Parceria entre líder indígena e etnógrafo francês, obra impactou a antropologia com interlocução entre sistemas cosmopolíticos
Por Bolívar Torres, em O Globo
RIO — A parceria entre Davi Kopenawa, um xamã versado no mundo dos brancos, e Bruce Albert, um etnógrafo com longa familiaridade com seus anfitriões, começou com um completo mal-entendido. Então aprendiz da sua profissão, o francês conheceu o futuro líder yanomami quando este ainda trabalhava como intérprete da Funai, em 1978. Ambos tinham 20 e poucos anos e uma ideia distorcida um do outro: Albert ouvira falar de Kopenawa como um índio aculturado a serviço dos militares, enquanto Kopenawa ouvira rumores de que Albert seria um perigoso estrangeiro infiltrado nas terras de seu povo. As caricaturas cruzadas, porém, não demoraram para se desmanchar. Assim que se viram juntos em uma sessão xamânica, descobriram que compartilhavam o compromisso com os yanomami e o engajamento contra o garimpo dos brancos que exterminava a etnia.
A sintonia foi tanta que, dez anos depois, Kopenawa convidou Albert para um ambicioso projeto. Em um momento especialmente dramático para o seu povo, com as terras yanomami sendo invadidas por milhares de garimpeiros e o desastre ecológico se intensificando, o xamã decidiu confiar-lhe algumas palavras em sua língua natal. Foram 100 horas de depoimento, gravados entre 1989 e 2001, que serviram de base para as mais de 700 páginas de “A queda do céu — Palavras de um xamã yanomami” (Companhia das Letras, tradução de Beatriz Perrone-Moisés e prefácio de Eduardo Viveiros de Castro), obra de enorme impacto na história da etnografia. Lançado em 2010 na França e só agora traduzido para o português, o livro é uma rara interlocução entre dois universos culturais, em que um índio assume a (co)autoria do discurso para introduzir os seus sistemas cosmopolíticos e intelectuais aos brancos.
— Davi sabia que eu falava yanomami e queria explicar aos brancos a história e a tradição do seu povo para não serem exterminados pela cobiça do ouro — conta Albert. — Ele teve contato na sua infância com missionários evangélicos cuja referência constante era a Bíblia. Desde cedo ficou atento ao poder da escrita no mundo dos brancos. Sabia, portanto, que para adquirir existência para os brancos a história e o pensamento yanomami deviam ser escritos na forma de um (grande) livro. De minha parte, escrever este livro a partir dos depoimentos do Davi foi uma tentativa de inventar uma nova forma de escrita etnográfica para resolver meu crescente mal-estar em manter estanques interesses acadêmicos e ação política.
Mistura de autoetnografia, manifesto cosmopolítico e relato de vida (de Kopenawa), “A queda do céu” recupera a trajetória do narrador, da sua criação entre missionários até seu crescimento como líder yanomami, passando por sua iniciação xamânica; ao mesmo tempo, retrata a história de sua comunidade, incluindo os maus encontros com “as margens da nossa ‘civilização’”. Os episódios cruciais de sua vida, escreve Albert, “mesclam inextricavelmente história pessoal e destino coletivo”. Evitando o linguajar acadêmico, a “mediação” do etnógrafo tenta preservar a qualidade poética e a precisão dos conceitos yanomami sobre cosmologia, guerra, liderança, estrutura familiar, ou ainda a relação atual com o mundo ocidental.
Em entrevista por e-mail, Bruce Albert fala sobre as diferenças entre a estrutura da escrita Ocidental e a multiplicidade das palavras dos espíritos xamânicos e destaca o alerta de Kopenawa para o desastre ambiental provocado pelo “povo da mercadoria”.
“A queda do céu” tem um certo ineditismo em sua forma. Há outros exemplos de obras que realizam essa mesma interlocução? Acredita que o livro pode fomentar o surgimento de um gênero em que os índios assumem a autoria ou coautoria dos discurso?
Se o livro tem esta forma peculiar é antes de tudo porque ele se enquadra num processo de mutação da produção etnográfica que está no ar do tempo. De fato, a emergência dos povos indígenas como sujeitos políticos desde os anos 1970 está aos poucos mudando os parâmetros da pesquisa etnográfica tradicional para formas colaborativas e/ou auto-etnográficas. Com a ajuda de antropólogos ou não, os povos indígenas estão se tornando hoje cada vez mais autores da publicação de seus saberes. Assim, desde o ato inaugural do nosso livro, a Hutukara Associação Yanomami esta promovendo, em parceria com pesquisadores do Instituto Socioambiental, vários projetos de publicação de intelectuais yanomami sobre os mais diversos temas: xamanismo, plantas medicinais, alimentação, mitologia, história. Iniciativas deste tipo estão se multiplicando em todo o Brasil, e não somente no domínio da escrita mas também nas artes plásticas e nas músicas indígenas. Espero, portanto, que este livro possa contribuir a dar mais visibilidade a todo este processo de etnografia colaborativa e de autoria indígena em andamento no Brasil e a suas potencialidades em termos de conhecimento do(s) pensamento(s) indígena(s) e de descolonização da escrita etnográfica.
De que modo a escrita pode ser associada às pinturas corporais das sessões xamânicas? Aos olhos de Kopenawa, o livro poderia ser visto como um corpo? O que significa a escrita para Kopenawa e de que modo você tentou preservar o relevo do pensamento yanomami na produção do livro?
A escrita era vista para os antigos yanomami, como todos os bens dos brancos, como algo que podia ser usado como elemento de feitiçaria para deslanchar epidemias. Quando ficou mais familiar, passou a ser assimilada a um tipo de pintura corporal e o papel a uma forma de pele. Tal associação está inconscientemente embutida na língua yanomami. Mas isto não quer dizer que o livro é visto por Davi como um corpo.
