São Paulo, ao longo dos séculos, foi se aprimorando na arquitetura e no urbanismo da exclusão. Sei que falar sobre isso irrita os adeptos do “paulistanismo”, o nacionalismo paulistano, que evoca como heróis os bizarros bandeirantes. Mas temos sido cúmplices no silêncio que, tolamente, considera que uma cidade é um conjunto de espaços privados e ignora sua parte pública.
O tema não é exatamente novo e ocupou espaço na mídia, por exemplo, quando gênios resolveram implantar no complexo viário da avenida Paulista as chamadas rampas “antimendigo”: grandes blocos de concreto que impedem o povo de rua de montar sua casinha imaginária para se proteger do tempo e do mundo.
E proteger, dessa forma, a “gente de bem” – menos pelo número de assaltos nas longas pausas dos congestionamentos e mais pela agressão terrível ao senso estético trazido por essa gente feia.
Os pedidos de mudanças no traçado da futura linha 6-laranja metrô após reclamações de moradores do rico bairro de Higienópolis teve o objetivo claro de excluir, mais do que aproximar, alimentando a ignorância que gera a intolerância, o medo e as cercas eletrificadas que circundam casas e apartamentos. Cercas que se voltam contra seu criadores. Que acham que deixam os malucos de fora quando, na verdade, transformam sua vida numa triste prisão.
Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la “segura de todo o embate”, como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada.
Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562.
Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes, supra citados heróis (#vergonha), que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. E, com isso, ampliaram as fronteiras. Como disse uma vez um fazendeiro português a Pedro Casaldáliga (que, sem demérito para Bergoglio, teria dado um ótimo papa): as calçadas de Roma foram feitas por escravos, o “progresso” cobra seu preço.
Como já disse aqui antes, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, o espírito do muro de taipa se manteve.
Ele, às vezes, se materializa na forma de barreiras de contenção para o “próprio bem” de uma comunidade, como ocorreu na favela do Moinho, por mais que aumente as chances das pessoas morrerem queimadas por falta de saídas em caso de incêndio. Incêndios que, principalmente entre 2011 e 2012, insistiram em queimar favelas e a ajudar a especulação imobiliária por aqui.
Na maior parte do tempo, contudo, permanece invisível, impedindo o acesso dos excluídos à cidadania plena do burgo paulistano. Seja impedindo sua mobilidade, empurrando-os para morar de forma insalubre nas franjas da cidade, negando educação e saúde de qualidade, seja tratando pobres como lixo em espaços públicos centrais, deixando claro que eles não são bem-vindos por lá.
Por isso, uma imagem dos moradores derrubando um muro de contenção na favela Moinho, em 2013, foi tão libertadora. Ao colocarem abaixo aquele pedaço de cimento e blocos estavam, em verdade, rasgando o outro muro, invisível, esse muito mais alto e forte, que os separa de sua cidadania. Reafirmaram, com isso, para o restante da sociedade que, não só existiam, como não iriam desistir facilmente até que fossem atendidos em suas justas demandas.
Tem gente que acha que um ato desse é vandalismo público. A meu ver, foi um ato de resistência. Interessante como a liberdade e a dignidade de uns se tornam o medo de outros, não?
A Justiça despeja centenas de famílias humildes de um terreno em São Paulo (que procuravam uma casa) e os sem-teto é que são vândalos. Jovens criam bandos para espancar e matar e moradores de rua e a população em situação de rua (que procura simplesmente existir) é que é vândala. Obras superexploram trabalhadores em nome do progresso na capital, usando até trabalho escravo, e os operários migrantes (que procuram o mínimo para ter dignidade), que se cansam de tudo e resolvem fazer greve para serem notados, é que são vândalos.
Talvez uma das mais gritantes situações de vandalismo esteja no campus da Universidade de São Paulo na Zona Oeste da cidade. Aprendi a andar de bicicleta naquele local, com bairros ricos e pobres ao redor. Para quem não conhece a Paulicéia, a USP possui uma imensa área verde, com praças e gramadões, enfim, um respiro na poluída e maltratada metrópole.
Assim como eu, muitos paulistanos, independente da classe social, usavam a área para fazer um piquenique no final de semana, empinar pipa, jogar um futebolzinho ou aquela partida de taco, namorar, caminhar, tai-chi, correr atrás do próprio rabo, enfim, viver. A Praça do Relógio era um local de convívio e não um espaço paisagístico árido como hoje. Em outros tempos, era considerado um respeitado espaço cultural e de lazer tão importante quanto parques como o Ibirapuera, com shows musicais e atividades esportivas.
Sob a justificativa de garantir a segurança (de salas de aula, laboratórios e escritórios), esse mantra que justifica grandes injustiças por aqui, a reitoria da universidade restringiu o acesso do campus aos domingos. É aquela velha coisa, patrimônio tem mais direitos que gente.
E um muro foi erguido em volta que, como outros muros da capital, representam bem mais que um punhado de aço e concreto.
Os cidadãos que não têm acordos de uso do campus ou não são parte da comunidade de estudantes, professores e funcionários acabam não podendo usufruir desse espaço público entre a tarde de sábado e o domingo – logo no momento em que teriam para descansar de uma semana de trabalho.
Sempre ouço da boca de defensores de uma USP asséptica e árcade aos finais de semana que falta pessoal para garantir a integridade das coisas. E de que aquilo não é um local para se “divertir” e sim para “estudar” e “pesquisar”. Fantástico como cismam em manter essas três palavras separadas, não é? Depois perguntam porque tem gente com ojeriza à educação como ela é.
A cidade possui uma área mais rica e urbanizada em seu chamado “centro expandido”, cercada pelos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre. Os moradores da área protegida pelas muralhas, sejam eles progressistas ou conservadores, revolucionários ou reacionários, vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do lado de fora, que sobrevive trabalhando para a riqueza do burgo. As políticas públicas são mais eficazes para eles.
Saúdo iniciativas como fechar vias para transformá-las em áreas de convívio aos finais de semana ou criar outros parques em regiões centrais. Cada medida tomada para a região central de uma grande cidade, contudo, precisa vir acompanhada do triplo delas nos seus extremos. Ocupar o centro principal de uma metrópole é importante, mas fico pensando se não poderíamos priorizar as periferias e seus centros como o grande laboratório de boas práticas para qualidade de vida.
Porque São Paulo, por exemplo, não é uma, são muitas. E não é justo que os direitos dessas outras São Paulo venham sempre a reboque daquela parte rica e gloriosa.
Passei, neste final de semana, pelo Arariba, Umarizal, Pirajussara, bairros mais humildes da zona sul, para visitar a família. Sei que melhorias ocorreram ao longo dos anos, mas num ritmo e em uma qualidade de implementação e manutenção muito pior do que na região central. Uma parte se indigna e vai atrás do poder público. Outra, maior, sabe que é tratada como cidadã de segunda classe, mas toca em frente. Dá para julgar quem não tem tempo nem para dormir, quanto mais para fazer política urbana?
É preciso garantir qualidade de vida a quem segura essa cidade nas costas não apenas aos domingos e feriados, com mais espaços no seu dia a dia. Aterrar mais rapidamente o fosso que separa centros de periferias.
Caso contrário, aquele muro de taipa do século 16 continuará nos assombrando.