Ana Luiza Jesus da Costa – Pensar a Educação
Sou professora em um curso de graduação em pedagogia. O tema da aula dessa semana seria “o direito à educação”. Na verdade, trata-se de um curso de História da Educação Brasileira em que começamos nos permitindo alguns voos livres sobre os sentidos do termo “educação”, além da evocação de algumas questões do presente que instigassem o olhar em nossas visitas a outros tempos históricos.
Um dos textos indicados para a aula foi o artigo, diga-se de passagem, magistralmente sintético e didático, de José Silvério Baia Horta – Direito à Educação e Obrigatoriedade Escolar. O texto é de 1998 e ganhou uma revisão para o livro recentemente organizado por Diana Vidal, Elizabeth de Sá e Vera Lúcia da Silva – Obrigatoriedade Escolar no Brasil.
Ao mostrar o longo processo de lutas sociais e debates legislativos que estabeleceu a educação como direito no Brasil, Baia Horta compreende que, hoje, o desafio principal de nossa sociedade seria garantir os direitos já conquistados. O problema, de acordo com a citação que o autor faz do filósofo italiano Norberto Bobbio, já não seria defender a legitimidade dos direitos sociais, mas efetivá-los. Sua efetivação, que depende da vontade política dos Poderes Públicos, só estaria garantida pela ação da sociedade civil organizada e mobilizada para exigir seu atendimento, seja na justiça, ou nas ruas e praças, quando necessário.
Eis que, na noite anterior à aula, me deparo com o texto de Eliane Brum, publicado na coluna Opinião do jornal El País de 17 de agosto de 2015. Um cortante artigo sobre a maior chacina do ano ocorrida em São Paulo, dias antes, na região de Osasco e Barueri. Quando a periferia será o lugar certo, na hora certa? Este é o título.
A jornalista apreende um elemento recorrente nas declarações de familiares e amigos das vítimas. Procurando honrar a memória de seus mortos, afirmam que aqueles eram trabalhadores e pacíficos, mas estavam “no lugar errado e na hora errada”, por isso teriam sido mortos.
Nas periferias, quem não é trabalhador disciplinado, ou seja, que vive de casa para o trabalho e do trabalho para casa, com a concessão, imagino, de uma eventual escala na escola noturna, poderia, então, ser morto. Isso porque lá, nos bairros onde habitam os sujeitos mais explorados e empobrecidos de nossa sociedade, quem não é “trabalhador ordeiro” é, consequentemente, “bandido, ou vagabundo”. Logo, seu assassinato não causaria estranheza e repúdio à “boa sociedade”. E quem não quer estar “do lado dos bons”?
Pelas regras oficias do jogo, entretanto, ainda que tivessem cometido delito, ou crime, teriam o direito de ser julgados em tribunais, onde poderiam, pasmem, até se defender. A execução sumária contraria as leis do próprio Estado, onde não vigora, formalmente, a pena de morte.
Direito – é ele quem está na berlinda. Temos o arcabouço jurídico de um Estado de Direito, porém, no cotidiano da vida social, um grande contingente de nossa população não está inserido nele. Ou, está inserido de modo subalterno e ambíguo. Para lembrar o título de uma obra sobre ex-escravos no período pós-emancipação, seriam os “quase cidadãos”. Estes, encontram-se sob o jugo de poderes privados, que escapam à ordem do poder público, ou que estão cada vez menos regulamentados por ele – desde empresas que precisam atender cada vez menos aos esgarçados direitos trabalhistas, até grupos de extermínio que nutrem ligações promíscuas com as próprias forças de segurança pública.
O que temos percebido, com assombro, nos últimos tempos, é a necessidade de fundamentar direitos que, pensávamos, fossem consensuais em nossa sociedade. Conquistas históricas postas em risco. Direitos da infância e adolescência atacados em propostas de redução da maioridade penal; direito à diversidade golpeado, quando se pretende retirar dos Planos Municipais de Educação as temáticas relacionadas a gênero. O que dizer, por exemplo, do desrespeito a direitos civis, considerados os mais básicos de todos, como o próprio direito à vida banalizado no campo e na cidade em episódios da chamada “guerra contra o tráfico de drogas”, ou nas disputas por terra?
Diz Brum: “Comentários como estes [estavam no lugar errado, na hora errada] são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer, se resignam a desistir do espaço público”.
É neste ponto que a chacina de Osasco e Barueri inscreve uma pergunta ao citado texto de José Silvério Baia Horta. Se consideramos que a garantia dos direitos sociais está na capacidade de pressão da sociedade mobilizada “nas ruas e praças”, de que formas os homens e mulheres da periferia, que “não podem” ocupar a rua, vão garantir os seus direitos?
A abordagem da tragédia que silencia e culpabiliza as vítimas (estava no lugar errado e na hora errada; era trabalhador, não merecia isso) leva Eliane Brum a afirmar uma morte que também acontece na linguagem e pela linguagem. Destacando as restrições impostas (diretamente, por toques de recolher, ou indiretamente, pelo medo) à presença das pessoas no espaço público, poderíamos falar, ainda, de uma tentativa de assassinato político perpetrada não apenas contra os indivíduos, mas contra a comunidade. Esta que não pode deixar de ser vista em suas dimensões de classe social e pertencimento étnico racial.
E, porque não perder de vista tais características de classe e étnicas? No dia seguinte à chacina, mais uma das manifestações contrárias ao governo da presidenta Dilma Roussef tomou a Avenida Paulista. Naquele momento, quem eram os manifestantes autorizados a fechar a rua, com a condescendência da Polícia Militar? Majoritariamente homens e mulheres brancos, de classe média e alta, nenhum deles tidos sob suspeita de serem “bandidos”, “vagabundos”, ou “vândalos baderneiros”. Entretanto, alguns portavam cartazes em que faziam apologia ao crime, tais como “por que não mataram todos em 1964”, ou “Dilma, por que não te enforcaram no DOI CODI”. Enfim, direitos sociais, políticos, ou os próprios direitos humanos não parecem alcançar consenso em uma sociedade tão profundamente desigual como a nossa.