“O fundamento da utopia é ser a severa e ilustre crítica da realidade. A utopia é um constante trabalho contra o instituído”
Por Daniel Oliveira, em O Tempo
Após três anos sem edição em Belo Horizonte, o Ciclo de Conferências Mutações volta à capital, entre os dias 13 de agosto e 22 de setembro, com 13 palestras em torno do tema “O Novo Espírito Utópico” no auditório do BDMG. Abaixo, o filósofo e idealizador do evento, Adauto Novaes, fala sobre a relevância da utopia diante da crise atual. As inscrições já estão abertas no mutacoes.com.br.
De onde surgiu esse desejo de discutir a utopia?
São várias razões. Primeiro, como dizem os filósofos, o homem é um animal utópico. Nós precisamos de uma utopia. No início da conferência dele, o Francis Wolff, que vai abrir o Ciclo, diz que “as utopias são para as comunidades aquilo que os sonhos são para os indivíduos”. Cada época, geração, precisa de uma. A gente recorre a ela quando a realidade se torna insuportável. E hoje mais do que nunca, vivemos a repressão em nós mesmos, e em torno de nós, mas ao mesmo tempo somos incapazes de imaginar uma utopia, de sair desse sistema de repressão. E isso é uma grande novidade, resultado de uma enorme mutação por que o mundo passa hoje, nos conceitos, na ética, na política, nas mentalidades. Não existe área da atividade humana que não esteja passando por uma grande mutação. E ela é produzida pela revolução tecnocientífica, biotecnológica e digital. Não é uma revolução feita pela promessa utópica dos grandes ideais humanistas. Ela é feita no vazio do pensamento e no vazio da política porque “a ciência não pensa”, como diz o Heidegger. No mundo dominado pela racionalidade técnica, o pensamento se torna a grande utopia, e o espírito como potência de transformação e inteligência tende a se tornar uma coisa supérflua. Por isso, entre outras questões, a utopia precisa ser discutida.
E o que você estava buscando quando fez a seleção dos pensadores para discutir esse tema?
São dois tipos de conferencistas. Primeiro, existe um grupo permanente de pensadores que já estão com a gente há alguns anos trabalhando em torno das ideias das mutações. Escrevo um texto e proponho o tema para eles um ano antes do Ciclo. E, em segundo, vieram alguns nomes já ligados à ideia da utopia, como o Abensour, que estuda a questão do pós-humanismo, por exemplo.
Convencionou-se que a utopia é algo impossível, um ideal inatingível. É assim que vocês pretendem encarar o termo?
É e não é. Porque a utopia consiste de um trabalho do espírito sobre si mesmo que se expressa na ação pensada. Não é que você pensa uma coisa já realizada. Através da ação incessante, o espírito trabalha utopicamente atrás da promessa permanente do novo. E é esse trabalho que deve ser preservado. Não é que a utopia seja uma coisa realizável de imediato. Mas é necessário esse movimento do pensamento, esse sempre apresentar o novo. Realizar ou não é outra história. O homem voar na idade média era uma utopia. Hoje, está voando. Uma coisa palpável. Utopia é promessa, esperança, uma simulação antecipadora, horizontes de novos desejos. Mas ela tem um objetivo comum, que é ser a “severa e ilustre crítica da realidade”. O fundamento da utopia é a crítica do presente. A utopia é um constante trabalho contra o instituído.
E você acha que seja um papel do artista oferecer uma visão utópica da realidade que ele representa em sua obra?
O artista é isso. O trabalho do pensamento e da obra de arte sempre está ligado à ideia de utopia. Eles nunca repetem o mesmo. Não reproduzem a realidade tal e qual. O Paul Valéry, um pensador e poeta de que eu gosto muito, escreveu no prefácio às “Cartas Persas”, de Montesquieu, que “a barbárie é a era dos fatos. É necessário que a era da ordem seja o império das ficções”. Ou seja, a sociedade, para se instituir e se organizar, precisa das “coisas vagas”, que é o termo que ele usa para definir as utopias, os ideais políticos, as artes, tudo isso. Mais adiante, ele diz que “não existe potência capaz de fundar a ordem apenas por meio da repressão. São necessárias forças fictícias. A ordem exige a ação da presença de coisas ausentes”. Elas são essenciais à sociedade. Não existe uma melhor definição de utopia que essa. No atual momento de barbárie, não existem ideais políticos nem artísticos. A gente está à deriva, entre dois mundos – um que não acabou inteiramente e outro que não começou inteiramente.
