Há 15 anos extração em única mina explorada na América Latina é feita pela Indústrias Nucleares do Brasil, estatal federal que sempre negava problema
Por André Borges e Dida Sampaio, no Estadão
CAETITÉ E LAGOA REAL (BA) – Uma tampa de ferro cobre a boca do poço, no sítio de Osvaldo Antônio de Jesus. A proteção enferrujada tem um furo no meio. Abaixo dela, um reservatório com 90 metros de profundidade está cheio d’água. Osvaldo ergue a tampa e aponta o líquido, um bem precioso para quem vive por esses cantos de Lagoa Real, no sertão da Bahia. Por cerca de um ano, foi esse o poço que garantiu boa parte do consumo diário de sua família. Há poucas semanas, porém, nenhuma gota pôde mais ser retirada dali. Sua água está contaminada por urânio.
A família de Osvaldo é uma das tantas que vivem no entorno da única mina de urânio explorada em toda a América Latina. Há 15 anos, a extração do material radioativo do solo de Caetité, município vizinho de Lagoa Real, na Bahia, é feita pela estatal federal Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Durante todo esse período, a contaminação da água da região por material radioativo sempre foi uma situação negada pela INB. Desta vez, provas coletadas pelo Estado comprovam que há, de fato, contaminação.
Por um mês, a reportagem reuniu documentos oficiais, laudos técnicos e despachos envolvendo as atividades de extração de urânio na região e o monitoramento da água usada pela população. Os documentos atestam que, desde o ano passado, a INB já havia detectado a existência de água com alto teor de urânio em um poço em Lagoa Real. A estatal, no entanto, não comunicou a prefeitura local sobre a situação, ou mesmo a família, o que só viria a ocorrer em maio deste ano, sete meses depois da coleta da água.
Os laudos técnicos da INB, aos quais a reportagem teve acesso, apontam que a estatal realizou duas inspeções na água consumida pela família de Osvaldo Antônio de Jesus. Na primeira coleta, feita em outubro de 2014, encontrou uma quantidade de urânio mais de quatro vezes superior ao limite permitido para o consumo humano, conforme critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Nenhuma informação sobre isso chegou ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), à prefeitura de Lagoa Real ou à família.
Em março deste ano, a INB resolveu fazer uma segunda checagem no poço. Novamente, encontrou material radioativo, dessa vez em quantidade mais de três vezes acima do permitido.
Os resultados desses dois laudos, porém, só foram emitidos em 22 de maio, quando chegaram à prefeitura de Lagoa Real. No dia 25, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente do município foi até o sítio de Osvaldo, informou que seu poço seria “lacrado” e o fez assinar o comunicado. No documento, firmado pelo prefeito Francisco José Cardoso de Freitas e pelo secretário de Meio Ambiente, Willike Fernandes Moreira, a prefeitura diz que o poço “será fechado por ser considerado impróprio para o consumo humano, baseado no boletim de análise da INB”.
Mais uma vez, nada foi comunicado aos órgãos oficiais federal e estadual. Apesar dos resultados, a INB chegou a declarar no início deste ano que, após analisar amostras de águas subterrâneas de Caetité e região “coletadas durante todo o ano de 2014”, foi possível comprovar que “o nível de urânio está abaixo do limite estabelecido como seguro pelo Ministério da Saúde e pelo Conama para o consumo humano”.
À reportagem, a prefeitura de Lagoa Real informou que nem sequer tinha conhecimento de que o poço contaminado existia e culpou a Companhia de Engenharia Hídrica e de Saneamento da Bahia (Cerb) por sua abertura. “Quem abriu o poço foi a Cerb, que não avisou o município. A prefeitura só soube da contaminação quando chegou o relatório da INB”, disse o secretário Willike Moreira. “Notificamos a Cerb sobre a contaminação. Eles não se posicionaram até hoje. Então, todo mundo tem um pouco de culpa nisso.”
Moreira disse que a própria INB tratou de informar a família sobre a água imprópria para o consumo, declaração confirmada pelo proprietário. “No mesmo dia que nos deu o resultado, a empresa foi lá e comunicou a família, deixando ciente do risco que ela estava correndo. Depois nós fomos lá e comunicamos isso a eles também”, afirmou.
Greenpeace. Em 2008, o Greenpeace chegou a denunciar a estatal, sob alegação de que o urânio tinha contaminado a água de dois poços. Cercada de dados, a INB afastou qualquer vestígio de problemas sobre a qualidade da água consumida pela população.
Osvaldo de Jesus, que mora com a mãe, mulher e três filhos no sítio, disse ter “desconfiado” antes mesmo dos testes e, por isso, só a utilizava para lavar roupa e louça, além de matar a sede de galinhas, porcos e bois. “Quando chegou o resultado, fiquei com medo. O povo da INB disse que era pra gente parar de usar, porque estava contaminada. Disse que não era para dar mais nem para os animais nem regar a plantação”, disse. “A gente não bebia dessa água. Usamos a água da chuva que vai para a cisterna e a água do caminhão-pipa, que passa por aqui”, disse.
Nascido na caatinga, ele vive da roça e da rapadura artesanal que faz em um engenho de madeira puxado por bois. Disse não ter medo de ser contaminado pela água radioativa. “Medo do quê? De morrer? De morrer, não. Isso aí é passagem para nós todos, né? Pode ser rico, pode ser pobre, vai mesmo.”
