O jornalista Milton Temer escreveu há poucos dias um texto no qual questiona a greve nas universidades, alegando que já é hora de os trabalhadores dos serviços públicos em geral pensarem em outras formas de se manifestar e reivindicar seus direitos, que não venham ferir a cidadania. Reforça ainda que as greves no serviço público servem mais é para dar “férias” aos trabalhadores e colocar a sociedade contra eles.
Ruminei algum tempo sobre isso e me permitirei fazer alguns apontamentos sobre a sua indignação diante da tal “greve por tempo indeterminado”, que o colega insiste em ser algo absolutamente anacrônico e anti-sociedade.
Um primeiro ponto a ser considerado é entender que o serviço público não tem data-base. Uma coisa tão prosaica que qualquer outro trabalhador da esfera privada tem. Ou seja. Quando chega maio, ou outro mês acordado pelas categorias, o patrão é obrigado a discutir as perdas salariais e as possibilidades de ganho real. É lei. Mesmo que o patrão não queira, é obrigado a sentar com o sindicato e negociar. Assim, quando uma greve nasce é porque já foram esgotadas as conversas.
No caso do serviço público, o governo não está obrigado a discutir as perdas dos trabalhadores em um mês específico do ano. Não há data-base. Então, os trabalhadores vão aguentando, aguentando, esperando pela boa vontade do governo em negociar. Porque qualquer reposição só virá se o governo quiser discutir. Como até hoje não tivemos um governo que se preocupasse em sentar com os trabalhadores para debater salário e condições de trabalho, todo esse parto tem de ser feio à fórceps. É um drama anual. O governo não chama para discutir, os trabalhadores se articulam, buscam negociação através de suas federações, o diálogo não vem e aí acaba sendo necessária a greve.
Logo: a greve é o único recurso que o trabalhador tem para abrir diálogo com o governo. E, no mais das vezes, o governo se recusa, enrola, tergiversa, faz com que a movimentação dure dois ou três meses. Então, como é comum, diante da falta de informação e do preconceito perpetuado, os trabalhadores passam a ser os vilões da história. São eles os que atingem a “cidadania”. São eles os malvados que deixam estudantes sem aula, velhinhos sem pensão, pessoas sem médicos. O governo parece não ser responsável por nada.
Reivindico que essa é uma velha estratégia governamental. Estender as greves por meses para que os trabalhadores sejam enxovalhados na praça pública como os irresponsáveis, os que não prestam atendimento. Assim, aceitar essa premissa acaba por reforçar o preconceito criado pelos governantes de que todo servidor público é um relapso e vadio.
Já no aspecto da metodologia da greve, Milton Temer tem razão. Já era hora de as lideranças dos trabalhadores públicos terem bastante clareza disso. A demora das greves – provocada pelo governo – é um calcanhar de Aquiles que precisa ser atingido. Sabedores da estratégia governista em demonizar o trabalhador, era tempo de pensar em novas estratégias para que a reivindicação pudesse ser feita sem tanto prejuízo às pessoas que utilizam os serviços públicos.
Mas, também é bom que o jornalista saiba que esse tema sempre foi foco de debates e discussão. As tais das “novas formas de luta” estão sempre em pauta, sem que se possa avançar. Porque, afinal, o que têm os servidores públicos para barganhar? Eles não param uma produção de salsichas, nem de sapatos, nem de carros. Coisas que geram lucros astronômicos para os patrões. Um dia de greve numa montadora é prejuízo gigantesco e os patrões logo se mobilizam para terminar o movimento, seja com violência, com punições ou negociação. Mas, a coisa é rápida.
Agora, quando para um servidor público, o que é que para? O serviço à população. Coisa que historicamente sempre foi vista como prioridade zero. Nos discursos dos políticos, eles estão no topo, mas na ação cotidiana dos governantes, é zero. Então, há que se perguntar: como são os serviços públicos quando os trabalhadores estão trabalhando? Se for olhar com honestidade vai se perceber que se a “cidadania” consegue ter algum acesso aos serviços do estado, muito é por conta da dedicação dos trabalhadores que, trabalhando geralmente em condições adversas, se desdobram em mil para dar conta de uma máquina emperrada, ineficaz, desumana. Basta passar um dia num hospital público, ou num posto de saúde, ou numa escola de periferia, ou numa universidade sucateada para ver como é trabalhar nessas condições.
Então, o trabalhador para, quando não pode mais. Quando precisa gritar por melhor qualidade no ambiente de trabalho, por carreira, por salário – essa coisa vil que não paga o valor daquilo que se produz. E o que faz o governo? Estica a greve, leva dois meses parar abrir uma mesa de conversa, na qual diz que não haverá conversa. Então passam mais meses e os trabalhadores implorando por um diálogo. É isso que é uma greve de trabalhadores públicos. Uma humilhação a mais. E no fim das contas, são ainda enxovalhados como vilões da cidadania.
O jornalista fala de um exemplo no qual os médicos em greve atendem na rua. Mas não é isso que se quer. O que querem os trabalhadores públicos é um atendimento digno, humanizado, em instalações boas, eficazes. Os professores poderiam dar aulas públicas, e dão. Mas e daí? O governo valida como aula dada? Não! E o trabalho cotidiano dos técnicos-administrativos para manter a máquina pública funcionando nas suas entranhas? Como fazê-lo em tempos de luta? Ou eles são tão insignificantes que não estão na lista dos serviços a prestar?
Sim, a greve no serviço público é um drama social. Sim, toca no que é mais frágil, que é quem precisa do serviço público. Prejudica, provoca sofrimento, angústia e dor. Logo, ela não deveria existir. Isso significa que a “nova forma” de luta deveria ser eleger um tipo de governo, um tipo de organização da vida, que realmente pensasse no Público, que valorizasse os trabalhadores do setor, que dialogasse com eles, que ao primeiro sinal de movimentação reivindicativa se dispusesse a negociar, impedindo a paralisação.
Mas, não, o que vemos é um governo – os de todas as cores – que provoca o espichamento da greve, que se omite, que se esconde, que endurece em posições pré-definidas, que não negocia. Assim, as greves por tempo indeterminado são provocadas por essa ação governamental. Porque é o governo quem tem poder. Os trabalhadores só têm a sua força de trabalho, os seus corpos nus, como dizia o grande repórter Marcos Faerman. E é essa força, frágil, que eles colocam na rua, em luta. Claro que trabalhadores há que não participam, que ficam em casa, que são relapsos na greve e no trabalho. Mas, são a minoria.
Por fim, questionar o método das greves intermináveis é legítimo, mas há que focar no alvo certo. Responsabilizar os trabalhadores é reforçar velhos e sofríveis preconceitos.