por Alexandre Magalhães, Rio On Watch
Dona Jane é uma das figuras mais importantes na luta contra a remoção de favelas no Rio de Janeiro na atualidade.
Ela sempre foi incansável: articulava não só internamente atividades juntos aos moradores da Vila Autódromo, sua comunidade de morada, mas também se articulava com moradores de outras favelas e com movimentos sociais. Durante anos, frequentou e frequenta debates, reuniões com autoridades públicas (contra e a favor da Vila Autódromo), ajudou a organizar protestos, documentos, cartas. Colaborou, de inúmeras maneiras, na construção das mobilizações contra a política de remoção no Rio de Janeiro.
Estas situações de remoção, marcadas pela extrema violência, física e simbólica, levaram-na a sentir a agonia que leva a cisão em muitos papeis: a líder comunitária, a mãe, a trabalhadora. E isso, obviamente, leva ao cansaço. Mas isso nunca a impediu de continuar. Foi esta capacidade de se manter firme que a fez seguir adiante, capacidade esta que muitas vezes não pode ser dita, mas tão simplesmente demonstrada por atividades, gestos e afetos. E isso dona Jane fez inúmeras vezes, desde a atenção dispensada aos moradores que recorriam a ela em busca de informação sobre “se iam sair ou não” ou simplesmente para lhes dar um pouco de atenção num contexto de pressão e sufocamento, até a feitura de faixas nas quais inscrevia, ao mesmo tempo, sua força e a da comunidade.
No início de agosto, após uma década de luta, dona Jane deixou a sua casa, tão duramente conquistada, tão duramente construída. O entorno demonstrava o asfixiamento a que fora submetida durante meses: de um lado, escombros das casas de seus vizinhos demolidas. De outro, um gigantesco prédio espelhado que, a um só tempo, refletia a luta de um pequeno contra um grande, mas também a própria força de destruição deste último. Mas refletia também a resistência.
Dona Jane disse a quem estava presente naquele instante: “casa não se constrói com dinheiro, se constrói com amor”. Pude sentir um pouco disso quando, há quatro anos, ainda que de maneira um tanto desajeitada, ajudei a reconstruir sua casa (sob a liderança do nosso mestre de obras Jorge Santos), tijolo por tijolo, após a primeira destruição efetuada pela Cedae. Por isso e por tudo o que disse acima, quando sua casa foi demolida recentemente, também senti como se minha casa estivesse sendo demolida.
Ao longo de todo esse tempo, percorremos juntos várias favelas ameaçadas de remoção. Neste período, ela se transformou. Eu me transformei. Vimos de perto, ela muito mais do que eu, a violência do Estadoem seus mínimos detalhes. Pude sentir, ainda que sem a intensidade daquele que é atingido diretamente, a dureza deste processo. A violência física, moral e simbólica, deste processo. E isso marca. E marca profundamente.
Esse curto relato não é a descrição de um processo de curvamento de alguém perante uma força contra a qual nada se pode fazer. Pelo contrário, expõe a vitória de uma mulher de origem popular, vinda da favela, que nunca vendeu sua dignidade. Que sempre enfrentou os podres poderes de cabeça erguida. Que lutou por sua favela e que continuará lutando. Como ela mesmo disse, na ocasião de sua mudança: “sairei da minha casa, mas não da luta”. E esta continua.
Vila Autódromo resiste!
*Alexandre Magalhães é sociólogo e autor da tese de doutorado: “Transformações no ´problema favela` e a reatualização da remoção no Rio de Janeiro”.
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Imagem destacada: Jane Nascimento e suas filhas no dia da remoção (1 de agosto de 2015)