A população da Região Metropolitana de São Paulo convive há meses com a perspectiva da falta de água. De fato, muitos bairros já relataram episódios de torneiras secas e a preocupação em relação às chuvas na região ainda é presente no cotidiano dos paulistanos. O que um professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP vem tentando esclarecer, no entanto, é que falar em escassez hídrica é um erro, assim como culpar a falta de chuvas pela crise
por Aline Naoe – USP Online Destaque
A água não é um recurso finito – pelo contrário, trata-se do recurso mais abundante do planeta, lembra Luis Antonio Bittar Venturi, do Departamento de Geografia. Entre 2010 e 2011, o geógrafo esteve na Síria desenvolvendo um pós-doutorado na Universidade de Damasco sobre recursos hídricos, com foco na bacia do rio Eufrates e na produção de água em usinas dessalinizadoras. Retornando ao Brasil, deu continuidade às pesquisas, o que resultou em sua tese de livre-docência defendida na USP. Estes estudos, conta, foram voltados a combater a ideia de que a água vai acabar e de que países poderão guerrear por ela.
Nesta conversa com o professor, ele expõe sua visão contundente sobre a questão da água no Brasil e no mundo e propõe uma revisão de conceitos.
O senhor afirma que não é possível falar em fim da água. Mesmo se considerarmos apenas as reservas de água doce, não estamos em uma situação preocupante?
Luis Venturi: Não podemos considerar apenas a água doce, destacada do ciclo hidrológico, já que ela advém, na quase totalidade, dos oceanos via evaporação e precipitação. Assim, enquanto a terra girar, o sol brilhar e a lei da gravidade estiver “vigorando”, as recargas de água nos continentes estarão asseguradas. Não há como interromper o ciclo hidrológico. E o que existe de água doce disponível na superfície e nos subsolos é muito mais do que a capacidade humana de utilizá-la. Só os cerca de 110 km³ de água que precipitam nos continentes anualmente já seriam suficientes para abastecer a humanidade. No Nordeste, o programa de cisternas usa apenas água da chuva para sustentar, com uma cisterna de 16 mil litros, uma família de cinco pessoas por oito meses. O que é finita é a capacidade do homem de captar, tratar e distribuir a água para assegurar o abastecimento. É absurdo dizer que a crise hídrica de São Paulo é causada pela falta de chuva, sendo que temos enormes reservatórios subutilizados. Como uma metrópole como São Paulo, com a pujança econômica que tem e toda a tecnologia disponível, fica a mercê da chuva, como se fôssemos povos primitivos?
Na sua visão, então, o que provocou a crise?
LV: Ocorreram dois problemas, ambos de caráter gerencial: poluiu-se os recursos hídricos disponíveis e não se desenvolveu capacidade técnica para despoluir numa velocidade suficiente para atender à demanda. Imagine um estrangeiro sobrevoando São Paulo. Ele vai ver diversas represas e diversos rios como Tietê, Pinheiros, Tamanduateí… Ele simplesmente não vai entender como se fala em falta de água em São Paulo. Apenas a represa Biliings teria água suficiente para abastecer mais de 4 milhões de pessoas, mas é subutilizada pois está poluída. A crise hídrica, ou seja, quando se abre a torneira e não sai água, é sempre gerencial, e não natural. Há exemplos de países com muito menos recursos hídricos que o Brasil onde não falta água, como na própria Síria.
As represas do sistema Cantareira estão secando porque se tem usado sua água num ritmo muito maior do que o das recargas naturais. Se os seis sistemas fossem mais equilibrados em termos de oferta e demanda de água, isso não ocorreria. É o que se está tentando fazer agora: aumentar a capacidade de uns sistemas para “desafogar” os outros, sobre os quais há grande pressão de demanda. Aí a mídia mostra represas secando para ilustrar a ideia de que a água vai acabar. Pode até acabar na sua torneira, mas não por falta dela, e sim por incapacidade de se assegurar o abastecimento. Essa ideia de fim da água é muito malthusiana e é obrigação da academia superar o senso comum fatalista e tão fortemente difundido pela mídia.
Como foi sua experiência durante o período que esteve na Síria?
