Qual punição merecemos pela nossa indiferença à violência na periferia?, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Se você gosta do lugar quentinho oferecido pela ignorância e do conforto de não colocar à prova suas próprias convicções, não assista ao documentário “Orestes”, do diretor Rodrigo Siqueira (“Terra Deu, Terra Come”), que estreia no dia 24 de setembro.

Tratados internacionais apontam que crimes contra a humanidade, como o genocídio e a tortura, devem ser imprescritíveis. Mas com a justificativa de colocar um ponto final em uma cadeia de ódios e vinganças, muitas vezes a Justiça é sacrificada em nome de um suposto reequilíbrio.

Foi o que aconteceu com a lei da Anistia, construída quando a ditadura cívico militar brasileira já caminhava em sua “abertura lenta, segura e gradual”. Lei que foi mantida pelo Supremo Tribuna Federal, apesar de críticas internacionais, dificultando o julgamento desses crimes.

A verdade dos fatos, que faz parte dessa Justiça, quando não reestabelecida devidamente, continua nos assombrando. Individualmente, e coletivamente. É como assombra Nasaindy, filha de José Maria, morto pela ditadura, e de Soledad –militante torturada até a morte, em 1973, após ter sido entregue por Cabo Anselmo, pai de outra criança que Soledad esperava e infiltrado na resistência ao regime.

Como assombra famílias que perdem seus filhos diariamente na periferia das grandes cidades brasileiras por uma polícia treinada para estar em guerra contra o seu próprio povo, como conta o depoimento do policial Adilson, e que adota procedimentos da época dessa ditadura.

Eliana teve o filho abatido pela polícia, com pelo menos um tiro nas costas, caso que ficou registrado como “auto de resistência”. Quando ela foi reclamar o corpo, ele já havia sido enterrado no cemitério de Perus, não coincidentemente onde muitos mortos pela ditadura também foram sepultados sem identificação.

No filme, ela é ainda questionada por parte da sociedade que inverte a lógica e afirma: quem é morto pelo Estado é porque é culpado de algo. Sociedade representada por Sandra, militante de movimento por justiça para vítimas de violência e defensora da pena de morte, que, durante uma sessão de psicodrama organizada a pedido do diretor, considera que pode ter sido legítima a morte do filho de Eliana para prevenir que machucasse alguém no futuro.

E, assombrados, não avançamos.

Ao contrário de outros países, como a Argentina, o Brasil não conseguiu encarar suas feridas abertas na ditadura para que fossem tratadas e cicatrizassem. Os trabalhos da Comissão da Verdade foram importantes e geraram debates, mas é pouco. O país ainda cobre essas feridas com a cordialidade que nos é peculiar, usando o bom e velho “deixa disso” em nome da governabilidade (palavra maldita) e de uma suposta fragilidade de nossas instituições.

Enquanto não acertarmos as contas com o nosso passado, não teremos capacidade de entender os impactos dessa herança deixada por ele, que une Nasaindy a Eliana. Impactos sentidos nos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

O Orestes do filme – Sem digerir o passado, o Estado deixa claro aos seus quadros que usar da violência, torturar e matar são coisas aceitáveis. E com a anuência da Justiça que, através do seu silêncio, mantém aqueles crimes impunes.

Um silêncio que foi quebrado pelo personagem fictício Orestes, que dá nome ao filme. Na história criada pelo diretor, Orestes teria visto a mãe, militante contra ditadura, ser assassinada pelo pai, agente desse Estado repressor que operava disfarçado, e se vingado, matando-o décadas depois.

Rodrigo Siqueira foi muito feliz ao promover um julgamento simulado sobre esse caso fictício em um salão nobre lotado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A eloquência da defesa do advogado de Orestes e a contundência do ataque do promotor fazem a plateia, que assume o papel de júri, refletir sobre seus próprios posicionamentos.

Porque, se pensarmos bem, Orestes não é um personagem de ficção. E não apenas porque também foi inspirado na própria história de Anselmo e Soledad, mas porque representa a jornada de um povo. Que ainda deve tomar uma decisão: manter o passado anistiado nos levará ao futuro, quebrando o ciclo de retaliações? Ou nos prenderá mais a ele?

No Orestes de Rodrigo Siqueira, estão os fantasmas que permanecem assombrando indivíduos e o coletivo. Quando vai ao encontro do pai, ele segue vai em busca de um pedido de desculpas e de compreensão, e não de vingança. Que é negado pelo pai, que tenta estrangulá-lo. E negado por parte considerável da sociedade, que se sente confortável em manter certas coisas como sempre foram, em nome da segurança.

No texto grego de Ésquilo, encenado pela primeira vez em 458 a.C., Orestes vinga a morte do pai, Agamenon, assassinando sua mãe, Clitemnestra, que, por sua vez, ao matar o marido havia se vingado também do assassinato de sua filha favorita e do desterro de seu amante. Orestes é julgado em Atenas e acaba inocentado, pondo um ponto final da tragédia.

Qual deveria ser o destino de Orestes e de outras milhões de histórias desta transição incompleta e imperfeita que vivemos? Ele merece punição? E nós, que não quebramos o silêncio diante o sangue de 18 chacinados em Barueri e Osasco, e diante de tantas outras chacinas que acontecem periodicamente no Brasil, merecemos absolvição?

“Orestes” é um filme necessário para o momento violento em que vivemos. Se não quiser assistir por você, assista por seus filhos e netos, mesmo que ainda não os tenha.

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