Brasil é o campeão de linchamentos, que mostram lado cruel de ‘pessoas de bem’
Por Raquel Sodré, em O Tempo
Esses dados foram revelados no livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, lançado neste ano pelo sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Universidade de São Paulo. Ele pesquisou o tema pelos últimos 30 anos. O país não tipifica o crime de linchamento – que é enquadrado na lei como homicídio ou tentativa de homicídio –, e não há estatísticas oficiais sobre essa prática. Portanto, o livro de Martins pode ser considerado o maior documento sobre o assunto.
Apesar de ser uma manifestação espontânea, os linchamentos costumam seguir uma espécie de “roteiro”: perseguição, apedrejamento, golpes de pauladas, socos e pontapés, mutilação e queimar a pessoa viva – nessa ordem.
Para Martins, a mutilação tem a ver com uma religiosidade comum do brasileiro. “Furar os olhos do linchado, coisa que tem acontecido com alguma frequência, é um modo de condená-lo à escuridão eterna. Esse morto jamais verá a luz da salvação”, diz.
Os linchadores, normalmente, são as consideradas “pessoas de bem”: pais e mães de família, trabalhadores, sem envolvimento com o crime. Muitas vezes, sem histórico de comportamento violento. O que os faz participar desse ato de barbárie é o apoio dos pares. “Um grupo propicia que tenhamos alguma referência externa que autorize nossa ação. Se eu tinha que decidir sozinho por cometer uma agressão a alguém e eu não consigo fazer isso, estando dentro de um grupo, eu não me sinto mais sozinho e cometo a agressão”, analisa o psicanalista Bernardo Micherif, doutorando em psicologia pela UFMG que estuda a violência.
Em um dos linchamentos relatados por José Martins em seu livro, ocorrido no Rio de Janeiro, uma senhora idosa precisou ser retirada à força de cima do corpo do rapaz que havia sido linchado. Ela segurava uma colher e tentava arrancar os olhos do corpo. Foi necessário levá-la a um hospital e medicá-la para que voltasse a si. “Quando há um fenômeno desses, em que as pessoas ultrapassam barreiras que elas consideravam impossíveis de serem transpassadas, isso gera transtornos psiquicamente. Para voltar desse momento de ruptura, será necessário um grau de contenção – que pode ir desde a simples presença de um policial no local até o uso de medicação mesmo”, afirma Micherif.
Minientrevista
José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Universidade de São Paulo. Ele lançou, em março deste ano, o livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, em que analisou mais de 2.000 casos de linchamentos no país. O pesquisador falou a O TEMPO sobre nossa cultura violenta, o caráter ritual dos linchamentos e como mudar essa realidade. Confira.
O senhor afirma que as pessoas envolvidas em um linchamento entram em uma espécie de transe violento. O que induz a ele?
O linchamento ocorre como ato súbito, impulsivo e irracional da multidão que se forma espontaneamente em face de um ato violento, geralmente contra pessoa indefesa, como criança, mulher, idoso. Nesse momento, as pessoas fazem o que nunca fariam conscientemente, uma combinação de medo e de ódio reativo em face de um ato violento que os linchadores consideram injusto. Geralmente, a intervenção da polícia interrompe também a exaltação dos linchadores.
O senhor também fala de uma crença religiosa segundo a qual o punido precisa ser mutilado para não ter nem um julgamento pós-vida. De onde vem essa crença?
Ela é própria do catolicismo popular brasileiro. Furar os olhos do linchado, coisa que tem acontecido com alguma frequência, é um modo de condená-lo à escuridão eterna. Esse morto jamais verá a luz da salvação.
Quais traços culturais do brasileiro propiciaram o surgimento da cultura do linchamento?
Somos um povo historicamente autoritário e violento, cuja educação decorre mais da emoção do que da razão. Há entre nós valores referenciais que socializam o outro com base na violência.
Quais outros países possuem essa cultura, e como começar a mudá-la?
Em cada sociedade, o linchamento tem fatores específicos, próprios dos valores daquela sociedade. É o caso de Moçambique, Afeganistão, México, Guatemala e, mesmo, Estados Unidos. A superação do justiçamento como forma popular de justiça vai depender da própria sociedade, de que ela conscientemente reconheça a barbárie desse procedimento e opte pela aceitação da justiça oficial e convencional como meio de punir transgressores.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Destaque: Foto capturada de vídeo. Linchamento no Maranhão.