Por Viviane Tavares, Ecodebate
Em audiência pública realizada na Alerj, 50 comunidades e povos tradicionais de diferentes locais do estado do Rio discutiram seus direitos. Essa é uma das etapas para a construção coletiva de uma PEC no estado sobre o tema.
Eram mais 250 representantes de 50 comunidades indígenas, caiçaras, quilombolas, pescadores lotando o auditório da Alerj e os gabinetes com um objetivo em comum: garantir sua tradicionalidade, seu território, seus direitos. Este foi o cenário da audiência pública sobre os “Direitos dos Povos Tradicionais do Estado do Rio de Janeiro” que aconteceu ontem, dia 25/8, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Casa.
Na mesa estavam os deputados Flavio Serafini, Marcelo Freixo, Dr. Julianelli e Eliomar, todos do PSOL/RJ, além de Jadson dos Santos (do FDCT), Ivone Bernardo (Acquilerj), Julio Karaí (Comissão Guarani Yvyrup), Vilson Correia, da Associação Comunitária de Cultura e Lazer dos Pescadores de Zacarias (ACCLAPEZ), Geisy Leopoldo, do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Lívia Casseres, da Defensoria Pública e Ronaldo Lobão, da Universidade Federal Fluminense (UFF) para debater a situação dos povos e comunidades tradicionais no Estado e consultar previamente os diretamente impactados para a construção coletiva da Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a chamada PEC dos Povos Tradicionais, protocolada pela bancada do PSOL na Alerj em junho, que pretende incluir um novo artigo sobre o tema na Constituição do Rio de Janeiro. “Todo esse processo tem como intuito melhorar o texto que já foi feito de forma conjunta com elas, mas, ir além, ver detalhadamente demandas para tornar essa proposta ainda mais consistente e pensar em novas medidas legislativas que a PEC não poderá dar conta”, afirmou Flavio Serafini. Desde o início desse ano, foram realizados vários encontros e reuniões de trabalho que contaram com a presença de diferentes atores para a construção deste texto-base.
Esta audiência é uma das etapas para que seja realizada uma consulta prévia em relação a essa PEC. Este processo é inédito no país e segue a Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT), segundo a qual a consulta previamente estabelecida é obrigatória quando as medidas legislativas ou administrativas influenciarem os povos tradicionais. Até agora o Brasil nunca cumpriu a Convenção assinada desde 2004.
Entre as proposições do artigo a ser incluído da Constituição Estadual estão a garantia destes povos e comunidades de viver de acordo com seus usos e práticas tradicionais, assim como o efetivo exercício da cidadania; consulta prévia por parte do Estado em medidas legislativas ou administrativas que irão afetá-los; que as ações e serviços públicos devam integrar-se e adaptar-se às suas tradições, costumes e organização social. Ainda assegura a promoção e o desenvolvimento socioeconômico destas comunidades. Uma das falas da audiência foi como garantir o que está “proposto no papel em ações práticas”, disse Rejane, do quilombo Maria Joaquina.
“O Estado do Rio é o que mais violenta o povo tradicional. Estamos fragilizados em relação à legislação e os direitos garantidos. Para estarmos aqui, tivemos muitos companheiros mortos, presos. E não queremos parar por aqui. Esse debate tem de ser emancipador. Temos que voltar para nossas comunidades e lutar contra todas as ações privativas do país, contra esse Estado capitalista segrega, violeta e viola nossas violações”, avaliou Jadson dos Santos, da Praia do Sono, distrito de Paraty, que sofre violenta pressão de um condomínio para a privatização do espaço.
A representante dos quilombolas, moradora da Comunidade Rasa, Ivone Bernardo fez uma apelo para que os deputados e as entidades presentes dedicassem uma atenção à questão da titulação dos territórios. “Este processo é sempre moroso. E essa conquista é muito importante”, afirmou Ivone, que completou sobre a audiência: “Queremos ter voto e voz. Estamos sendo ouvidos pela primeira vez nesse espaço”, refletiu.
Julio Karaí, da Comissão Guarani Yvyrup, lembrou ainda da PEC 215, que transfere do governo federal para o Congresso a atribuição de oficializar Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas. Se aprovada, a PEC vai paralisar de vez a regularização dessas áreas. Para Julio, que denomina como “Lei do Demônio”, a PEC 215 tem um “caráter irreversível na conquista de seus direitos”. Um manifesto assinado por mais de 70 entidades, entre elas, Via Campesina, OAB e Conselho Indigenista Missionário (Cimi) foi publicado no mês de junho repudiando essa proposta.
O pescador Vilson Correa, da Accaplez, aproveitou o momento para contar um pouco da sua história junto à comunidade pesqueira de Zacarias que há 3 séculos habita o lugar, mas que está sendo ameaçada pelo empreendimento luso-espanhol que quer construír um resort com um campo de golfe. “Somos assediados sempre e repudio o poder executivo local, além do Inea, que liberou a construção”, relatou e completou: “Vocês acham que eu com 56 anos e tantos de trabalho no mar vou ficar catando bolinha de golfe? É muito sofrimento”, desabafou.
Para a defensora Lívia Casseres disse que os povos e comunidades tradicionais desafiam o modelo de sociedade forjado de hoje, uma sociedade que não reconhece os valores ancestrais e das tradições. “Estamos há pouco mais de um século da abolição da escravidão, mas ainda estamos alijados, assim como os indígenas, os pescadores, os povos tradicionais em geral”, explicou. Tenho trabalhado para aprofundar o acesso à justiça das populações tradicionais”, explicou.
Geisy Leopoldo, gerente de educação ambiental do Inea, explicou que o órgão está criando uma área e que se compromete com o diálogo com as populações. “O Estado é construído por pessoas e interesses. Queremos abrir o diálogo para ouvir as demandas”, informou. Logo em seguida, Flavio Serafini propôs um grupo de trabalho composto por representantes dos povos e comunidades tradicionais e o Inea para discutir as questões do licenciamento nessas áreas.
Ainda falaram diversos moradores de quilombos, pescadores e indígenas, além de representantes do Incra, Inepac e Ministério do Desenvolvimento Agrário. A advogada da Accaplez, Thatiana Duarte aproveitou a ocasião ainda para denunciar a criminizalização dos povos e comunidades tradicionais. “Os órgãos ambientais violetam, multam, violam. Precisamos reverter esse quadro e o poder público deve cumprir seu papel que é de orientação e cuidado que essa população que construiu a nossa história merece”, afirmou.
Os próximos passos de trabalho e mobilização serão mapear os territórios que não estiveram na audiência, resolver as demandas urgentes que surgiram durante o debate, apoiar as comunidades no encaminhamento do termo de referência para que possam discuti-lo em seus respectivos territórios, além de traçar um comitiva de visita às comunidades envolvidas. Todas essas etapas serão para estruturar a proposta do termo de referência para que assim possa ser aberto à consulta prévia.