E nesse momento de crise política, econômica, moral e de identidade do Brasil, o que a discussão da utopia pode oferecer?
É uma questão muito importante que alguns conferencistas vão abordar. O desaparecimento do elemento utópico deixa um vazio também no espaço da política. O Francis Wolff fala da diferença entre a política, que é essa coisa que vemos aí, e o político, que é algo diferente. Essa política real que vemos hoje trabalha na contramão dos sentimentos da coletividade, perdeu os ideais utópicos e se transformou em um ciclo de estratégias de conquista de poder. Ela virou um acontecimento puro e simples. Ninguém discute os ideais de uma vida em comum, coletiva, de uma comunidade e, daí, vem a perda de todos os outros valores, da igualdade. Um dos elementos da utopia é esse de retomar a ideia original da política.
O cenário também é marcado por uma forte polarização. Isso é bom porque leva as pessoas a se engajarem ou empobrece e simplifica o debate?
É contraditório. Por um lado, é importante que setores minoritários se manifestem. Por outro, corre o risco de que eles se politizem no sentido que citei acima, de política como pura estratégia de poder. Hoje está tudo muito fragmentado. É política dos negros, homossexuais, crianças… Só que faltam elementos para criar vínculos entre essas reivindicações, que são justas, mas acabam se isolando e enfraquecendo a noção de política.
Muitos enxergam também um momento de guinada à direita, de volta a um conservadorismo. Como você enxerga esse diagnóstico?
Isso é da ordem mundial. O mundo de interesses puro e simples levou a isso. Primeiro, a política virou coisa de especialista. O mundo virou coisa de especialista, na universidade, em todo lugar. E isso é um empobrecimento enorme da teoria política e do pensamento. Claro que tem outros elementos, como interesses econômicos etc. Mas, do ponto de vista dos valores, a tendência é um esvaziamento deles. O Günther Anders, autor importante que foi casado com a Hannah Arendt, escreveu um livro chamado “Obsolescência do Homem”, em que diz que o sujeito histórico hoje é a técnica. O homem perdeu essa batalha. Ele entrevistou o cara que jogou a bomba atômica em Hiroshima e chegou à conclusão de que até as paixões se tornam obsoletas. A ação dele, como a ação dos caras que controlam os drones hoje feito uma tela de videogame, não segue uma paixão. Não têm ódio. São trabalhadores que apertam o botão e matam porque matam. E isso é um problema muito sério para pensar a condição humana e de que maneira os valores morais tendem a desaparecer no mundo técnico e da ciência.
O que você espera do participante que vai se inscrever no ciclo?
É fundamental o engajamento. Fizemos uma experiência no ano passado de transmitir ao vivo pela internet. Teve em torno de 9.000 pessoas seguindo o feed. Achei maravilhoso, pessoas escrevendo sobre a conferência do Ceará, Bahia, Rio Grande do Sul. Mas a presença é fundamental porque abre um diálogo aberto e claro com o palestrante. O ciclo pode parecer difícil para quem não está muito por dentro do tema, mas ao longo do processo, a gente vê que quem segue passa a ter uma interação muito forte. Tanto que o conferencista faz um texto antes, mas, depois da conferência, ele é retomado a partir das questões propostas. E só aí a gente publica. Porque são questões importantes que o público traz, e a gente não subestima de jeito nenhum. Ele tem contribuições importantes a dar.
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Destaque: Adauto Novaes Idealizador e diretor do Ciclo de Conferências Mutações.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.