Fui atingido por um tsunami de rancor contra o Zé Dirceu. Há muita gente, realmente, que o odeia. Falam dele como o abominável.
Nos lugares mais inusitados: no laboratório em que fui fazer exames de sangue; na padaria que frequento; até no Palmeiras!
Imagino que no mundo dos executivos das grandes empresas, os mesmos que estão dando ordens para enxugar gastos e demitir milhares de funcionários, devem estar comemorando.
Eu não tenho, tampouco, qualquer simpatia pelo Zé Dirceu que está preso em Curitiba. Ele me desperta aversão, até repulsa. Mas por razões opostas às das classes médias reacionárias.
Por razões incompatíveis com as dos grandes capitalistas que o identificam como um dos organizadores do PT entre 1982 e 1989.
As pessoas mudam. Mudam aos poucos. E mudam muitas vezes para pior. Ficam irreconhecíveis.
Eu não gosto do consultor Zé Dirceu que faturou dezenas de milhões de reais, porque respeito o Zé Dirceu que chegou à vida adulta, vindo de Passa Quatro, no interior de Minas, para ser uma das principais lideranças do movimento estudantil de 1968.
Eu admiro o jovem que foi preso em Ibiúna no Congresso da UNE ao lado de centenas de outros: eram os melhores entre os melhores. Quem não consegue admitir esse lugar de Zé Dirceu na história não comete somente uma injustiça, é um idiota.
Reconheço o valor e aprecio a coragem do homem que voltou clandestino para o Brasil nos anos 70.
Conheci-o quando ele se uniu à construção do PT no início dos anos 80 para tentar impedir que a classe operária fosse manipulada pelos liberais do PMDB e PDT que queriam apoiar a transição lenta e segura. Nós queríamos derrubá-la. Era sincero e honesto, ainda que muito ambicioso, um defeito, frequentemente, desvalorizado, o que é um erro.
O Zé Dirceu que eu conheci e com quem convivi ainda era um socialista. Mas já não era mais o revolucionário de 1968. Era um reformista, essencialmente, social-democratizante, com uma inclinação pela classe operária, que acreditava na possibilidade de, através do regime democrático eleitoral, chegar ao governo e fazer reformas concertadas com a classe dominante brasileira.
Era também um campista. Acreditava na ideologia elaborada pelo estalinismo: a visão de um mundo dividido em dois campos, o capitalista e o socialista. Reconhecia ainda a URSS, a China e, sobretudo, Cuba como as retaguardas estratégicas da luta contra o imperialismo.
Não compreendia, portanto, o que é o internacionalismo. Por isso, ficou completamente desnorteado com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS.
Não tínhamos acordo neste projeto. Eu nunca acreditei nesta utopia do reformismo cordial lulista.
Foi por isso que fui expulso do PT em 1992, quando representava a Convergência Socialista na Executiva Nacional, sob a acusação fantasiosa de não respeitarmos o estatuto interno.
O pretexto foi a campanha pública pelo Fora Collor que a maioria da direção lulista, sob a coordenação de Zé Dirceu, se recusava a assumir. Só o fizeram depois das manifestações estudantis com dezenas de milhares em agosto de 1992. Chegaram atrasados. Não fosse o bastante, aceitaram a posse de Itamar Franco, em respeito à Constituição.
Posso testemunhar, porque fomos sempre adversários políticos irreconciliáveis ao longo dos doze anos em que militamos juntos no PT, que o Zé Dirceu orgulhoso, assertivo, frontal, até um pouco pomposo, foi sempre um inimigo leal. Ou seja, dizia o que pensava, lutava de frente, assumia os riscos por suas posições e respeitava os seus adversários.
O Zé Dirceu que está preso em Curitiba é um outro homem.
Foi o primeiro-ministro do governo Lula e, para garantir a governabilidade de Lula, articulou-se com as mais degeneradas legendas de aluguel que a burguesia brasileira construiu para representá-la.
O “reformismo quase sem reformas”, o lulismo que destruiu o PT por dentro, decidiu “jogar o jogo pelas regras do jogo”. Acreditou, inocentemente, que poderia fazer o mesmo que Sarney fez, que Itamar fez, que FHC fez e escapar impune. Acreditou que “estava podendo”.
Mas a regra é clara. Não podia. Para ganhar eleições e governar o PT foi atrás da grana onde ela está: nos cofres das grandes empresas. Por dentro e por fora. Doações declaradas e outras pelo caixa dois.
Uma fração burguesa mais reacionária comemora ver o menino de Passa Quatro, o militante revolucionário de Ibiúna, na cadeia.
Só que não. Prenderam o homem errado. O militante de Ibiúna não pode ser preso, miseráveis! Ele já morreu.
Tudo sugere que o homem que o sacrificou se chama, também, Zé Dirceu, e cometeu crimes. As instituições do regime democrático burguês, que ele tanto defendeu, vão julgá-lo. Possivelmente, condená-lo. Como não é mais réu primário poderá permanecer preso por muitos anos.
Claro que será um julgamento político. E tudo indica que ele se descobrirá sozinho e traído. Até a máquina política deformada que ele construiu, e que tanto se beneficiou de sua capacidade de trabalho, o abandona. Este Zé Dirceu será esquecido.
Zé Dirceu não tem a minha clemência. Não haverá perdão para o mal que ele fez à esquerda brasileira. Manchou a bandeira da causa socialista. O maior de todos os seus crimes foi ter deixado morrer aquele jovem audacioso, valente, destemido e talentoso que assumiu a frente na luta da USP na Maria Antonia em 1968. Este Zé Dirceu, pelos que virão, será lembrado para sempre.