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Demora de 7 meses para informar contaminação não foi explicada
Ocorrência da água contaminada por urânio verificada em outubro de 2014 só foi informada à prefeitura de Lagoa Real (BA) em maio
CAETITÉ E LAGOA REAL (BA) – A estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) não explicou à reportagem por que a ocorrência da água contaminada por urânio verificada pela própria empresa em outubro de 2014 só foi informada à prefeitura de Lagoa Real (BA) em maio deste ano. Em nota, a empresa também não se posicionou sobre o fato de deixar de inspecionar a qualidade da água utilizada pelos vizinhos do sítio onde o material radioativo foi encontrado.
A estatal declarou que o poço de Osvaldo Antônio de Jesus, na comunidade de Varginha, em Lagoa Real, “não está em área de influência das atividades da INB e por isso não é contemplado no programa de monitoramento aprovado pelos órgãos fiscalizadores”. Ocorre que, conforme informação oficial divulgada pela própria empresa, a comunidade de Varginha faz parte, sim, dos locais onde são – ou deveriam ser – coletadas as amostras de água para análise. O dado consta em documento de “perguntas e respostas” da INB, atualizado em abril deste ano.
A empresa declarou que as análises no poço de Osvaldo de Jesus “foram feitas atendendo a um pedido do próprio morador, não sendo de responsabilidade da INB determinar padrão de potabilidade da água, abertura ou fechamento de poços”.
Sobre a quantidade de urânio no poço, declarou que se trata de condição natural da região, considerada “uma província uranífera” por causa da abundância do minério. “É por esta razão que as águas dessa região podem apresentar concentrações de urânio mais elevadas do que outras, não sendo caracterizadas como contaminação.”
Segundo a estatal, o poço foi perfurado há aproximadamente 20 km de distância do local da mineração, o que, justifica a INB, afasta sua responsabilidade pela ocorrência.
A estatal ligada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Informação afirma que acompanha e avalia 132 poços, “sendo que 39 estão localizados em comunidades próximas da área da empresa para garantir que as atividades de mineração e beneficiamento não prejudiquem a qualidade da água”. Esse trabalho chegaria a “mais de 16 mil análises por ano”. Na comunidade de Varginha, que a empresa alega fiscalizar, nenhuma casa visitada pela reportagem declarou ter recebido agentes da empresa. A Cerb, que foi acusada pela prefeitura de Lagoa Real de ter aberto o poço sem autorização da gestão municipal, não se pronunciou até as 21h30 de sexta-feira, 21.
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‘Só resta rezar para água não estar contaminada’, diz secretário
Para secretário de Lagoa Real, Willike Fernandes Moreira, é ‘líquida e certa’ chance de ouros poços estarem contaminados com urânio
CAETITÉ E LAGOA REAL (BA) – A poucos metros da propriedade onde a Indústrias Nucleares do Brasil (INB) identificou um poço contaminado por material radioativo e cancerígeno, dezenas de outras famílias têm poços do mesmo tipo, com 90 metros de profundidade. Todas elas seguem utilizando normalmente a água desses reservatórios, sem que tenha havido qualquer tipo de notificação ou alerta dado pela estatal ou pela prefeitura de Lagoa Real.
Vizinho do sítio que teve o poço bloqueado, o morador Almir Fernandez Cardoso é dono, há três anos, de uma cisterna exatamente igual àquela contaminada. A água que abastece a sua casa e a de seu sogro é usada diariamente para tomar banho, lavar roupas e louças, além de regar a plantação e tratar dos animais.
“A gente tem de usar essa água, sem ela fica muito difícil. Vamos fazer o quê? Aqui não tem outro jeito. O que a gente faz é não beber, mas usamos para todo o resto”, disse Cardoso.
O morador de Lagoa Real diz que seu poço nunca foi alvo de uma inspeção técnica. “O certo seria ver se essa água tem qualidade. Teriam de vir aqui e olhar isso, mas isso nunca aconteceu. Uns dias atrás, a prefeitura passou aqui e cadastrou o poço, dizendo que vai medir. Mas não voltou mais”, disse.
Para o secretário de Meio Ambiente de Lagoa Real, Willike Fernandes Moreira, é “líquida e certa” a chance de outros poços da região estarem contaminados por alto teor de urânio. “Na verdade, qualquer poço aqui corre o mesmo risco. A gente está em cima da mina, todo mundo sabe disso. Acontece que o município não tem condições de fiscalizar isso, não temos recursos para fazer esse trabalho”, disse.
Na prática, revelou Moreira, não há nenhum controle sobre a abertura de poços na região, seja ela feita pelos proprietários de terra ou pelos agentes do poder público. “Às vezes, as pessoas furam os poços por aí, e a gente nem fica sabendo. A própria Cerb, que furou esse poço, não sabia da contaminação. Só soube porque nós informamos, mas até agora não tomaram nenhuma atitude pra ver se isso acontece em outros lugares”, declarou.
Moreira disse que, informalmente, a INB se comprometeu a analisar a situação de outros poços na região. “O povo aqui não tem água para nada. Aí você chega e diz que vai fechar o poço dele porque a água pode estar contaminada? Rapaz, é complicado. Só resta rezar para não estar contaminada. O povo vai usar, é aquela água a que ele tem.”
Nos últimos anos, a maioria das casas da zona rural de Caetité e Lagoa Real passou a contar com o apoio de cisternas para captação e armazenamento de água da chuva, um programa do governo federal. Esses reservatórios, que têm capacidade de guardar 16 mil litros, conseguem atender boa parte da demanda nos meses de seca. Essa água, no entanto, é usada basicamente para matar a sede. O resto depende dos poços artesianos.
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Destaque: Osvaldo Antônio de Jesus e família. Foto de Sampaio, Estadão.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ricardo Álvares.