LV: Minha pesquisa lá teve dois focos: a bacia do rio Eufrates, compartilhada pela Turquia, Síria e Iraque, e a produção de água por dessalinização da água do mar, cuja tecnologia é compartilhada pelos países da Península Arábica, especialmente. Em ambos casos, não há crise nem conflitos. Por um lado, os tratados de cooperação sempre asseguraram o compartilhamento do Eufrates e os países banhados nunca guerrearam por água. Já no contexto da Península Arábica, as fontes naturais de água são tão escassas que não há o que ser disputado. Pelo contrário: aqueles países (Emirados Árabes, Omã, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait) produzem água potável dessalinizando a água do mar, e compartilham essa tecnologia por instituições como o MEDRC (Middle East Dessalination Research Center), sediado em Muscate. Atualmente, já existe no mundo usinas de dessalinização movidas a energia eólica, como em Perth, na Austrália. Oras, se juntarmos um recurso inesgotável com uma energia inesgotável, temos que revisar os conceitos. Em suma, não há base empírica nem conceitual que sustente a hipótese da guerra da água, por mais que a mídia e muitas vozes reforcem essa perspectiva malthusiana.
A dessalinização da água é uma alternativa vantajosa para o Brasil?
LV: O Brasil dispõe das maiores reservas superficiais e subsuperficiais de água doce (Bacias Amazônica e do Paraná; aquífero Alter do Chão e Guarani). Mesmo assim, a região Norte, de maior disponibilidade hídrica do mundo, é a região do Brasil onde se tem menos acesso à água potável no Brasil, segundo a Agência Nacional de Águas. Deste modo, questões gerenciais são mais urgentes do que a introdução de novas tecnologias. E, por vezes, tecnologias mais simples, como cisternas e transposições, podem causar um impacto social positivo muito grande. De qualquer modo, o desenvolvimento de membranas filtrantes podem ser muito úteis na despoluição da água (o que já se tem anunciado), muito mais do que em dessalinização. A dessalinização pode ser útil também no Nordeste, onde as reservas naturais apresentam alta salinidade. Já vi estudos que mostram a viabilidade do uso de dessalinizadores domésticos movidos à energia solar, o que é adequado para aquela região.
Sobre a necessidade de revisar conceitos, o que o senhor acredita que deveria ser mudado?
LV: É incorreto classificar a água como um recurso renovável, como muitos livros didáticos de Geografia ainda fazem. Recurso renovável é aquele que, ao ser utilizado, tem a capacidade de se recuperar seus estoques por mecanismos naturais, como no caso das florestas. Este conceito não se adéqua à água, já que as suas quantidades são estáveis no Planeta. A molécula de água não se destrói com o uso e sempre acaba voltando para o sistema, ainda que em outro estado, de modo que sempre apenas “emprestamos” água do ciclo hidrológico. Só que ao mesmo tempo em que os livros didáticos classificam a água como renovável, fala-se que se trata de um recurso finito, o que é um contrassenso. Aqui mesmo na USP há uma campanha de ótimas intenções para o uso racional da água, mas que pecou quando afirmou que água é um “recurso finito”, quando o correto seria dizer: “captar, tratar e distribuir água é caro: economize”, ou então: “a capacidade da sociedade de tratar e distribuir água é finita: economize”.
Finalmente, pouco se fala em desperdício qualitativo, mas apenas no quantitativo. No âmbito doméstico, como não se recebe água de reúso, a mesma água que se bebe se usa para dar a descarga, por exemplo. Cerca de metade dos usos domésticos de água não necessitam de água potável. Vejam que a questão dos recursos hídricos é muito mais complexa dos que os reducionismos difundidos pela mídia.
Falar sobre a inesgotabilidade da água não pode acabar estimulando o uso irracional deste recurso?
LV: Sempre que sou convidado a falar em escolas e faculdades alguém me pergunta isso, se não é perigoso afirmar que a água é infinita. Mas não se pode educar pelo medo, propagando uma visão fatalista. É uma obrigação da academia superar o senso comum. As pessoas têm que conhecer, sim, os riscos de ficarem sem água e, se isso acontecer, ter consciência das reais razões deste fato, do papel de cada um, inclusive delas mesmas pelo uso racional.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Íris Morais Araújo