Neimar Machado de SousaLaboratório de Pesquisas em História e Educação Indígena
Os mais românticos ainda se lembram do sucesso da cantora italiana Laura Pausini, La Solitudine, que a tornou mundialmente conhecida após o Festival de Sanremo em 1993. A canção foi escrita por Federico Cavalli e Pietro Cremonesi e em 1995 foi gravada por Renato Russo no disco Equilíbrio Distante.
O poema trata da solidão após a partida de Marco, “foi embora e não retorna mais”. Conta que o trem das 7 e 30 sem a sua presença é um “coração de metal sem alma, no frio da manhã cinza da cidade”. Fala que “distâncias enormes parecem nos dividir, mas o coração bate forte dentro de mim”.
Na última parte da música, como é comum nas canções italianas, o tom da voz aumenta e o apelo romântico é mais forte: “a solidão entre nós, este silêncio dentro de mim, e a inquietude de viver a vida sem você. ” Vale a pena ouvir de novo!
Os mais realistas, não poderiam deixar de relacionar ao Marco, da canção, outro Marco, que também foi culpado por solidão e abandono. Seu sobrenome é Temporal.
O Marco Temporal da Constituição de 1988 tem sido a alegria dos advogados dos ruralistas, pois apostam nele para separar os namorados: Índio do Brasil e Terra Tradicionalmente Ocupada.
O Marco Temporal nasceu no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e tem sido recortado e copiado em sentenças que anulam ou impedem atos que reconheçam direitos territoriais indígenas, caso não se prove que estes não estivessem com o pé fincado em suas terras no dia 05 de outubro de 1988.
O mais curioso é que os condicionantes, assíduos frequentadores das aulas de direito positivista, cabularam as aulas de história, especialmente aquela parte em que os velhos que viram a mãe estuprada pelo peão, o pai açoitado pelo reio do capataz de fazenda, fazendo hora extra para agradar o patrão. Tampouco não assistiram a aula em que os velhos contaram que após expulsos a pé ou embarcados em caminhões de gado foram levados contra a vontade para as reservas indígenas.
As reservas eram lugares de confinamento, de onde os índios eram proibidos de sair para voltar às aldeias que virariam fazendas. Os que tentaram voltar foram presos, como contou o sr. Bonifácio Duarte, da etnia kaiowá, morador da Aldeia Bororó, em Dourados, MS. Esses depoimentos foram confirmados pelas pedras das cadeias da Aldeia Jaguapiru (Dourados, MS), Bananal (Aquidauana, MS), Taquapery (Coronel Sapucaia), entre outras, quando esteve por lá Comissão Nacional da Verdade.
O perigo de se confiar no Marco, o temporal, não o da Laura Pausini, foi levantado pelo Ministro Aires Brito, na época do julgamento da TI Raposa Serra do Sol. Seu latinorum disse que se fizeram um julgamento extra petita, ou seja, as condicionantes extrapolavam o mérito da demanda em questão. Traduzindo em guarani: armaram uma arapuca para destituir os índios da própria sorte.
O que não contavam é que os índios continuariam contando as velhas histórias dos velhos para pedir a reparação pela vida não-vivida, pelos remédios que não chegaram a curar, pelos animais que não puderam caçar, pelos fogos que foram acesos, pela água não pode ser bebida. Ainda bem que, apesar da angústia das histórias não-contadas, continuam contando, para não esquecer, a mesma canção: “Eu não posso estar sem você. Não é possível dividir a história de nós dois.” A parte triste da história é que continuaram na solidão dos sem voz enquanto o Marco não abandonar sua namorada, a portaria 303/2012 da Advocacia Geral da União, e voltar para os braços do jurista que o concebeu.
[1] Prof. Neimar Machado de Sousa é doutor em educação pela UFSCar e professor de geo-história colonial na Faculdade Intercultural Indígena – FAIND/UFGD, em Dourados – MS, onde coordena o Serviço de Documentação sobre os Povos Indígenas. E-mail: [email protected]
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Foto de Fábio Nascimento / MNI