeito. Você tem outro problema: o próprio governo municipal aponta que aquela área, que hoje tem cerca de 30 mil habitantes, vai chegar a 100 mil. E você tem 10 mil unidades habitacionais? Como fica isso? A tradição na política brasileira é dar pouca importância ao diálogo com a sociedade. Na zona portuária do Rio, mesmo tendo ocorrido audiências com a finalidade de debater o Plano, o processo foi muito acelerado. Ainda assim, apareceram indicações positivas como a questão da locação social. Ou seja, a construção de imóveis voltados para famílias de menor poder aquisitivo com aluguéis abaixo do valor de mercado. Porém, para termos um plano mais realista, que incorporasse os interesses da maioria da população que cotidianamente tem seu direito violado, seria preciso mais tempo de diálogo. Temos aquela velha questão, que ultimamente vem se agravando: a urgência para garantir os interesses político-eleitorais e econômicos acaba atropelando processos de participação, em que os mais prejudicados são moradores de periferia e de favelas.
Pensando na atual reconfiguração da cidade do Rio, qual a relação entre injustiça ambiental e gentrificação²?
A fonte é a mesma: a de uma sociedade desigual. A base do sistema capitalista é a desigualdade. E você tem no Brasil a combinação disso com a marca cultural da opressão. O Brasil foi um dos últimos países a acabar formalmente com a escravidão. Então, você tem essa configuração perversa. Está incorporada na sociedade, inclusive nas agências públicas e estatais, certa seletividade ou falta de universalidade nas aplicações das políticas. Foi naturalizado que uns merecem mais e outros menos. Isso significa que toda transformação urbana fortalece o ideário de privilegiar poucos, privilegiar uma elite. Com isso, as pessoas pobres são empurradas para a periferia e para áreas com problemas de estrutura para se viver, com alagamentos e risco de deslizamentos, por exemplo.
Hoje, no Rio de Janeiro, mais uma vez as famílias estão sendo deslocadas. Normalmente, são levadas para áreas onde se tem sérios problemas ambientais. Você nunca vai ver uma fábrica numa área nobre da cidade, por exemplo. O caso do bairro Caju é curioso, porque você pensa que o passivo ambiental de lá já existia e que, depois, as pessoas, por falta de opção, foram parar lá. Mas, na verdade, é o contrário. As pessoas já estavam lá. É claro que poderíamos citar vários outros exemplos, mas o Caju é emblemático. O bairro mostra com muita força o que é um processo que combina segregação socioterritorial com injustiça ambiental.
Ainda sobre o Caju, poderia falar sobre o seu processo de transformação?
O Caju sofreu o efeito das transformações socioeconômicas do Rio e do descaso histórico do poder público com setores populares. Só que ali a situação foi se complicando mais por ter uma dinâmica muito própria da área portuária. Ali ainda tem o cemitério, a estação de tratamento de esgoto Alegria, a indústria naval perto, e com tudo isso começa um processo de degradação muito grande, sem que ocorressem reparos ao longo dos anos. Com as transformações da cidade, mesmo dentro da lógica de acumulação de capital a qualquer custo e de elitização, o Caju ficou abandonado. É uma região que tem um valor histórico para o Rio de Janeiro e para o Brasil. Por exemplo, foi o primeiro balneário da cidade e abrigou a Casa de Banho de D. João VI , e foi também uma das primeiras vilas de pescadores regularizadas, isso ainda no governo Getúlio Vargas.
O bairro está a menos de cinco quilômetros de um grande projeto urbano, que está gastando muito dinheiro, e chegou a estar no perímetro de Operação Urbana Consorciada (OUC) do Porto Maravilha. Mas depois avaliaram que seria um custo muito elevado e o retiraram. No fundo, para mim o problema é outro: primeiro, trata-se de uma área que prioritariamente é parte da expansão do porto dentro dessa nova lógica e padrão de comércio em uma economia globalizada, que usa muito o container para o transporte de mercadorias.