No livro Davi faz uma comparação entre o saber limitado atingido pela escrita dos brancos e o saber xamânico mais abrangente obtido pela visão propiciada pelos alucinógenos (a yãkoana). Ele considera que a escrita jamais poderá conter a multiplicidade infinita das palavras dos espíritos xamânicos ( os xapiri). Portanto, escrever estas palavras é para ele um tipo de bricolagem comunicacional na falta de outra opção. É o único meio de dar aos brancos uma (pequena) ideia do que é o pensamento xamânico yanomami.
Para preservar o sabor e a densidade de suas ideias, decidi traduzir as palavras de Davi muito perto de seu estilo em Yanomami, que é o estilo falado de um xamã, portanto de um intelectual. Tentei evitar uma tradução demasiadamente literal para não cair no estereotipo colonial da “fala de Índio”. Tentei, também, evitar o estilo acadêmico muitas vezes um tanto pomposo em nossa sociedade. Busquei ainda restituir ao mesmo tempo a precisão dos conceitos yanomami e sua qualidade poética.
Kopenawa elabora em seu discurso imagens diferentes dos brancos, inclusive dos espíritos dos brancos. Os napënapëri são os ancestrais xamânicos dos brancos, que são aliados dos povos da floresta. E há também os espíritos dos brancos que desencadeiam a epidemia xawara. Como essas diferentes imagens compõem — se é que elas compõem — um retrato total dos brancos? Os brancos seriam, ao mesmo tempo, aliados e inimigos, um povo dividido internamente do ponto de vista sobrenatural?
Os napënapëri são espíritos xamânicos dos antepassados dos brancos, no primeiro tempo, quando os brancos eram forasteiros não muito diferentes dos yanomami, quando “ainda tinham cultura” como diz o Davi. Os xawarari são espíritos canibais das epidemias que seguem os brancos atuais e suas mercadorias. São duas coisas diferentes. Porém, existe mesmo uma dualidade na visão yanomami dos brancos. Tem, de um lado, os brancos como povo diferente porém aberto à aliança, como os “verdadeiros forasteiros“ (napëpë yai) do tempo das origens; e , na outra, os brancos atuais como predadores associais e insaciáveis que Davi chama o “povo da mercadoria”.
Para os yanomami, toda ação patológica é sobrenatural, tem iniciativa dos espíritos. Kopenawa comenta a ação dos espíritos da floresta (xapiri) sobre as cidades, que são aparentemente dominadas pelos espíritos da epidemia xawari. O combate que ele descreve acontece só na fronteira ou os xapiri agem também entre nós, na cidade? Como podemos nos relacionar com os xapiri na cidade, essa possibilidade de fato existe?
Para os xamãs yanomami a “terra dos brancos” era também uma terra repleta de espíritos xapiri. Porém com a aparição da mercadoria e da escrita os descendentes dos primeiros brancos deixaram de querer ouvir o canto desses espíritos e estes voltaram para suas moradias de origem, nas montanhas. Davi nos diz que hoje só os xamãs dos povos indígenas sabem ainda chamar e fazer dançar os xapiri para conter os seres maléficos do mundo, combater as epidemias xawara e manter o céu em seu lugar. Se o “povo da mercadoria” acabar exterminando os últimos povos indígenas e seus xamãs, os espíritos xapiri fugirão para sempre, abandonando o mundo ao caos. Chegará então o tempo da queda do céu. Daí o título do livro.
Como esse livro se coloca no contexto da luta dos povos indígenas nesse atual momento? Estariam ele mais do que nunca ameaçados de perder suas terras e seus modos de vida por políticas de estados nacionais?
O livro também recoloca em destaque, através do depoimento do Davi, a memória das tragédias produzidas na Amazônia pelo ufanismo desenvolvimentista do “Brasil Grande”. Põe assim numa evidência cruel o quanto o modelo de destruição social e ambiental em grande escala proposto hoje pelo Governo como futuro mirabolante não passa de um lamentável remake dos sonhos falidos da ditadura. Sob o manto ralo de um suposto “progressismo” os velhos tempo de chumbos voltaram como nunca para os povos indígenas do Brasil. Davi põe um dedo xamânico impiedoso nesta ferida da continuidade do pior. Neste sentido, o livro chega no momento certo para desmascarar ainda mais este milenarismo retrógrado e devastador do “crescimento”, esta pobre mitologia substitutiva do “povo da mercadoria”.
Em relação ao discurso da “Queda”, você o vê como uma profecia, um diagnóstico do presente ou as duas coisas?
Como inúmeros estudos científicos não param de comprovar, estamos no início de um desastre ambiental de uma magnitude ainda pouco imaginável pela maior parte das pessoas. Estamos no começo do fim do modelo de predação generalizada dos povos e do planeta inventado pelo “povo da mercadoria” há poucos séculos. A palavra do Davi não é portanto, uma mera profecia exótica. É um diagnóstico e um aviso. Um diagnóstico porque faz uma etnografia xamânica muito perspicaz do nosso fetichismo da mercadoria. Um aviso porque descreve um processo de envenenamento e de aquecimento do céu já avançados e, tal fazem os cientistas, aponta para o inevitável e trágico desfecho deste processo, a menos que uma improvável e radical mudança de rumo aconteça.
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Destaque: Davi Kopenawa, líder yanomami, com o antropólogo Bruce Albert, em Boa Vista, Roraima. Foto de Beto Ricardo (ISA)