É aquela história: temos a ampliação da área portuária, para que vamos investir algo para melhorar as condições de vida no Caju? Estão trocando gente por container. A segunda questão é a seguinte: a inação é política. Não ter política para o bairro é a política. Ou seja, a política está sendo deixar as pessoas nessa situação. Elas vão ficar lá enquanto suportarem. Existe um “esvaziamento natural”. Foram desativadas unidades de serviços públicos de educação, de saúde, etc. Você tem uma das regiões mais poluídas do Rio, com problemas seríssimos de mobilidade, com circulação de caminhões que causam acidentes envolvendo moradores, e nenhuma política pública explícita de enfrentamento e de aplicação da lei.
Existe uma quantidade imensa de legislações que estão sendo violadas no Caju. E é importante destacar ainda um terceiro elemento: o Caju, para o mercado imobiliário, não é uma área de grande valor. A prioridade ali é a expansão do porto, da indústria offshore, da cadeia produtiva do petróleo. Ali não é uma área para empreendimento imobiliário, aquela terra não se negocia como outras áreas centrais do perímetro do Porto Maravilha.
Em artigo sobre o bairro, você aponta que a sustentabilidade é entendida como um termo polissêmico. Você poderia explicar um pouco mais isso?
Nas últimas décadas, essa expressão [sustentabilidade] acabou sendo assumida tanto pelas grandes corporações – que sabemos que têm muita responsabilidade na formação dos passivos ambientais, na emissão de gases, etc – como por setores da sociedade do campo democrático mais crítico. No entanto, quando a gente olha o cotidiano e verifica como esse termo é operacionalizado, [a situação] é completamente diferente. Então, você imagina uma empresa como a Monsanto, ou uma grande empresa de extração mineral, que na sua função principal já traz danos irreparáveis para o meio ambiente, falando em sustentabilidade.
Outros setores também usam a mesma expressão, mas para pensar outro modelo de cidade, a agroecologia, que está ligada à segurança alimentar, isto é, a efetividade desse uso é completamente distinta. Isso causa certo embaralhamento ao senso comum. Na televisão está todo mundo falando em sustentabilidade. Com isso, acaba se tornando um termo difícil de precisar, de ter um sinônimo para ele. No fundo, essa apropriação do termo sustentabilidade [pelas corporações] tem a ver com a lógica da mercantilização de tudo, inclusive com a monetização dos próprios passivos ambientais.
Para além dos preços dos terrenos, o grave processo de especulação imobiliária expulsa pessoas de seus territórios, onde elas construíram histórias de vida e criaram identidades. Como as organizações e movimentos sociais podem trabalhar numa perspectiva de relacionar uma leitura sobre essa realidade à luta pelo direito à moradia?
As pessoas [moradoras de áreas ameaçadas de remoção], de alguma maneira, resistem e apresentam propostas, mas tem sido muito difícil conter a gana da indústria imobiliária, que lamentavelmente conta com a força e o poder da administração pública. Atualmente as práticas políticas têm sido repensadas. No Brasil, estamos em um momento muito delicado em relação à crença nas instituições, na capacidade delas em enfrentar o processo de desigualdade criado pelo atual modelo de desenvolvimento. É um problema, não é algo de fácil solução. Por outro lado, temos um processo de resistência que foge de formas organizativas que foram constituídas antes mesmo do fim da ditadura civil-militar e, depois, no [processo de] reconstrução democrática.
Acredito que estamos entrando em uma nova etapa de mobilizações, em que todo sistema político tradicional (Câmara, Senado, prefeituras, governos de forma geral) está em xeque. Basta olharmos para a quantidade de grupos que começam se organizar com muita autonomia e ceticismo nas cidades. E não temos uma previsão de onde isso vai chegar. Parece que estamos entrando em um longo interregno, ou seja, em um grande momento de passagem. E as lutas urbanas estão dentro desse processo de transformação.
–
[1] Entrevista elaborada por Isabella Oliveira, estagiária de Comunicação, e Gilka Resende, jornalista da FASE.
[2] Se refere a um processo de elitização de lugares da cidade que antes tinham características predominantemente populares, envolvendo o favorecimento de práticas de especulação imobiliária.